Clipping – A culpa no direito das sucessões: uma análise do artigo 1.830 do Código Civil

A previsão legal não pode ser mais absurda. A norma legal se afasta, e muito, de qualquer razão de natureza ética. Pelo prazo de dois anos o viúvo mantém todos os direitos sucessórios, mesmo que tenha sido o culpado pela separação

Ana Cristina B. Marquito – Advogada, pós-graduada em Direito Civil pela PUC Minas, mestranda em Direito Privado pela PUC Minas, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM)

Na contramão da melhor doutrina, a noção de culpa comparece, ainda, em diversos normativos de direito de família no novo Código Civil. A apuração da culpa tem lugar na definição do poder de prestar alimentos, na separação judicial, na perda do nome, e por incrível que possa parecer, o legislador conseguiu incluir a culpa, também, como critério para reconhecimento ou não do direito sucessório do cônjuge sobrevivente.

Segundo as regras previstas na legislação anterior, quando da morte de um dos cônjuges, o sobrevivente teria direito à herança caso aquele não houvesse deixado descendentes ou ascendentes. O direito sucessório era reconhecido somente se, à época da abertura da sucessão, não estivesse dissolvida a sociedade conjugal. Essa era a regra prevista no artigo 1.611, caput, do Código Civil de 1916.

O mencionado artigo 1.830 do novo Código Civil, objeto da presente reflexão, cuida de especificar as condições ou requisitos para que seja reconhecido o direito sucessório ao cônjuge supérstite. Para suceder, o cônjuge não pode, à época da abertura da sucessão: estar separado judicialmente e estar separado de fato há mais de dois anos. Todavia, o legislador consignou uma exceção ao final do artigo: “… salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente”.

O culpado, durante o longo período de dois anos preserva a condição de herdeiro necessário; concorre com os descendentes e ascendentes e é contemplado pela herança. Pela lei, somente quando o falecimento ocorre depois de dois anos da separação de fato é que se questiona a culpa. Independentemente do número de anos em que esteja o casal separado. Se o sobrevivente não foi o responsável pelo fim da convivência, preserva sua condição de herdeiro a qualquer tempo.

A previsão legal não pode ser mais absurda. A norma legal se afasta, e muito, de qualquer razão de natureza ética. Pelo prazo de dois anos o viúvo mantém todos os direitos sucessórios, mesmo que tenha sido o culpado pela separação. E comprovado que não foi sua a responsabilidade pelo fim do casamento, tem assegurado para sempre a condição de herdeiro e o direito de concorrência sucessória.

Não é necessária muita imaginação para antever o desencadeamento de controvérsias que tal disposição legal irá gerar. A realidade das famílias brasileiras é pródiga em casos de separações de fato, seguidas de novas uniões informais, que se tornam estáveis. Nessas circunstâncias, as conseqüências jurídicas que surgirão da aplicação do disposto no artigo 1.830 são, no mínimo, preocupantes.

O legislador incorreu em flagrante equívoco na parte final do artigo 1.830, quando possibilitou ao cônjuge separado de fato há mais de dois anos do falecido o direito sucessório, desde que provasse que a separação tenha se dado sem culpa sua. Essa regra é flagrantemente inconstitucional. A hipótese prevista de discussão da culpa depois do falecimento de um dos cônjuges é absurda. Se os cônjuges, quando ainda estavam vivos, não tiveram a intenção de discutir a culpa em razão do fim da vida conjugal, não pode ser essa discussão possível quando um deles já faleceu.

Pela moderna concepção de família, em que o casamento não é mais o único modelo de família protegido pelo ordenamento jurídico, não havendo mais interesse em mantê-lo, não há como imputar a culpa ao outro depois de mais de dois anos de separação de fato. Outro ponto a ser ponderado é o seguinte: ainda que se admitisse a separação por culpa, se um dos cônjuges, logo depois do fim da vida conjugal, propõe a separação judicial imputando ao outro violação dos deveres conjugais e obtém a procedência da ação, transitando em julgado a decisão, e o cônjuge considerado culpado morre depois dessa data, o cônjuge inocente não terá direito à herança, pois já estará separado judicialmente. Por outro lado, se o cônjuge, mesmo com o fim da vida conjugal, não tivesse ajuizado a ação, ficando apenas separado de fato, ele poderia ter direito à herança se depois da morte provasse que a convivência não se tornou possível por culpa do cônjuge falecido.

Uma outra questão a ser debatida é como admitir a discussão da culpa se um dos cônjuges, inclusive aquele que será acusado de culpado, não tem a possibilidade de se defender, pois já falecido? Não fica nada difícil imaginar o desequilíbrio das armas que travarão a discussão judicial da culpa ou da inocência do cônjuge sobrevivente, afora os naturais constrangimentos decorrentes dessa inusitada situação de confronto entre mãe e filhos, viúva e enteados, sobrevivente e parente afins. Fatos terão que ser contestados por pessoas que não comungaram e nem testemunharam da intimidade conjugal do sucedido, e da súbita herdeira, que retorna com folga de até dois anos de fática separação, para em nome de um matrimônio de pura ficção, esmerar em provar sua completa inocência conjugal, empenhando em remexer e enlamear a memória do falecido cônjuge.

A regra prevista na parte final do artigo 1.830 do novo Código Civil viola o artigo 5º, LV, da CF/88, que prevê o direito ao contraditório e à ampla defesa. Não terão os demais herdeiros como discutir e provar de quem foi a culpa pelo fim de uma vida conjugal que não integraram. O ideal é que a regra seja a de que o cônjuge sobrevivente terá direito sucessório somente se no momento da morte do outro estivesse em pleno vigor a vida conjugal.

Podemos concluir que o novo Código Civil não reflete o atual estágio do direito de família. A discussão da culpa não deve influenciar a capacidade sucessória do cônjuge sobrevivente. Não há como se pretender a culpa discutida depois de pelo menos dois anos de separação de fato, quando um dos cônjuges já faleceu, com o mero intuito patrimonial. Ou seja, a pena pela culpa é eterna!


Fonte: Jornal “Estado de Minas” – Caderno Direito & Justiça – 27/10/2008.