Nova tentativa de aliviar calvário em cartórios
Executivo prepara, mais uma vez, propostas para diminuir burocracia e facilitar vida do cidadão, hoje obrigado a enfrentar altos custos e filas de cartórios, “sócios” ocultos do próprio governo
Cartório em Mato Grosso repete a cena em outras partes do país: longas filas e altos custos. Ministro Paulo Bernardo (D) retoma propostas de reduzir burocracia |
Em dezembro passado, uma pesquisa encomendada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) ao Ibope comprovou o que qualquer cidadão brasileiro já experimentou diversas vezes: dificuldades para emitir documentos, abrir ou fechar empresas, cumprir exigências legais, aprovar um crediário e obter direitos sociais.
Enquanto isso, nos mais de 13 mil cartórios do país, centenas de milhares de folhas são carimbadas e copiadas, fazendo tilintar a caixa registradora de uma “indústria” que arrecada, segundo estimativas oficiais, mais de R$ 4 bilhões ao ano. Não se pode esquecer, porém, do “sócio” oculto dos tabeliães e notários, como são chamados os donos dos cartórios. Afinal, quase a metade das custas cobradas por eles vai parar nos cofres do governo, na forma de impostos.
O peso da burocracia no Brasil castiga de trabalhadores a empresários, de servidores a aposentados, de desempregados a estudantes. Onera a economia, atrasa a vida das pessoas, entope estantes e armários de papel. Os cartórios alegam que não fazem as regras, apenas as cumprem, e que as exigências emprestam segurança aos negócios – argumento duramente criticado pelos adversários da burocracia.
A burocracia é uma adversária não só por sua força, mas principalmente por sua resistência. Há 40 anos registrou-se a primeira tentativa de abolir a exigência do reconhecimento de firma e da cópia autenticada. Já se criou até um ministério, no final dos anos 70, para combatê-la. Mas ela segue firme e forte, fazendo valer a tradição iniciada nos tempos de Pedro Álvares Cabral.
Agora, mais uma vez, o governo federal pretende fazer valer o que já está em lei há muitos anos, acabando com algumas exigências desnecessárias ou absurdas feitas ao contribuinte. A mais recente tentativa de domar a burocracia partiu do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, por meio de um decreto e de um projeto de lei (veja o quadro) que chegará nos próximos dias ao Congresso.
– O tema envolve mudança cultural, por isso o governo quer dar o exemplo e trazer essa discussão de volta, lembrando à burocracia da desnecessidade do reconhecimento de firma – disse o ministro Paulo Bernardo.
Medidas idênticas já foram tentadas e têm sido adotadas em estados e municípios. Em 23 de janeiro de 2008, o governador José Serra (SP) assinou decreto que dispensa o cidadão da exigência de cópias autenticadas e firma reconhecida em qualquer ação que dependa da administração pública.
Apesar de elogiar a iniciativa do governo, o advogado José Piquet Carneiro, que preside o Instituto Hélio Beltrão, uma ONG voltada para o estudo da burocracia e da administração, lembra a resistência cultural do brasileiro à mudança neste campo. Ele também lamenta que, na proposta do Ministério do Planejamento, o prazo para a implementação plena das medidas (360 dias) seja muito longo.
Isso quer dizer que, até o final de 2009, órgãos públicos e autarquias poderão continuar exigindo cópias autenticadas, firmas reconhecidas ou atestados com informações que constam nas bases de dados do próprio governo – declarações que, exclusivamente por falta de interesse ou empenho da administração pública, não são acessíveis de forma mais direta e simplificada.
“Noventa e nove por cento dos brasileiros não são nem desonestos nem falsários. A excessiva exigência burocrática só serve para dificultar a vida dos honestos sem intimidar os desonestos, que são especialistas em falsificar documentos.”
Hélio Beltrão (1916-1997), ex-ministro da Desburocratização
“Não queremos nem temos a pretensão de dizer que vamos acabar com a burocracia, mas vamos reduzir e simplificar os procedimentos relativos ao Estado com o cidadão e as empresas. Queremos tirar medidas absurdas que se tornam uma verdadeira tortura para o cidadão.”
Ministro Paulo Bernardo, do Planejamento, Orçamento e Gestão
As propostas do governo federal
Principais pontos do decreto
1. Ratifica a dispensa pelo governo do reconhecimento de firma em qualquer documento, quando assinado pelo interessado na presença do servidor.
2. Órgãos e entidades oficiais não poderão mais exigir do cidadão informações que já são do seu conhecimento e integram banco de dados oficiais. A medida teria 360 dias para entrar em vigor.
3. Órgãos federais deverão trocar entre si o acesso aos dados dos cidadãos, para permitir a emissão mais fácil de tais certidões.
4. Se não for possível obter certidão do próprio órgão ou entidade, o governo é obrigado a aceitar declaração escrita e assinada pelo cidadão, relatando os fatos.
5. Autenticação de documentos também não pode mais ser feita. Basta ao servidor comparar a cópia com o original e atestar ele mesmo a autenticidade.
6. Em qualquer caso, o cidadão é responsável penal, civil e administrativamente por eventuais declarações falsas que prestar, como já prevê a lei.
7. O governo vai criar uma Carta de Serviços ao Cidadão, com informações sobre o padrão do atendimento, prioridades, tempo de espera, prazo para cumprimento de serviços, mecanismos de comunicação, entre outros itens.
Principais pontos do projeto de lei
1. Para reduzir o controle burocrático e acompanhar os resultados efetivos na administração pública, poderão ser assinados acordos entre órgãos públicos e o Ministério do Planejamento, fixando metas de desempenho. Isso também amplia a autonomia administrativa e orçamentária.
2. Fica criado um bônus de desempenho institucional (BDI), pago a título de incentivo financeiro aos órgãos da administração pública que cumpram as metas preestabelecidas nesses contratos.
3. As economias feitas por cada órgão com as “despesas correntes” (gastos administrativos) poderão ser reinvestidas nos próprios órgãos e aplicadas em aprimoramento da gestão e valorização do pessoal. É o chamado Programa de Premiação por Economia com Despesas Correntes.
4. O mesmo programa prevê incentivo aos servidores, inclusive com oferta de bonificação, para estimular e premiar a implantação de projetos e ações de racionalização no uso dos recursos públicos, entre outras ações.
Senado combateu ônus para empresas
Em 2005, por ato do então presidente Renan Calheiros, o Senado criou um grupo de trabalho para sugerir mecanismos que ajudassem a reduzir ou eliminar os trâmites burocráticos, nas relações entre os cidadãos, as empresas e o Estado. Fizeram parte do grupo os ex-senadores Fernando Bezerra (presidente), Rodolpho Tourinho, Luiz Otávio e Ramez Tebet (já falecido), além do senador Delcidio Amaral (PT-MS).
O relatório do grupo de trabalho dedicou-se mais ao estudo da burocracia existente no processo de formalização de empresas, e não aos entraves burocráticos do cidadão propriamente dito, como é o caso do decreto e do projeto do governo federal. Os senadores apresentaram, à época, propostas que hoje já se tornaram lei, como a criação do Super Simples, da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (Redesim) e a Lei Geral das Micro e Pequenas Empresas.
Entre os itens sugeridos pelos senadores em suas conclusões, havia ainda propostas para redução do custo regulatório do país, um dos mais elevados do mundo, e a recomendação de que fossem aceleradas as discussões em torno das reformas tributária e trabalhista – ambas, até o momento, sem um capítulo final.
Cidadão enfrenta obstáculos de papel, carimbo e muito dinheiro
Comparado a Portugal e Espanha, o Brasil tem relações entre governo e cidadão difíceis, complexas, cheias de obstáculos, avalia o advogado José Piquet Carneiro, presidente do Instituto Hélio Beltrão, instituição privada, sem fins lucrativos, que estuda burocracia, ética e administração pública.
– As medidas anunciadas retomam princípios da administração simplificada e atos do Programa de Desburocratização lançados há três décadas pelo ex-ministro Hélio Beltrão. A iniciativa é válida, ainda que apenas restabelecendo normas já em vigor, mas caíram em desuso – diz o advogado.
Ele prevê dificuldades para implementar as medidas, devido à resistência cultural do Estado brasileiro, de desconfiar do cidadão e de exigir comprovações e documentos absurdos.
Segundo ele, só no Brasil é preciso ir ao cartório reconhecer firma de um documento, quando bastaria que ele fosse assinado pelo interessado na presença do servidor público.
– Reconhecimento de firma e cópia autenticada são burocracias que servem aos cartórios, interessados no discurso de reforço à segurança nas transações comerciais. Mas isso é propaganda enganosa, argumento falacioso. Se eu assino na sua frente e você na minha, e ambos conferimos as nossas identidades, não pode haver segurança maior. Quando você compra um equipamento de R$ 1 milhão de uma empresa não precisa reconhecer firma, e ainda assim a transação comercial é confiável e segura.
Os cartórios repetem essa cultura do medo. Vá lá que 2% ou 3% das pessoas fraudem uma transação comercial. Mas isso não justifica que os outros 97% honestos tenham que se submeter a exigências absurdas. O reconhecimento de firma não dá validade maior ao documento.
Para o cidadão, conseguir aposentadoria é o maior desafio
A pesquisa CNI/Ibope mostrou que, para 61% dos entrevistados, os benefícios do INSS são os mais difíceis de serem obtidos. A maioria admitiu que nem sequer enfrentou o processo no INSS, mas percebe que é uma corrida de obstáculos, em que só os bem preparados chegam ao fim.
Outro desafio é abrir ou fechar uma empresa (57 e 52%, respectivamente), seguida da obtenção da habilitação de motorista, do licenciamento ou transferência de veículo (46%) e da compra ou aluguel de imóveis (45%).
Você sabia?
Segundo relatório do Banco Mundial (Bird) de 2006, o Brasil é o quarto país mais burocrático do mundo. Estima-se que cerca de 5% do produto interno bruto (PIB) sejam desperdiçados por conta de entraves burocráticos.
De acordo com o Bird, abrir uma empresa no Brasil demora três vezes mais tempo (152 dias) que a média mundial. Para poder exportar, uma empresa nacional precisa gastar 39 dias apenas cumprindo formalidades legais.
Os cinco tipos de cartório
Registro Civil
Registra nascimentos, casamentos, óbitos, divórcios e outros documentos
Protesto
Protesta títulos não pagos, como duplicatas, cheques, promissórias etc.
Registro de Imóveis
Registra e fiscaliza a transmissão de propriedades imobiliárias
Registro de Títulos e Documentos e de Pessoas Jurídicas
Registra documentos de bens móveis, imóveis, sociedades civis e religiosas etc.
Tabelião de Notas
Lavra testamentos, escrituras e procurações
Fonte: Jornal do Senado – 09 a 15 de fevereiro