Mãe de três filhos, a empregada doméstica Ivone Carmo da Silva, de 33 anos, finalmente conseguiu provar à Justiça brasileira que é mulher e que seu primeiro nome – Ivonei – foi registrado com erro na certidão de nascimento.
Ela tentou outras duas vezes mudar o documento que provocava constrangimentos em seu cotidiano desde que se entendeu por gente. Pobre e analfabeta, ela conta que a tarefa parecia sempre tão difícil que ela desistiu. Desta vez, só foi possível graças à percepção de um pastor evangélico e à ajuda de um casal de advogados que aceitou interceder por ela à Justiça sem cobrar pelo serviço.
Ivone, que completará 34 anos no próximo dia 16 de dezembro, só agora vai poder mudar seu nome para Ivone e, com a retificação da informação sobre sexo na certidão, solicitar título de eleitor, inscrição no CPF e carteira de trabalho.
Com os documentos em mão, ela vai voltar a solicitar novamente a inclusão de seu nome no Bolsa-Família. Em 2003, quando ainda morava no Recife, ela conseguiu o cartão, mas, sem documentos, não podia retirar o dinheiro.
“A assistente social me falou: `você não tem CPF, você não é ninguém.” Agora com a possibilidade de votar e de ter conta bancária, Ivone também planeja oficializar sua união com o metalúrgico Cícero Gomes da Silva, com quem vive há 11 anos. Ela, que nunca freqüentou escola, pretende também iniciar um curso supletivo.
A vida de Ivone mudou em 25 de novembro, quando a juíza Iohana Frizzani Exposito, do Fórum de Itatiba, cidade localizada a 84 km de São Paulo, aceitou o pedido de retificação de seu registro civil.
“Ficou comprovado pela prova testemunhal, documental e pericial que a requerente é do sexo feminino, apesar de constar em seu registro de nascimento que é do sexo masculino”, diz a sentença.
Embora a juíza tenha constatado na primeira audiência que Ivone é mulher, o Ministério Público de Itatiba decidiu, por prudência, pedir provas. A doméstica teve de submeter-se a exame clínico no Sistema Único de Saúde (SUS).
O médico constatou que Ivone “possui órgão genital compatível com o sexo feminino, mamas desenvolvidas e cicatriz de parto normal.” A doméstica diz que passar pelo exame foi constrangedor, mas considerou natural. “A gente fica só um pouco nervosa”, afirmou.
Ivonei não conseguiu descobrir como foi que o erro surgiu quando seu pai a registrou no cartório de São João do Meriti, no Rio de Janeiro, há 34 anos. O marido dela, Cícero, supõe que o sogro tenha confundido a palavra `feminino` com `masculino`.
“Ele também era analfabeto e pode ser que tenha confundido ou a pessoa do cartório confundiu”, afirmou. Para a advogada Elizabete Peixoto, o funcionário do cartório pode ter errado ao supor tratar-se de um menino a partir do nome sugerido pelo pai.
Ao completar 18 anos, Ivone tentou mudar o registro para retirar a carteira de trabalho e desistiu porque o documento não batia. “Não sabia direito como fazer, não tinha orientação de ninguém”, contou ela.
Há quatro anos em São Paulo, Ivone pediu que familiares retificassem o registro, mas os funcionários exigiram sua presença em São João do Meriti. “Minha sogra mora no Rio e tentou resolver, mas tinha que entrar com ação judicial”, conta Cícero.
Outro choque com a realidade ocorreu quando Cícero tentou oficializar a união dos dois. “A moça disse que no Brasil não existe casamento de homem com homem”, afirmou.
Ivone conta que embora a certidão de nascimento aponte sexo masculino ela não teve problemas para receber atendimento médico em maternidades públicas ao dar à luz os três filhos. O nome da mãe, no entanto, aparece como Ivone na certidão de nascimento dos filhos, que também terão de ser retificadas.
Evangélicos, Ivone e Cícero freqüentavam a Igreja Cristo Pentecostal no Brasil, que orienta os fiéis a regularizarem sua situação civil. O pastor Pedro Márcio da Silva notava que a família visitava a igreja e depois sumia por algumas semanas. Questionados sobre o motivo do distanciamento, eles contaram o problema.
“Eles quiseram entrar em comunhão, mas para ser membro da igreja tem de ser casado legalmente. Eles não podiam porque não tinham o documento”, disse o presidente da igreja na região de Campinas, Paulo Galvão.
Galvão mobilizou o casal de advogados Luiz Peixoto e Elizabete Gomes dos Santos Peixoto, que entraram na Justiça em 26 de fevereiro de 2008 com o pedido de retificação. Moradora na periferia de Itatiba e sem condições de pagar os honorários, Ivone teve atendimento gratuito. O processo demorou nove meses. “Estou nascendo agora”, disse ela.
Fonte: Portal G1