Artigo – Concorrência sucessória entre cônjuge e companheira na união estável …

Concorrência sucessória entre cônjuge e companheira na união estável quando esta se dá concomitantemente com o casamento

Por Denise Kemmerich: Bacharel em Direito pela Ulbra, campus Cachoeira do Sul

 

“O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela”. Maria Berenice Dias

RESUMO

Este trabalho discute o direito a concorrência sucessória entre o cônjuge e a companheira na união estável quando esta se dá em concomitância com o casamento. Verifica-se com o advento da Constituição de 1988 uma evolução legislativa no conceito de família, pois em seu artigo 226, caput, dispõe que a família é a base da sociedade, tendo especial proteção do Estado. A Constituição, norteada pelos princípios da Dignidade da Pessoa Humana, Monogamia, Afetividade e da Pluralidade de Formas de Família, preconiza como valores para a constituição de uma entidade familiar o afeto, a solidariedade, a lealdade, o respeito e o amor. Assim, não pode o legislador excluir qualquer entidade que se constitua mediante estes requisitos. O ordenamento jurídico existente não aborda o tema que se refere à sucessão na situação de união dúplice e, tampouco analisa os efeitos patrimoniais dela decorrentes. Por sua vez, a jurisprudência não é pacífica quanto a discussão da sucessão entre a companheira com o cônjuge do de cujus, com decisões de que é possível uma pessoa manter duas famílias concomitantemente, e com as duas evidenciar “affectio maritalis“. Indo além, a Constituição, no § 8º, do artigo 226, diz que o Estado tem o dever de assegurar a assistência à família na pessoa de cada um que a integra, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações, priorizando o melhor interesse da pessoa, com isto não podem ser protegidas entidades familiares e desprotegidas outras, pois esta exclusão atingiria diretamente as pessoas que integram esta relação que não se encontra amparada na lei, comprometendo assim a realização do macro princípio da dignidade da pessoa humana. Neste trabalho utilizou-se como método de pesquisa o método dialético e o método hipotético-dedutivo.

Palavras-chave: concorrência sucessória, cônjuge, companheira, concomitante.

ABSTRACT

This work discusses the right to successory concurrence between the spouse and the concubine in the stable union when there is an overlap with the marriage. It is possible to verify that with the advent of the Constitution of 1988 a legislative evolution in the concept of family because in its article 226, caput, shows that the family is the base of society, having special protection of the government. The Constitution, oriented by the principles of Dignity of the Human Person, Monogamy, Affectivity and the plurality of forms of family, preaches as values for the constitution of a family entity affection, solidarity, loyalty, respect and love. Thus, the legislator cannot exclude any entity which constitutes according to these prerequisites. The existent juridical ordering does not deal with the theme which refers to succession in the situation of double union and, does not analyze the patrimonial effects resulting from it. In its turn, the jurisprudence is not pacific in relation to the discussion of succession between the concubine and the spouse, with decisions that it is possible for a person to keep two families at the same time, and with both perceive “affectio maritalis”. Going beyond, the Constitution, in the 8th paragraph of article 226, says that the State has the obligation of serving the family in the person of each one who integrates it, creating mechanisms to prevent violence in their relations, giving priority to the best interest of the person, with this, it is not correct to protect some family and not others, because this exclusion would reach directly people who integrate this relation that is not protected by law, compromising this way the accomplishment of the macro principle of dignity of the human person. It was utilized in this work as a research method the dialectic method and the hypothetical deductive method.

Key words: Successory concurrence, spouse, concubine, overlap.

Sumário :INTRODUÇÃO.1.CONCEITO DE FAMÍLIA.2.OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS PARA O DIREITO DE FAMÍLIA.2.1.Princípio da Dignidade Humana.2.2.Princípio da Monogamia.2.3.Princípio da Afetividade.2.4.Princípio da pluralidade de formas de formas de família.3.UNIÃO ESTÁVEL PARALELA AO CASAMENTO.4.DIREITO SUCESSÓRIO NA UNIÃO ESTÁVEL E NO CASAMENTO.5 CONCORRÊNCIA SUCESSÓRIA DO COMPANHEIRO COM O CÔNJUGE SOBREVIVENTE. CONCLUSÕES. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


INTRODUÇÃO

O Direito de família encontra-se em processo de reconstrução, amparado pelos ideais de despatrimonialização e repersonalização que orientam o novo modelo de Direito Civil. Isto vem sobrevindo desde o advento da Constituição Federal de 1988, que trouxe para seu bojo, na forma de dispositivo, o princípio da dignidade da pessoa humana, elevado como status de fundamento da República.

Em face dessa alteração, houve uma profunda mudança no estudo do Direito de Família, houve a descaracterização da excessiva preocupação pelas relações patrimoniais e passou a ser consagrada a dignidade da pessoa humana, onde a pessoa é supervalorizada.

A sociedade contemporânea está em constante evolução, nem mesmo a legislação consegue acompanhá-la. Entretanto, as restrições efetivadas aos direitos e garantias fundamentais não devem ultrapassar o limite intangível imposto pelo princípio da dignidade da pessoa humana.

Neste contexto, verifica-se atualmente, uma crescente demanda, onde os casos de união estável concomitante com o casamento foram aparecendo nos tribunais com o propósito de achar a solução para a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum, porém o legislador não cuidou de dar tratamento jurídico a essas entidades. Não há consenso sobre essa matéria, ao contrário, a doutrina pouco aborda esse tipo de relação, analisando menos ainda os efeitos patrimoniais dela decorrentes e a jurisprudência tem-se manifestado a respeito num e outro sentido.

O presente trabalho tem por finalidade discutir esse assunto atual, polêmico, discrepante e acima de tudo uma realidade em nossa sociedade, sendo esses os principais motivos responsáveis pelo desafio de escolher e escrever sobre o tema: “Concorrência sucessória entre cônjuge e companheira na união estável quando esta se dá concomitante com o casamento”.

Esse trabalho tem por característica ser apresentado em linguagem simples, de fácil compreensão, com o devido cuidado de envolver citações explicativas e comparativas, extraídas de obras renomadas e ainda apresentar jurisprudências que retratam o posicionamento da corte jurídica a respeito da matéria. Utiliza-se bibliografia com renomados doutrinadores, que escrevem de maneira clara e inteligente sobre o assunto em questão.

Sua divisão apresenta cinco capítulos, bem definidos, construídos de forma clara e concatenada das idéias, que servirá de auxílio no entendimento e compreensão do tema pelos leitores e estudantes, público alvo dessa monografia.

O primeiro capítulo trata do conceito atual de família, onde se analisou suas várias interpretações e a evolução que esse conceito sofreu com o advento da Constituição Federal de 1988 resultando em profundas modificações no paradigma de família.

O segundo capítulo aborda sobre a fundamental importância dos princípios para o direito de família e subdivide-se em quatro tópicos, onde estuda-se os princípios inerentes ao direito de família. Pode-se dizer que esse estudo é de suma importância para a compreensão do tema proposto, pois serve como “alicerce” para as nossas críticas, indagações e conclusões.

O terceiro capítulo estuda a união estável paralela ao casamento. Num primeiro momento analisa-se o reconhecimento da união estável, sendo essa elevada constitucionalmente ao patamar de entidade familiar merecedora de especial proteção do Estado. Após, de forma sucinta aborda-se o conceito e os pressupostos da união estável, analisando e criticando os diferentes tratamentos recebidos por esse instituto.

O quarto capítulo estuda o direito sucessório na união estável e no casamento. Primeiramente refere-se ao tratamento diferenciado recebido por esses institutos pelo legislador ordinário. Num segundo momento, faz-se um paralelo do tratamento sucessório disposto no Código Civil inerente ao casamento e à união estável.

O quinto, e último capítulo é onde se concentra o âmago da questão proposta no tema dessa monografia, apresenta-se um estudo e uma sinopse de entendimentos doutrinários e principalmente jurisprudenciais, ante a possibilidade da concorrência sucessória da companheira com o cônjuge sobrevivente, concedendo efeitos patrimoniais às relações dúplices reconhecidas judicialmente.

Em suma, não se tem por objetivo exaurir todas as discussões a respeito do tema, pois nem mesmo o Código Civil, em vigor a partir de janeiro de 2003, conseguiu acompanhar e contemplar todas as indagações e inquietações do Direito de Família Contemporâneo, porém o intento é contribuir para a formação de um pensamento jurídico sistematizado e esclarecer as dúvidas que se somam.


1 CONCEITO DE FAMÍLIA.

Até o advento da Constituição Federal de 1988, o conceito jurídico de família era excessivamente restrito, pois o Código Civil de 1916 conferira status familiae exclusivamente a um homem e uma mulher unidos pelo matrimônio e aos filhos advindos desta união, trazendo em sua versão original uma visão rigorosa e discriminatória da família.

O modelo único de família era caracterizado pela excessiva preocupação nas relações voltadas para si mesmo e nas relações patrimoniais, tanto que a felicidade dos seus integrantes, na maioria das vezes, era desprezada pela manutenção do vínculo familiar, impedindo sua dissolução e punindo severamente o cônjuge tido como culpado na separação judicial.

A Carta Magna, ao preconizar o princípio da Dignidade Humana provoca uma profunda alteração no paradigma de família. A partir dele, os requisitos para a constituição de uma entidade familiar não são mais jurídicos e sim fáticos: afeto, solidariedade, lealdade, confiança, respeito e amor.

Diante disso, pode-se observar que a entidade familiar excede os limites da previsão jurídica, que se restringe ao casamento, à união estável e à família monoparental, podendo compreender todo e qualquer agrupamento de pessoas onde permeie o elemento afeto (affectio familiae).

Nos dizeres de Giselda Hironaka, não importa a posição que o indivíduo ocupa na família, ou qual a espécie de grupamento familiar a que ele pertence, o que importa é pertencer ao seu âmago é estar naquele idealizado lugar onde é possível integrar sentimentos, esperanças, valores e se sentir, por isso, a caminho da realização de seu projeto de felicidade. [01]

O conceito de família passa por constantes transformações e estas acabam se refletindo na lei, pois o art. 226, caput, da Constituição Federal de 1988 dispõe que a família é a base da sociedade, tendo especial proteção do Estado.

Sílvio de Salvo Venosa contribui para este ensinamento, salientando que o organismo familiar passando por constantes mutações tornando-se evidente que o legislador deve se manter atento às necessidades de alterações legislativas, não podendo deixar de cumprir a sua importante e permanente função social de proteção à família. [02]

Em suma, pode-se dizer que o conceito de família é um agrupamento que se forma espontaneamente nos meios sociais, organizados por meio de regras culturalmente elaboradas que configuram modelos de comportamento, onde os que a compõem ocupam um lugar sem estarem necessariamente ligados biologicamente, sendo que esta estrutura familiar deve ser trazida para o direito. [03]


2 OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS PARA O DIREITO DE FAMÍLIA.

Não tem como se falar em família, sem fazer menção aos princípios que norteam tal instituição, pois necessariamente o Direito de Família deve ser analisado sob o prisma da Constituição Federal.

Maria Berenice Dias, citando Paulo Bonavides, assevera: “os princípios constitucionais foram convertidos em alicerce normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico do sistema constitucional”. [04]

No que tange ao Direito de Família deve-se acompanhar a realidade e a evolução social da família, com isto os princípios ganham fundamental importância sendo utilizados como linhas mestras do Direito Privado. [05]

Nem mesmo o Código Civil, em vigor a partir de janeiro de 2003, conseguiu acompanhar e contemplar todas as indagações e inquietações do Direito de Família Contemporâneo. A vida, as relações sociais, os costumes, vão impulsionando os operadores do direito para uma constante reorganização do Direito de Família, obrigando-os a buscar nos princípios gerais o necessário para melhor viabilizar o que mais se aproxima do justo. [06]

Muitos destes princípios são cláusulas gerais, lacunas abertas deixadas pelo legislador para serem complementadas pelo aplicador do direito, exercendo assim função de otimização e sistematização do direito.

Aqui cabem as sábias palavras de Maria Helena Diniz, citadas por Rodrigo Pereira da Cunha em sua tese de doutorado:

Sem os princípios não há ordenamento jurídico sistematizável nem sucessível de valoração. A ordem jurídica reduzir-se-ia a um amontoado de centenas de normas positivas, desordenadas e axiologicamente indeterminadas, pois são os princípios gerais que, em regra, rompem a inamovibilidade do sistema, restaurando a dinamicidade que lhe é própria. [07]

Reconhecendo a importância dessa fonte do Direito, se faz necessário ilustrar alguns princípios que são de suma importância para o Direito de Família, sem os quais não é possível a aplicação de um direito que esteja próximo do ideal de justiça.

2.1 Princípio da Dignidade Humana.

A Constituição Federal vigente, logo em seu art. 1º [08] estabelece os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito. Consistem esses em pontos de partida para todas as outras normas constitucionais, e, por conseguinte devem influir no teor de todas as normas infraconstitucionais.

Dentre outros aspectos estabeleceu-se, no seu inciso III [09], a dignidade da pessoa humana como princípio basilar do Estado Brasileiro, e, por conseqüência, houve uma profunda mudança no estudo do direito de Família.

Sendo afirmado já no primeiro artigo da Constituição, é considerado o princípio máximo, ou macroprincípio, do qual se irradiam todos os demais: liberdade, autonomia privada, cidadania e solidariedade, todos consagrados como princípios éticos. [10]

Reconhecendo a submissão de outros preceitos constitucionais à dignidade humana, Flávio Tartuce menciona a conceituação que Ingo Wolfgang Sarlet dá ao princípio em questão:

O reduto intangível de cada indivíduo e, neste sentido, a última fronteira contra quaisquer ingerências externas. Tal não significa, contudo, a impossibilidade de que se estabeleçam restrições aos direitos e garantias fundamentais, mas que as restrições efetivadas não ultrapassem o limite intangível imposto pela dignidade da pessoa humana. [11]

Diante deste regramento, houve a descaracterização da excessiva preocupação pelas relações patrimoniais, ou seja, a despatrimonialização, e com isto passou a ser consagrada a dignidade da pessoa humana, onde a pessoa é supervalorizada.

É no Direito de Família que o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana tem a maior ingerência ou atuação, o que significa, em primeira e última análise, uma igual dignidade para todas as entidades familiares, sendo indigno dar tratamento diferenciado aos vários tipos de constituição de família. [12]

Portanto, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana significa para o Direito de Família a consideração e o respeito à autonomia dos sujeitos e a sua liberdade, legitimando e incluindo na sociedade todas as formas de família, respeito a todos os vínculos afetivos e a todas as diferenças. [13]

No momento em que o Estado reconhece a dignidade da pessoa humana por preceito constitucional torna-o o mais importante valor reconhecido pela ordem jurídica brasileira, tendo-se presente o princípio da liberdade de a pessoa escolher e constituir a entidade familiar que melhor corresponda à sua realização existencial, sendo defeso ao legislador definir a escolha mais adequada. [14]

Tal evolução valorativa obriga os civilistas modernos a adotar uma nova postura, desnudando-se de todos os preconceitos, tanto em relação à interpretação quanto à aplicação de normas e conceitos jurídicos, evitando assim tratar de forma indigna toda e qualquer pessoa humana, principalmente na seara do Direito de Família, que possui a intimidade, a afetividade e a felicidade como seus principais valores. [15]

2.2 Princípio da Monogamia.

Ao longo do processo evolutivo que a família sofreu, algumas características se tornaram arcaicas e, em razão disto, foram alteradas pela legislação, como ocorreu com a base patriarcal e o reconhecimento da família somente com o matrimônio. De outra forma, alguns elementos foram mantidos pelo legislador, como a monogamia.

Com efeito, entende-se por monogamia o sistema de constituição familiar pelo qual o homem tem uma só esposa ou companheira e a mulher um só esposo ou companheiro.

Entretanto, há divergências quanto ao entendimento de ser a monogamia um preceito constitucional ou uma regra atinente à moral.

Hodiernamente, tem-se defendido a adoção de um conceito extremamente amplo para o status familiae, identificando a sua presença em toda e qualquer relação em que esteja presente o elemento afetividade, buscando assim, evitar qualquer espécie de discriminação que possa ser utilizada como critério para o não reconhecimento desta relação.

Partindo desta premissa, alguns autores atribuem status de família aos envolvimentos existentes em paralelo ao casamento ou a união estável, causando afronta ao princípio da monogamia vigente, não o reconhecendo como um preceito constitucional do direito estatal de família, mas sim de uma regra restrita à proibição de simultaneidade de relações. [16]

A título de ilustração, cita-se a autora Maria Berenice Dias que perfilha desta percepção:

Pretender elevar a monogamia ao status de princípio constitucional autoriza que se chegue a resultados desastrosos. Por exemplo, quando há simultaneidade de relações, simplesmente deixar de emprestar efeitos jurídicos a um ou, pior a ambos os relacionamentos, sob o fundamento de que foi ferido o dogma da monogamia, acaba permitindo o enriquecimento ilícito exatamente do parceiro infiel. Resta ele com a totalidade do patrimônio e sem qualquer responsabilidade para com o outro. Essa solução que vem sendo adotada pela doutrina e aceita pela jurisprudência afasta-se do dogma maior de respeito à dignidade da pessoa humana, além de chegar a um resultado de absoluta afronta à ética. [17] [grifo da autora]

Por conseguinte, alguns autores acordam que a monogamia consiste em um dogma imposto pelo próprio ordenamento jurídico, sendo um sistema organizador das formas de constituição de famílias.

Colaciona-se Rodrigo da Cunha Pereira que comunga com este entendimento:

O princípio da monogamia, embora funcione também como um ponto-chave das conexões morais das relações amorosas e conjugais, não é simplesmente uma moral ou moralizante. Sua existência nos ordenamentos jurídicos que o adotam tem a função de um princípio jurídico ordenador. Ele é um princípio básico e organizador das relações jurídicas da família do mundo ocidental. Se fosse mera regra moral teríamos que admitir a imoralidade dos ordenamentos jurídicos do Oriente Médio, onde vários Estados não adotam a monogamia. [18]

Do exposto, constata-se que não há uma compreensão uníssona quanto à monogamia, alguns autores defendem ser um preceito constitucional já outros entendem tratar-se de uma regra moral, destarte, cabe ao julgador recorrer a um valor maior, dentro do seu poder de discricionariedade, atingindo o bem maior que é a justiça.

2.3 Princípio da Afetividade.

Na era da despatrimonialização do Direito de Família, onde a Constituição Federal eleva como fundamento a dignidade da pessoa humana e atribui ao Estado à proteção especial da família, em que o formato hierárquico da família cedeu à sua democratização, o foco jurídico se tornou a pessoa humana, em detrimento do patrimônio.

Atualmente as relações são muito mais de igualdade e respeito mútuos, devendo as normas do direito positivo convergir para a realização do elemento finalístico da proteção estatal que é o pleno desenvolvimento e estruturação da personalidade da pessoa, não mais existindo razões para uma proteção supra-individual em favor de objetivos políticos, religiosos ou morais que era vislumbrada no passado. [19]

Diante do exposto, viu-se que a dignidade da pessoa humana passa a ser o foco da ordem jurídica, passando a se valorizar a família na pessoa de cada membro que a integra, e com esta valorização constante decorre o princípio da afetividade.

Para ilustrar exibem-se os ensinamentos de Tepedino: “merecerá tutela jurídica e especial proteção do Estado a entidade familiar que efetivamente promova a dignidade e a realização da personalidade de seus componentes”. [20]

Diante desta nova estrutura familiar, o afeto pode ser apontado como o principal fundamento das relações familiares, pois a família passou a se vincular e a se manter predominantemente por elos afetivos. [21]

Pereira perfilha deste entendimento, dizendo que a família é constituída por um núcleo afetivo, se justificando principalmente pela solidariedade mútua, citando Paulo Luiz Netto Lôbo, que assim se pronunciou:

A realização pessoal da afetividade e da dignidade humana, no ambiente de convivência e solidariedade, é a função básica da família de nossa época. Suas antigas funções econômica, política religiosa e procracional feneceram, desapareceram, ou desempenham papel secundário. Até mesmo a função procracional, com a secularização crescente do direito de família e a primazia atribuída ao afeto, deixou de ser sua finalidade precípua. [22]

Diante do demonstrado pode-se assentar que o afeto é tido como elemento constitutivo e essencial de todo e qualquer vínculo familiar, inobstante a palavra afeto não constar de forma explícita na Constituição Federal, é consagrado como direito fundamental, sendo merecedor de tutela jurídica.

2.4 Princípio da pluralidade de formas de família.

Na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, estimulada pelas expressivas transformações do contexto político, econômico e social do país, a família foi tratada de uma forma mais pontual, provocando uma verdadeira revolução no Direito de Família, houve o rompimento com a premissa de que as uniões matrimonializadas eram o único instituto formador e legitimador da família brasileira. [23]

O princípio da pluralidade de formas de família foi reconhecido pelo Estado, ao dispor na Constituição Federal em seu art. 226 [24] sobre outras formas de família (união estável e a família monoparental), princípio este, agregado com o principio máximo que é o da dignidade da pessoa humana, é determinante para a compreensão e legitimação de todas as formas de família além das previstas constitucionalmente.

Segundo Pereira, embora não tenha nominado todas as entidades familiares existentes, a Constituição de 1988 chancelou-lhes proteção ao suprimir a locução “constituída pelo casamento”, presente nas Constituições de 1967 e 1969 [25], mencionando a opinião de Paulo Luiz Netto Lôbo: “a exclusão não está na Constituição, mas na interpretação”. [26]

Gustavo Tepedino, no mesmo sentido proclamando o princípio máximo da dignidade da pessoa humana:

À família, no direito positivo brasileiro, é atribuída proteção especial na medida em que a Constituição entrevê o seu importantíssimo papel na promoção da dignidade humana. Sua tutela privilegiada, entretanto, é condicionada ao atendimento desta mesma função. Por isso mesmo, o exame da disciplina jurídica das entidades familiares depende da concreta verificação do entendimento desse pressuposto finalístico: merecerá tutela jurídica e especial proteção do Estado a entidade familiar que efetivamente promova a dignidade e a realização da personalidade de seus componentes. [27]

O mesmo autor continua destacando que nada impede o legislador usar de extensão interpretativa para disciplinar, paulatinamente, as demais entidades familiares, em decorrência da aplicação do princípio de pluralidade de formas da família:

Ao reverso, as normas que tem a sua ratio vinculada às relações familiares devem ser estendidas a toda e qualquer entidade familiar, nos termos constitucionais, independentemente da origem da família; tenha sido ela constituída por ato jurídico solene ou por relação de fato; seja ela composta por dois cônjuges ou apenas por um dos genitores, juntamente com os seus descendentes. Não há razão, por exemplo, para que um conflito relacionado a qualquer das modalidades constitucionais de entidade familiar seja submetido a uma Vara cível, quando na comarca haja Vara especializada em matéria de família. Tratar-se-ia de discriminação intolerável por parte da lei estadual de organização judiciária. [28]

Pode-se dizer que a relação das entidades familiares contidas no art. 226 é meramente exemplificativa e não numerus clusus, não excluindo as outras várias entidades familiares que existem além das ali previstas que merecem serem abrigadas sob o manto do Direito de família e, conseqüentemente, protegidas pelo Estado.

Ainda sobre a inclusão de outras várias entidades familiares ao amparo do art. 226, destaca Maria Berenice Dias:

Excluir do âmbito da juridicidade entidades familiares que se compõem a partir de um elo de afetividade e que geram comprometimento mútuo e envolvimento pessoal e patrimonial é simplesmente chancelar o enriquecimento injustificado, é ser conivente com a injustiça. [29]

É notória a existência de várias outras formas de entidades familiares do que as previstas constitucionalmente. Uma família contemporânea se estabelece a partir de uma relação de afeto, solidariedade, lealdade, confiança, amor e principalmente respeito às diferenças, é neste preâmbulo que se aplica o princípio da pluralidade de formas da família.


3 UNIÃO ESTÁVEL PARALELA AO CASAMENTO.

Anterior ao dispositivo constitucional, que em seu art. 226, § 3º, reconhece a união estável como entidade familiar, havia senão o casamento como família legítima tutelada pelo Estado, o que contrastava com a pluralidade de famílias já existentes na sociedade civil.

Há muito tempo, com efeito, existia a união de um homem e uma mulher com o objetivo de constituir uma família, às margens da legislação. Agora há norma constitucional disciplinando a União Estável declarando-a merecedora de especial proteção do Estado.

A Constituição, ao dispor sobre a instituição da família como base da sociedade e incluindo em seu rol a união estável, deu forma a duas grandes correntes formadas na doutrina e na jurisprudência, em torno da união estável.

A primeira delas entende que com a assimilação constitucional de modelos familiares fundados em relações extramatrimoniais, os direitos decorrentes de uma família fundada no casamento devem ser equiparados com os resultantes da constituição de uma união estável, e, para isto basta que se comprove esta relação para produzir os efeitos previstos para o casamento. [30]

Ainda sob o aspecto, expõe na mesma linha o eminente Ministro Carlos Alberto Menezes Direito:

Com a nova disciplina constitucional, o que se tratava como sociedade concubinária, produzindo efeitos patrimoniais, com lastro nas regras da sociedade de fato, do Código Civil, passa ao patamar da união estável, reconhecida constitucionalmente como entidade familiar e, como tal, gozando da proteção do Estado, legitimada para os efeitos das regras do direito de família. Assim, não se deve mais falar em concubinato, em sociedade de fato. São termos que têm de ser arquivados […] como conseqüência, o tratamento de todas as questões relativas à união estável deve ser nas varas especializadas de família, não mais nas varas cíveis. Com isso, também, estão superadas tanto a necessidade da prova do esforço comum, como a indenização por serviços domésticos. No primeiro caso, é de ser reconhecida a comunhão de bens adquiridos na sua constância e, no segundo caso, deve ser facultado o pensionamento. [31] [grifou-se]

Perfilha com este entendimento o juiz substituto Eduardo Tavares dos Reis, em atuação na Vara de Família de Rio Verde, que negou pedido de indenização por serviços prestados, durante o tempo em que a autora viveu em concubinato com o companheiro por entender que esta relação é uma forma de manifestação familiar. [32]

Contra esta corrente sustenta-se, majoritariamente, que o constituinte com a previsão do art. 226, tratou da união estável apenas para efeito de receber proteção do estado e não que esta tutela representasse a pretendida equiparação com o instituto do casamento, usando como argumento que o fato de o constituinte atribuir ao legislador ordinário o dever de facilitar a conversão da união estável em casamento não faria sentido se as duas figuras estivessem igualadas. [33]

Gustavo Tepedino aduz ainda sob o aspecto da equiparação de situação jurídica do companheiro(a) à de homem casado ou mulher casada a decisão nos embargos infringentes do Desembargador José Carlos Barbosa Moreira:

[…] as medidas protetoras porventura adotadas pelo Estado em benefício da família devem aproveitar também às uniões não formalizadas, mas estáveis, entre homem e mulher as quais se consideram, para esse fim, como “entidades familiares”. Daí a supor que a norma atribui ao homem ou à mulher, partícipe da união estável, situação jurídica totalmente equiparada à de homem casado ou mulher casada, medeia boa distância. [34]

Neste contexto, a união estável, posteriormente ao dispositivo constitucional, foi objeto de leis, onde sua matéria passou a ser regulamentada: Lei 8.971 de 29 de dezembro de 1994, Lei 9.278 de 10 de maio de 1996, e Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002 que instituiu o novo Código Civil.

Observa-se, todavia, que o Código Civil não revogou as Leis 8.971/1994 e 9.278/1996, por ser lei posterior, conforme regra insculpida no § 1º [35], art. 2º da Lei de Introdução do Código Civil. Assim, não tendo o legislador se manifestado a cerca da ab-rogação da lei precedente, e não sendo incompatíveis os diplomas, ocorre a vigência concomitante em toda matéria que não for conflitante, havendo conflito, permanecerá o disposto no Código Civil.

O Código Civil, em seu art. 1.723 [36] define a União Estável como sendo entidade familiar entre homem e mulher, que a união seja duradoura (independente do prazo que o casal está junto), pública (que as pessoas tenham conhecimento), contínua (sem interrupções significativas) e com o objetivo de constituir família (que é a comunhão de vida e interesses).

A união entre o homem e uma mulher inicia com a afeição recíproca, que gera a assistência mútua e a conjugação de esforços para alcançar o bem comum com a convivência, assim, configura-se a união estável, não mais pela exigência de um período de duração mínima de cinco anos.

Nesta contextura, a conceituada magistrada gaúcha Maria Berenice Dias, profere:

De todo descabido estabelecer requisito temporal para sua configuração, delimitação nunca posta pela jurisprudência, a quem se deve a construção desta figura jurídica. Igualmente, o texto constitucional, ao emprestar juridicidade ao instituto, não lhe fixou prazo. [37]

O art. 1º da Lei 8.971/94 que estabelecia esta exigência de tempo foi derrogado pela Lei 9.278/1996, afastando a exigência de tempo mínimo, como conditio sine qua non para sua tipificação.

Desde então a legislação brasileira visa mais a qualidade da relação familiar e não os critérios pré-estabelecidos como pelo prazo de convivência do casal e a existência de filhos, assim, preenchendo os requisitos de afetividade, estabilidade, ostensibilidade e a intenção do casal de constituir família configuram a união estável.

Na definição de união estável encontram-se os pressupostos que devem se fazer presentes para o seu reconhecimento: que a relação se dê entre um homem e uma mulher, com a convivência pública, contínua e duradoura estabelecida com o objetivo de constituir família.

A saber, que a união se dê entre um homem e uma mulher, com isto o legislador exceptua a união de companheiros do mesmo sexo, o que exclui a possibilidade de homossexuais nela se abrigarem.

Que haja convivência pública, contínua e duradoura. Entende-se por convivência pública aquela união em que os companheiros se apresentem à sociedade como se casados fossem, não sendo aceito o relacionamento clandestino ou dissimulado, apenas para fins de manter relações secretamente.

A relação discreta difere da secreta, não obstando o reconhecimento da união estável quando o relacionamento é conhecido apenas no círculo social dos que convivem.

Segundo Maria Berenice Dias, o vocábulo “público” não deve ser interpretado nos extremos de sua significação semântica:

A publicidade denota a notoriedade da relação no meio social freqüentado pelos companheiros, objetivando afastar da definição de entidade familiar as relações menos compromissadas, nas quais os envolvidos não assumem perante a sociedade a condição de “como se casados fossem”. [38] [grifo da autora]

Diante da questão supra mencionada, a publicidade tem relação direta para a caracterização da entidade familiar, sendo condição indispensável para reconhecê-la.

Apesar de a lei não exigir decurso de lapso temporal para a caracterização da união estável, esta relação há de ser contínua e duradoura, ou seja, não deve ser esporádica, efêmera, circunstancial, como aquelas que acontecem em apenas determinadas épocas ou por curtos períodos de tempo.

A continuidade e a durabilidade conferem à união a necessária estabilidade do relacionamento, de onde sobressai de modo claro o desejo mútuo de formar família e a postura adotada no meio social para serem identificados como um par.

E formar família não significa, como no passado, a união de duas pessoas pelo matrimônio e com filhos, tanto que a Constituição abriga na proteção à família também a constituída pela união estável e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

O objetivo de constituir família se verifica pelo afeto que une duas pessoas, que convivem em associação aos propósitos e afins comuns, com obrigações e direitos recíprocos, sendo o princípio da afetividade um fundamento comum à formação da família.

Concorrendo com esta compreensão, Paulo Luiz Netto Lôbo afirma: “onde houver uma relação ou comunidades unidas por laços de afetividade, sendo estes suas causas originária e final, haverá uma família”. [39]

Também se apresenta como um dos pressupostos exigidos pela união estável a inexistência de impedimentos matrimoniais. O § 1º [40] do artigo 1.723 do Código Civil, preleciona que a união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do artigo 1.521; não se aplicando a incidência do inciso IV no caso de a pessoa casada se achar separada de fato, sendo, portanto, empecilho para a união estável à coexistência de casamento paralelo, cujo cônjuge não está nem fática e nem juridicamente separado.

Atualmente, a doutrina, a jurisprudência e as leis infraconstitucionais pautam a união estável concomitante com o casamento como concubinato adulterino, tratando-a como uma instituição fora do campo de família, pertencendo seus efeitos ao campo obrigacional.

Neste contexto, transcrevem-se os ensinamentos do professor da Universidade Federal de Minas Gerais, Marco Aurélio S. Viana:

A relação que envolve uma pessoa casada que mantenha o casamento concomitante, não merece tutela legal, pelo menos em relação àquele que é casado. Nessa hipótese, o casamento não é apenas, um vínculo formal, mas uma realidade, que convive com outra, que é a relação fora do casamento. Admiti-la é permitir que a própria lei especial seja afrontada, pois não se pode falar em respeito e considerações mútuos, que são deveres da união estável. [41] [grifou-se]

Neste sentido preleciona o Superior Tribunal de Justiça, como se observa no seguinte julgado:

Direito civil. Família. Recurso especial. Ação de reconhecimento de união estável. Casamento e concubinato simultâneos. Improcedência do pedido.

– A união estável pressupõe a ausência de impedimentos para o casamento, ou, pelo menos, que esteja o companheiro(a) separado de fato, enquanto que a figura do concubinato repousa sobre pessoas impedidas de casar.

– Se os elementos probatórios atestam a simultaneidade das relações conjugal e de concubinato, impõe-se a prevalência dos interesses da mulher casada, cujo matrimônio não foi dissolvido, aos alegados direitos subjetivos pretendidos pela concubina, pois não há, sob o prisma do Direito de Família, prerrogativa desta à partilha dos bens deixados pelo concubino.

– Não há, portanto, como ser conferido status de união estável a relação concubinária concomitante a casamento válido.

Recurso especial provido. [42] [grifou-se]

A decisão antes destacada foi sustentada no ordenamento jurídico brasileiro que prestigia e adota o princípio da monogamia, inviabilizando o reconhecimento jurídico de uniões estáveis paralelas, sempre quando hígido o casamento ou a anterior relação informal.

Assim vem julgando dominante corrente dos pretórios nacionais, como se extrai do julgado da Apelação Civil de que foi relator o Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos:

[…]Ocorre que há um óbice normativo inviabilizando que se atribua a tal convivência o status de uma união estável, que, ao lado do casamento, é, por expressa previsão constitucional, meio de formação de entidades familiares. A vedação de que falo está prevista no parágrafo primeiro do art. 1.723 do CC, dispondo que a união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521, entre os quais está, no inc. VI, a proibição ao casamento de pessoas já casadas. […] E assim se exige porque o fato de a união estável ter sido constitucionalmente recepcionada como entidade familiar merecedora da proteção do Estado não significa, jamais, que o nosso sistema jurídico tenha abandonado a concepção monogâmica de constituição de famílias. [43]

Contudo, tem sido cada vez mais freqüente deparar com decisões judiciais reconhecendo direitos às uniões paralelas ao casamento.

De acordo com o entendimento da magistrada Maria Berenice Dias o não reconhecimento da união estável, em face do impedimento, é atitude meramente punitiva à pessoa que mantém relacionamentos afastados do referendo estatal, gera irresponsabilidades e enseja o enriquecimento ilícito de um em desfavor do outro. Complementa ainda que, àquele que vive do modo que a lei desaprova, acaba sendo beneficiado, porque simplesmente, não lhe advém qualquer responsabilidade, encargo, ônus ou sanção e, que a Justiça não pode ser cúmplice de que infringir o dogma da monogamia assegure privilégios. [44]

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul vem reconhecendo em seus julgados a existência de uniões paralelas. Para melhor compreensão cito decisão do Eminente Desembargador Rui Portanova:

APELAÇÃO. UNIÃO DÚPLICE. UNIÃO ESTÁVEL. PROVA. MEAÇÃO. “TRIAÇÃO” . SUCESSÃO. PROVA DO PERÍODO DE UNIÃO E UNIÃO DÚPLICE A prova dos autos é robusta e firme a demonstrar a existência de união entre a autora e o de cujus em período concomitante a outra união estável também vivida pelo de cujus. Reconhecimento de união dúplice. Precedentes jurisprudenciais. MEAÇÃO (TRIAÇÃO) Os bens adquiridos na constância da união dúplice são partilhados entre as companheiras e o de cujus. Meação que se transmuda em ¿triação¿, pela duplicidade de uniões. DERAM PROVIMENTO À APELAÇÃO. POR MAIORIA. [45][grifou-se]

Neste mesmo sentido aresto julgado da Relatora Maria Berenice Dias:

UNIÃO ESTÁVEL. RECONHECIMENTO. DUPLICIDADE DE CÉLULAS FAMILIARES. O Judiciário não pode se esquivar de tutelar as relações baseadas no afeto, inobstante as formalidades muitas vezes impingidas pela sociedade para que uma união seja “digna” de reconhecimento judicial. Dessa forma, havendo duplicidade de uniões estáveis, cabível a partição do patrimônio amealhado na concomitância das duas relações. Negado provimento ao apelo. [46][grifou-se]

O Superior Tribunal de Justiça, da mesma forma, vem conferindo efeitos às uniões paralelas, cito decisão do relator Ministro Aldir Passarinho Junior:

SEGURO DE VIDA EM FAVOR DE CONCUBINA. Homem casado. Situação peculiar de coexistência duradoura do de cujus com duas famílias e prole concomitante advinda de ambas as relações. Indicação da concubina como beneficiária do benefício. Fracionamento. Inobstante a regra protetora da família, impedindo a concubina de ser instituída como beneficiária de seguro de vida, porque casado o de cujus, a particular situação dos autos, que demonstra “bigamia”, em que o extinto mantinha-se ligado à família e concubinária, tendo prole concomitante com ambas, demanda solução isonômica, atendendo-se à melhor aplicação do Direito. Recurso conhecido e provido em parte para determinar o fracionamento, por igual, da indenização secundária. [47] [grifou-se]

Considerando-se os entendimentos supra citados conclui-se que as uniões paralelas são uma realidade e persistem por toda uma existência, muitas vezes com prole e vasto reconhecimento social.

O fato de os seus componentes terem desobedecido às restrições legais para a constituição da união, afastando-se assim da forma de família eleita pelo Estado, não condiz com a prerrogativa de o Legislador ignorar os efeitos desta convivência com a simples expulsão desta união da tutela jurídica, pois se está diante de uma entidade familiar concomitante ao casamento que merece proteção do Estado.


4 DIREITO SUCESSÓRIO NA UNIÃO ESTÁVEL E NO CASAMENTO.

A Constituição Federal de 1988 concebeu a família de forma plural, prevendo outros modos de constituição da entidade familiar além do casamento. A partir de então, a união estável passou a receber tratamento constitucional e legal, sendo que, erigiram com base no texto constitucional as Leis 8.971/94 e 9.278/96, que conferiam aos companheiros, entre outros direitos, a possibilidade de que participassem da sucessão legítima.

Não obstante, o constituinte ao conferir proteção do Estado à família, o Código Civil de 2002 trouxe tratamento sucessório diferenciado entre essas entidades familiares, o que resultou em críticas, já que não havia razão para diferenciar cônjuge e companheiro na questão de matéria sucessória, sobretudo porque o constituinte previu esta igualdade ao conceber a família de forma plural.

Sílvio de Salvo Venosa, ao analisar o tema, leciona:

Em matéria de direito hereditário do cônjuge e também do companheiro, o Código Civil Brasileiro de 2002 representa verdadeira tragédia, um desprestígio e um desrespeito para nosso meio jurídico e para a sociedade tamanhas são as impropriedades que desembocam em perplexidades interpretativas. Melhor seria que fosse, nesse aspecto, totalmente reescrito e que se apagasse o que foi feito, como uma mancha na cultura jurídica nacional. É incrível o que pessoas presumivelmente cultas como os legisladores pudessem praticar tamanhas falhas estruturais no texto legal […] [48]

Ademais, também é criticável o fato de o dispositivo que trata da sucessão do companheiro ter sido regulado no Capítulo referente a Disposições Gerais, do Título I da sucessão em Geral, como bem aduz Ana Luiza Maia Nevares:

Percebe-se, portanto, a má sistematização do legislador quanto à sucessão na união estável, que deveria estar devidamente regulada no Título II, pertinente à Sucessão Legítima, informada pelos vínculos familiares, no capítulo da ordem da vocação hereditária. [49]

No mesmo sentido, Hironaka esclarece que no projeto original do Código Civil, aprovado em 1984, pela Câmara dos Deputados, não havia nenhum dispositivo que regulasse a sucessão entre companheiros. Posteriormente, o senador Nélson Carneiro apresentou a emenda de nº 358, que tinha por escopo suprir a lacuna do direito positivo pátrio, acrescentando sem muito cuidado, em revisão no congresso o art. 1.790 dispondo acerca da sucessão dos companheiros. [50]

Ainda observa referente à disposição do artigo aludido:

[…]Contudo – e até mesmo por conta de sua inestimável importância – a regra em apreço está topicamente mal colocada. Não é, em absoluto, uma regra relativa às disposições gerais do assunto sucessório, mas é uma verdadeira regra de vocação hereditária para as hipóteses de união estável, razão pela qual deveria estar alocada neste passo de regulamentação e não naquele outro. [51][grifo autora]

Ponderam, Tartuce e Simão, que essa péssima localização, na visão de boa parte da doutrina, reflete a má vontade com que se tratou da regulamentação da sucessão do companheiro, citando Rolf Madaleno:

Mais uma vez resta discriminada a relação afetiva oriunda da união estável que perde sensível espaço no campo dos direitos que já haviam sido conquistados após o advento da Carta Política de 1988, em nada sendo modificada a atual redação do novo Código Civil e será tarefa pertinaz da jurisprudência corrigir estas flagrantes distorções deixadas pelo legislador responsável pela nova codificação civil. [52]

Neste particular, são procedentes as críticas quanto à disposição e inclusão da disciplina nas disposições gerais, quando a matéria de sucessão do companheiro(a) sobrevivente trata de disposição particular.

Entretanto, evidencia-se no novo Código Civil, modificação no direito sucessório, no que tange ao cônjuge e companheiro, sendo visível o tratamento diferenciado dispensado aos institutos familiares do casamento e da união estável [53], sendo sensíveis os prejuízos sofridos pelos companheiros, contrariamente aos cônjuges, que amealharam direitos com a edição da nova codificação. [54]

Observaremos a ocorrência sucessória do cônjuge e companheiro, primeiramente, quanto à convocação dos herdeiros na sucessão legítima, vejamos a prescrição do Código Civil:

Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;

II – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge;

III – ao cônjuge sobrevivente;

IV – aos colaterais.

Devemos observar a inserção pelo legislador brasileiro do novo Código Civil do cônjuge supérstite no rol dos herdeiros necessários, tendo direito à legítima (art. 1.845) [55] e concorrendo com os descendentes e ascendentes do autor da herança.

A primeira classe a ser chamada na ordem da vocação hereditária é a dos descendentes em concorrência com o cônjuge sobrevivente. Todavia, é importante salientar que na concorrência com descendentes, algumas condições deverão ser respeitadas, observando o regime de bens adotado pelos cônjuges no casamento.

O cônjuge não herdará concorrentemente se casado com o de cujus pelo regime de comunhão universal de bens, se casado pelo regime de separação obrigatória de bens (embora a referência equivocada do inciso I do art. 1.829 ao parágrafo único do art. 1.640) e se casado pelo regime de comunhão parcial, não houver o autor da herança deixado bens particulares.

Neste sentido, o cônjuge concorrerá com os descendentes nos regimes de separação convencional de bens, na comunhão parcial em que o autor da herança deixou bens particulares e na participação final nos aqüestos.

No que tange à concorrência sucessória do cônjuge com os descendentes na hipótese do regime de bens na comunhão parcial em que o autor deixou bens particulares, o quinhão hereditário correspondente à meação será repartido exclusivamente entre os descendentes, o cônjuge somente será sucessor nos bens particulares.

Entretanto, tal posição não é pacífica, surgindo correntes contrárias.

Primeiramente, há a corrente seguindo o espírito do legislador pelo qual, em havendo meação, não há sucessão, os doutrinadores Tartuce e Simão citam os ensinamentos de Euclides de Oliveira:

O assunto é manifestamente polêmico, porém comporta distinta solução, em harmonia com o sistema legislativo, que, ao excepcionar da concorrência na herança o cônjuge casado no regime da comunhão universal de bens, deixou clara a opção de que, havendo direito de meação, não há direito de herança em concorrência com os descendentes. [56]

Todavia, há argumentos favoráveis à idéia de que o cônjuge participaria da sucessão no tocante à totalidade da herança. Adepta dessa corrente, Diniz, citada por Tartuce e Simão afirma que:

Infere-se que se erigiu o regime matrimonial de bens do casamento como mero requisito ao direito de suceder do cônjuge, em concorrência com os descendentes do autor da herança. […] Meação não é herança, pois os bens comuns são divididos, visto que a porção ideal deles já lhe pertencia. Havendo patrimônio particular, o cônjuge sobrevivo receberá a sua meação, se casado sob o regime da comunhão parcial de bens, e uma parcela sobre todo o acervo hereditário. [57]

A assertiva da primeira corrente se confirma pelo entendimento da doutrina majoritária pelo qual na comunhão parcial, o cônjuge só concorre com os descendentes no tocante aos bens particulares, e não com relação aos bens comuns. Esse é o entendimento de Flávio Monteiro de Barros, Eduardo de Oliveira Leite, Christiano Cassetari, Francisco José Cahali, Gustavo Rene Nicolau, Jorge Shiguemitsu Fujita, Mário Luiz Delgado, Euclides de Oliveira, Sebastião Amorim, Rodrigo da Cunha Pereira, Rolf Madaleno e Zeno Veloso. [58]

Com base no art. 1.832, se o cônjuge for ascendente dos descendentes com que concorrer, o mínimo que lhe está reservado, além da meação, é uma quarta parte da herança. [59]

Entretanto, o legislador não cuidou da situação em que constarem descendentes filhos do autor da herança e do cônjuge supérstite e filhos somente do autor da herança. Se for manter a prerrogativa de garantia da quarta parte em relação aos filhos comuns acarretaria um prejuízo aos herdeiros não descendentes do cônjuge, com redução da quota hereditária, afrontando o princípio da igualdade jurídica de todos os fil