Artigo – Punir abandono afetivo não aproxima pais e filhos

por Leonardo Castro e Isabel Elaine

“Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos (artigo 22, da lei 8.069/90). A educação abrange não somente a escolaridade, mas também a convivência familiar, o afeto, amor, carinho, ir ao parque, jogar futebol, brincar, passear, visitar, estabelecer paradigmas, criar condições para que a presença do pai ajude no desenvolvimento da criança”1, Mário Romano Maggioni.

Sob essas palavras, o nobre magistrado de Capão da Canoa, Rio Grande do Sul, reconheceu o direito a indenização à filha abandonada afetivamente pelo pai. O processo, em fase de execução, traz em seu teor o preço do abandono: 200 salários mínimos.

A história2, é de uma jovem, fruto de um relacionamento sem sucesso, que desde os seus primeiros anos se relacionou com o genitor apenas em audiências. Apesar do comprometimento, inclusive em juízo, de estar presente durante a criação da filha, o pai jamais demonstrou qualquer afetividade pela criança, pouco se importando com a sua existência, dando-se por satisfeito com a condenação à obrigação material. Infelizmente, casos como esse têm deixado a esfera da exceção. Filhos já não são mais âncoras de responsabilidade, capazes de transformar até a vida dos mais desregrados. Ao contrário, nunca houve tamanha isenção de obrigações. A família há muito não ostenta as vestes sagradas de outrora.

Casos análogos

Por onde surgiu, o tema gerou polêmica. Diferentemente de outras matérias complexas e sem precedentes que vêm surgindo nos Tribunais, em casos de abandono exclusivamente afetivo não tem havido “pisar em ovos” durante os julgamentos. As correntes são sempre defendidas com unhas e dentes, já havendo registros de debates grandiosos entre os membros de certas Cortes (nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul desponta na vanguarda).

O abandono afetivo não é novidade no meio jurídico. A sua existência é constantemente analisada em hipóteses de destituição familiar, a mais grave pena civil a ser imputada a famílias flagrantemente desestruturadas. Nesses casos extremos, sem qualquer possibilidade de conciliação que resguarde os direitos da criança, temos a ausência de afeto como parte de um conjunto de males causadores de verdadeira tortura ao filho abandonado. Falta não só carinho, como condições de sobrevivência. Desse modo, é incontestável a existência do dano.

Contudo, aqui discuto a indenização pelo abandono unicamente afetivo. O pai, cumpridor dos deveres materiais, acintosamente se desobriga da criação do filho. Todavia, o menosprezo vindo daquele que jamais deveria eximir-se do afeto causa angústia à criança. Se há dano e culpa3, há o dever de reparar. Entretanto, é imprudente essa absorção plena do conflito familiar de natureza afetiva ao campo da responsabilidade civil, sob o risco de invasão dos limites do Direito de Família. Então surge o questionamento inevitável:

Compete ao Judiciário equilibrar através da quantificação pecuniária a relação entre pais e filhos e, concomitantemente, punir os faltosos aos deveres afetivos presumivelmente inerentes à paternidade?

Da compreensão jurisprudencial e doutrinária extraímos duas respostas antagônicas. Temos o dever de afeto como suposta parcela da educação prevista em Lei, em oposição à chamada “monetarização do amor”, fundamentada na cautela. O temor surge a partir do prelúdio de uma enxurrada de ações indenizatórias munidas de interesses mercenários, não havendo como exigir do julgador a faculdade sobrenatural do discernimento entre a real angústia do abandono e a ganância inescrupulosa.

Encruzilhada jurídica

Atualmente, estamos entre a ruína e a glória na responsabilidade civil. Temos triunfado na proteção aos direitos fundamentais que, até então, eram considerados de menor importância. Há pouco tempo, ficávamos surpresos com as indenizações concedidas no exterior. Reparação por dano à imagem? Só para grandes celebridades. Era imperiosa a reformulação do instituto. Por sorte, não faltou quem militasse a favor dessa metamorfose.

Em um exercício mental rápido, é fácil comprovar a transformação. Relembre: há uma década (1997), quantas pessoas próximas a você receberam indenização por dano moral? O advento do novo Código Civil foi a resposta parcial às aflições. Maravilhada com o novo cenário jurídico, extremamente protetor, a vítima passou a exigir o respeito que lhe era devido há tanto tempo. Entrementes, até onde essa comporta pode ser aberta?

Sobre o questionamento, explica o desembargador Luiz Felipe Brasil Santos:

“A matéria é polêmica e alcançar-se uma solução não prescinde do enfrentamento de um dos problemas mais instigantes da responsabilidade civil, qual seja, determinar quais danos extrapatrimoniais, dentre aqueles que ocorrem ordinariamente, são passíveis de reparação pecuniária. Isso porque a noção do que seja dano se altera com a dinâmica social, sendo ampliado a cada dia o conjunto dos eventos cuja repercussão é tirada daquilo que se considera inerente à existência humana e transferida ao autor do fato. Assim situações anteriormente tidas como “fatos da vida”, hoje são tratadas como danos que merecem a atenção do Poder Judiciário, a exemplo do dano à imagem e à intimidade da pessoa”.

Há quem defenda que, na dúvida, é melhor indenizar, sob o risco de injusto ainda maior. Nesse caso, o dever de reparar deixa a classe extraordinária da valorização aos danos reais e relevantes e passa a ser um reles prêmio de consolação. Infelizmente.

Amar e educar

Artigo 22 da Lei 8.069/90, in verbis: “Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais” (grifo não original).

Educar é formar inteligência. Dar condições para que a criança viva em meio a um ambiente produtivo. Dessa obrigação o pai não pode eximir-se, devendo indenizar caso o faça, pois fere a tutela ao tríplice dever previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente. Cabe aos pais a vigilância e a manutenção do espaço onde a educação se desenvolve. Para que isso seja feito, não há necessidade de afeto. Amor e dever não se misturam. Se o amor e o aprendizado se fundissem, o Ministério Público seria parte legítima para requerer a indenização, pois haveria lesão concreta ao princípio legal previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente.

“Não cabe ao Judiciário condenar alguém ao pagamento de indenização por desamor”4.

Outra tese defendida diz respeito ao dever de companhia. Ao meu ver, a tese não merece êxito. O Código Civil, em seu artigo 15895, prevê a companhia de forma facultativa, sempre observados os interesses da criança. É um retrocesso a consideração da companhia indispensável do pai, pois remete-nos ao retorno do extinto pátrio poder. Uma criança pode viver de forma saudável, em família6, sob a guarda de apenas um dos pais, sem qualquer prejuízo ao seu desenvolvimento.

Por fim, há a defesa do fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CF). O seu reconhecimento no campo da responsabilidade civil é uma grande conquista para os defensores do instituto. A dignidade humana, tida como capricho há pouco tempo, ganhou espaço na tutela aos direitos morais. A ampliação de sua aplicabilidade foi necessária à proteção do frágil fundamento. No entanto, o seu emprego deve ser feito de forma cautelosa. Muitos males ferem a dignidade humana, até mesmo o mero dissabor, mas nem todos são merecedores de indenização. Sobre o assunto, Anderson Schreiber, em seu livro “Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil”, ressalta:

“A princípio, portanto, nem o recurso à cláusula geral da tutela da dignidade humana nem as suas especificações conceituais mais comuns têm se mostrado aptas a servir direta e definitivamente de critério para a seleção dos interesses merecedores de tutela. Longe de reduzir ou limitar a tutela da personalidade, tal conclusão pretende apenas demonstrar o exclusivo recurso nominal ao valor constitucional não legitima e não desautoriza pedidos de ressarcimento de danos não patrimoniais. A alusão descomprometida à dignidade humana periga resultar, ao contrário, na banalização justamente daquilo que mais se pretende proteger, de forma semelhante ao que começa a ocorrer no direito brasileiro com a boa-fé objetiva”.

Da impropriedade do critério do potencial perigo

“A ausência, o descaso e a rejeição do pai em relação ao filho recém nascido, ou em desenvolvimento, violam a sua honra e a sua imagem. Basta atentar para os jovens drogados e ver-se-á que grande parte deles derivam de pais que não lhes dedicam amor e carinho; assim também em relação aos criminosos” 7.

É insensato vincular a propensão à vida criminosa ao abandono afetivo paterno. Ao fazê-lo, o ilustre magistrado, não intencionalmente, estereotipou a figura do criminoso, dando possível margem ao preconceito. Não que tenha dito algo inverídico, de forma alguma. É notório que a população carcerária dominante é parda, pobre e originária de famílias destruídas. Também não é segredo que essa desigualdade é fruto de problemas sociais graves, e não apenas familiares.

Destarte, é leviano dizer que uma criança foi lesada por possuir um perfil semelhante ao da maioria dos criminosos. Se esse raciocínio prosperasse em nossa sociedade, teríamos uma legião de discriminados pelo potencial perigo que ofertam.

Não podemos considerar o abandono afetivo como causador da triste realidade que catapulta a criminalidade à ascensão. É equivocado reduzir ao âmbito familiar um problema de origem social. A trajetória comum aos criminosos é formada por uma série de eventos infaustos. São nascidos em famílias completamente desestruturadas, expostos à miséria desde cedo, sem acesso ao lazer e à educação, vítimas do racismo social e do descaso governamental.

No entanto, não há como imputar uma possível natureza perigosa ao detentor de aspectos comuns aos criminosos, sob o risco de discriminá-lo. O crime nasce da má-índole, da falta de caráter. A tendência criminosa não é qualidade da pobreza, da raça ou da situação familiar.

Portanto, não há o que discutir acerca do assunto. Diante da delicadeza do tema, não podemos indenizar alguém por possuir característica habitual ao mundo do crime.

Amor dissimulado

“No caso de abandono ou do descumprimento injustificado do dever de sustento, guarda e educação dos filhos, porém, a legislação prevê como punição a perda do poder familiar, antigo pátrio-poder, tanto no Estatuto da Criança e do Adolescente, artigo 24, quanto no Código Civil, artigo 1638, inciso II. Assim, o ordenamento jurídico, com a determinação da perda do poder familiar, a mais grave pena civil a ser imputada a um pai, já se encarrega da função punitiva e, principalmente, dissuasória, mostrando eficientemente aos indivíduos que o Direito e a sociedade não se compadecem com a conduta do abandono, com o que cai por terra a justificativa mais pungente dos que defendem a indenização pelo abandono moral. Por outro lado, é preciso levar em conta que, muitas vezes, aquele que fica com a guarda isolada da criança transfere a ela os sentimentos de ódio e vingança nutridos contra o ex-companheiro, sem olvidar ainda a questão de que a indenização pode não atender exatamente o sofrimento do menor, mas também a ambição financeira daquele que foi preterido no relacionamento amoroso”. Ministro Fernan Gonçalves (REsp. 757.411/MG).

Procuro imaginar o futuro do Direito de Família, caso a indenização por abandono afetivo prospere. Atualmente, temos a destituição familiar como punição civil mais grave aos pais relapsos. Aplica-se a medida àquelas situações em que o genitor possui sérios desajustes em sua conduta social, associados ao abandono não só afetivo. Em tais hipóteses, é inequívoca a existência do dano causado à criança. Então, cabe ao julgador protegê-la, decretando a completa incapacidade daqueles pais de manter alguém sob os seus cuidados.

Ao cumular a destituição com a indenização, podemos criar um problema mais grave. Muitos pais, não por amor, mas por temer a Justiça, passarão a exigir o direito de participar ativamente da vida do filho. Ainda que seja um mau pai, fará questão da convivência, e a mãe, zelosa, será obrigada a partilhar a guarda com alguém que claramente não possui qualquer afeto pela criança. A condição de amor compulsório poderá ser ainda pior que a ausência. Teremos, então, a figura do abandono do pai presente, visto que não é preciso estar distante fisicamente para demonstrar a falta de interesse afetivo.

Caso seja constatado que a presença do pai é nociva, a mãe poderá exigir judicialmente5 o seu afastamento, que será forçosamente impedido de exercer a guarda do filho, abandonando-o por força de sentença. Então, nesses casos, será impossível exigir qualquer indenização pelo desprezo paterno. Logo, a presença potencialmente prejudicial será a principal tese de defesa dos pais ausentes, sujeitos à única condenação possível: a destituição da guarda, já aplicada a situações da mesma espécie, imputando ao requerente a complicada comprovação do abandono. Desse ponto de vista, em processos de indenização, haverá de um lado um filho reclamando por carinho, e do outro, um pai que alega e declara publicamente o desamor para isentar-se da obrigação, cabendo ao magistrado a redução das angústias à pecúnia.

“Penso que o Direito de Família tem princípios próprios que não podem receber influências de outros princípios que são atinentes exclusivamente ou – no mínimo – mais fortemente – a outras ramificações do Direito”. Ministro César Asfor Rocha (REsp 757.411/MG).

“(…) embora dolorosa nas relações entre pais e filhos, marido e mulher, nas relações de família em geral – resolve-se no campo do Direito de Família, exclusivamente”. Ministro Aldia Passarinho Júnior (REsp. 757.411/MG).

Destarte, a indenização por abandono afetivo, no meu entender, não alcança a sua função social e tampouco demonstra qualquer finalidade positiva em sua aplicação.

O afeto não é decorrente do vínculo genético. Se não houver uma tentativa de aproximação de ambos os lados, a relação entre pai e filho estará predestinada ao fracasso. A relação afetuosa deverá ser fruto de aproximação espontânea, cultivada reciprocamente, e não de força judicial. Exceto em casos extremos, onde haja comprovado nexo causal entre certo dano específico e o abandono, não vejo razão para o reconhecimento do dever de reparação. Após a lide, uma barreira intransponível os afastará ainda mais, sepultando qualquer tentativa futura de reconciliação.

Se a solução para o problema fosse o dinheiro, a própria pensão alimentícia atenderia o objeto da reparação, o que não ocorre. Quanto ao efeito dissuasório e punitivo, corremos o risco de mal ainda maior, como foi dito anteriormente.

A indenização deve ser encarada como medida extrema, onde certo dano de natureza grave é sanado através da pecúnia. O alargamento exacerbado poderá levar à desvalorização da ciência jurídica ao simples mercantilismo.

Nas relações familiares, cabe ao Judiciário apenas a defesa aos direitos fundamentais do menor. A sua intromissão em questões relacionadas ao sentimento é abusiva, perigosa e põe em risco relações que não são de sua alçada. O amor é resultado de algo alheio ao nosso entendimento, e não da coação.

“Se tanto o pai quanto a filha tiverem a grandeza de perdoarem as faltas que um e outro possam ter cometido, se cada um conseguir superar as suas dificuldades pessoais e minimizar ou sublimar as mágoas porventura existentes, certamente terão ganhos afetivos e serão mais felizes. Mas o certo é que esse conflito, que ainda persiste, não poderá ser resolvido com qualquer indenização, pelo contrário…”. Desembargador Sérgio Fernando Vasconcellos Chaves.

O dinheiro não é a resposta para tudo.

Notas de rodapé

1- Trecho da sentença do processo 1.030.012.032-0, proveniente da Comarca de Capão da Canoa (RS), retirado da Revista Consultor Jurídico.

2- Baseado na reportagem de Débora Rubin e Paulo César Teixeira, para Revista Época.

3- Para Rolf Madaleno, “A responsabilidade civil no Direito de Família é subjetiva, exige um juízo de censura do agente capaz de entender o caráter de sua conduta ilícita. É preciso demonstrar a sua culpa”. MADALENO, Rolf. O Dano Moral na Investigação de Paternidade. Revista Ajuris, 71, pág. 275.

4- Trecho do parecer dado pelo Ministério Público ao caso mineiro, retirado do voto do Ministro Fernando Gonçalves (REsp. 757.411).

5- Artigo 1.589, do Código Civil: “O pai ou a mãe, em cuja guarda não estejam os filhos, poderá visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação”.

6- Artigo 1.584, do Código Civil: “Decretada a separação judicial ou o divórcio, sem que haja entre as partes acordo quanto à guarda dos filhos, será ela atribuída a quem revelar melhores condições para exercê-la”.

Fontes

Anderson Screiber, Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil, cit., pág. 120.

Angelo Carbone, Justiça não pode obrigar o pai a amar o filho, para o ConJur.

Revista Consultor Jurídico.

Revista Época.

Revista Espaço Vital.

Sítio DireitodeFamília.net.

Superior Tribunal de Justiça.

Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

Tribunal de Justiça de Santa Catarina.

Tribunal de Justiça de São Paulo.

 

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 6 de dezembro de 2007