Jurisprudência Mineira – Entidade familiar – Pessoas do mesmo sexo – Reconhecimento e dissolução

ENTIDADE FAMILIAR – PESSOAS DO MESMO SEXO – RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO – VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL – PARTILHA DE BENS – JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA – FORMA INDEVIDA

– A Constituição da República não considera como entidade familiar a união entre pessoas do mesmo sexo, sendo casuísticas as respectivas definições do art. 226.

– A atuação do juiz, em jurisdição voluntária, só ocorre quando a lei exigir, ou permitir, não podendo a homologação judicial substituir os meios próprios de alienação de bens.

Apelação Cível ndeg. 1.0024.07.480844-5/001 – Comarca de Belo Horizonte – Apelantes: E.R.S. e outra – Relator: Des. Ernane Fidélis

A C Ó R D Ã O
 

Vistos etc., acorda, em Turma, a 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, em negar provimento.

Belo Horizonte, 12 de fevereiro de 2008. – Ernane Fidélis – Relator.

N O T A S T A Q U I G R Á F I C A S
 

DES. ERNANE FIDÉLIS – Cuida-se de pedido de reconhecimento e dissolução de entidade familiar, com a conseqüente partilha de bens comuns, ajuizado por E.R.S. e E.C.N.P., pretendendo seja homologado o acordo quanto ao reconhecimento de entidade familiar, sua dissolução e divisão de bens.

A petição inicial foi indeferida liminarmente, entendendo o d. Juiz ser o pedido juridicamente impossível, com o fundamento de que a entidade familiar entre pessoas do mesmo sexo não é reconhecida pelo nosso ordenamento jurídico.

As requerentes apelaram, pretendendo a reforma da r. sentença, alegando que, em momento algum, pugnaram pelo reconhecimento de união estável, mas de existência de entidade familiar, por convivência comum; que nosso sistema jurídico identifica, especialmente no art. 226 da CF, alguns tipos de entidade familiar, o que não quer dizer que outras formas de união, inclusive entre pessoas do mesmo sexo, não se caracterizem como tal, entendendo ser justa a aplicação extensiva da lei, inclusive por interpretação analógica.

Há de se fazer, de início, certa reflexão de ordem sociológica e jurídica, para não corrermos o risco de nos distanciarmos da própria função jurisdicional, que, seja do ângulo da contenciosidade, seja da pura administração, por via do que se denominou jurisdição voluntária, tem o real sentido de aplicação do direito, principalmente no sistema do civil law que adotamos.

A orientação do Poder Judiciário na ordem jurídica instituída é a de que o juiz não cria a lei, senão que a interpreta e a aplica dentro de critérios técnicos preestabelecidos, ainda quando se lança mão de outros elementos interpretativos que não a literalidade do texto legal, como ocorre com a analogia e os princípios gerais de direito.

Firme no que dispõe a lei, principalmente como ocorre em nossa sistematização, sem atender ao rígido princípio constitucional, não se pode apupar de preconceituoso o julgamento que não atenda a manifestações sociais de minorias e até mesmo de correntes ideológicas majoritárias, quando ainda não se estabeleceram, no sistema legislativo, as posições não coincidentes com as respectivas fontes do direito. O que se consigna na lei, visualizada com seus critérios de interpretação, é o norteamento do julgador que dele não pode escapar, ainda que se deixe levar até por razoável manifestação emocional. Esta é magnífica lição de tempos idos, atuais e futuros, bem reproduzida pelo doutrinador espanhol, Juan Montero Aroca:

“En esta actuación del derecho objetivo radica la grandeza de los tribunales. En los últimos tiempos se há pretendido lanzar a los jueces por um camino que a la postre se resuelve en su desvinculación de la ley; com ello ni estamos ni podemos estar de acuerdo quienes creemos que la ley, el derecho objetivo, es la plasmación normativa de la voluntad de la mayoria. El que crea que la ley, en país organizado democraticamente, es la expresión de la voluntad general, no puede consentir que los jueces pretendan suplantar esa voluntad sustituyéndola por la suya individual. El Estado nombre los jueces para que éstos apliquen la ley que el propio Estado crea por vias democráticas, no para que aprovechando del nombramiento, se convirtan en mineradores de la soberania popular” (La función jurisdiccional. In Temas Procesales, v. 5, p. 71, out./1987).

No caso dos autos, há duas situações que, no meu entender, merecem cuidadosa análise. A primeira diz respeito ao próprio sentido interpretativo da lei; a segunda, à funcionalidade, aos limites e à finalidade da jurisdição voluntária.

As requerentes pretendem, por via de jurisdição voluntária, se reconheça entre elas existência de entidade familiar; que, também, se faça o mesmo de sua dissolução; e se proceda, em seguimento à homologação de partilha de bens, que, formalmente, se encontram no patrimônio de uma só.

Pelo entendimento das requerentes, a possibilidade, principalmente das declarações de existência e dissolução da entidade familiar, estaria contida no próprio art. 226, SSSS 3º e 4º, da CR. E, muito embora o caput do artigo fale em casamento (só admissível entre homem e mulher), o SS 3º reconhecia a união estável como entidade familiar, e o SS 4º também assim definia a comunidade formada por qualquer dos pais e descendentes. Como, porém, a evolução dos tempos e dos costumes seria uma realidade inafastável, estaria a ocorrer flagrante lacuna na Constituição da República, ao deixar de regular como tal a entidade formada entre pessoas do mesmo sexo.

Prefiro não falar em impossibilidade jurídica do pedido, já que essa seria condição de ação em jurisdição contenciosa, focando a questão, exclusivamente, do ângulo da previsão constitucional e da indagação que se faz de sua ocorrência ou não.

Os mais rigorosos constitucionalistas entendem que, nos sistemas de constituição rígida, lacunas inexistem; outros, ao contrário, admitem sua ocorrência, e, em conseqüência, seu preenchimento com critérios interpretativos subsidiários, como a analogia, os princípios gerais de direito e até os costumes.

Ponho-me na segunda posição, como bem o faz, acatando lição de Jorge de Miranda, o Professor e Desembargador que muito honra este Tribunal, Kildare Gonçalves de Carvalho, que, com maestria, completa a lição:

“É preciso notar, contudo, que, quando se trata de omissões legislativas, somente se deve reconhecê-las quando não se puder extrair da norma constitucional o máximo de eficácia que a sua formação lingüística, a sua logicidade, a sua história e a sua teleologia permitirem, dando-se, deste modo, à Constituição maior operatividade, à consideração ainda de que o Direito subconstitucional é que apanha as sobras do que a Lei Maior não quis, ou pôde reservar para si mesma com exclusividade” (Direito constitucional. 13. ed. Belo Horizonte: Del Rey, p. 219).

O Professor Alexandre de Morais demonstra a delicadeza do tema quando adverte que a contrariedade ao claro texto da Constituição pode importar em transmutação indevida do julgador em legislador ou administrador:

“Portanto, não terá cabimento a interpretação conforme a Constituição, quando contrariar texto expresso da lei, que não permita qualquer interpretação em conformidade com a Constituição, pois o Poder Judiciário não poderá, substituindo-se ao Poder Legislativo (leis) ou Executivo (medidas provisórias), atuar como legislador positivo, de forma a criar um novo texto legal” (Direito Constitucional. 18. ed. São Paulo: Atlas, p. 12).

Na hipótese em julgamento, bem é de ver que a disposição da lei em prever a entidade familiar, além do casamento, estabelece, casuisticamente, as possibilidades de tal figura constitucional e, de forma hermética, as limitou, sem oferecer qualquer elemento, léxico ou lógico, para entendimento de ter havido simples omissão. Omissão, sim, haveria se a lei fizesse apenas referência à entidade familiar, sem estabelecê-la com base na estrutura do casamento e das restritas figuras afins que acabou por definir.

Embora as requerentes digam que propõem ação de reconhecimento de entidade familiar, na verdade, não instauram qualquer procedimento jurisdicional, pois não denunciam lide alguma, e sim que pedem, em simples forma de jurisdição voluntária, a declaração judicial de existência e validade de relação jurídica por elas próprias reconhecida. E, completando, pedem também homologação de partilha amigável de bens, com reconhecimento de ambas de propriedade comum.

Há, é bem de ver, no fundo, no fundo, diversidades de pedidos, o que faz surgir indagação de importância quanto aos mesmos. Se não há como reconhecer, homologando-se judicialmente, a espécie de entidade familiar, poderia haver dúvida quanto à possibilidade da separação de bens, já que, aqui, a questão ficaria no âmbito exclusivamente patrimonial. No entanto, deslocando-se a questão para tal campo, ainda assim imprópria se revela a pretensão à jurisdição voluntária.

A atuação do juiz na jurisdição voluntária é simplesmente administrativa. Nesse caso, já que não se trata de compor lide, através de processo de conhecimento, ou de dar realização efetiva à obrigação já reconhecida através do processo de execução, o juiz só atua, em forma de jurisdição voluntária, quando assim o exigir a lei, ou mesmo permitir, sem violação de outras formas administrativas, seja para a consolidação do negócio jurídico, seja para a integração judicial no negócio ou situação jurídica, a fim de lhes dar maior segurança, conforme princípio reconhecido pelo interesse público. É, como, em breves pinceladas, ensinava Lopes da Costa:

“Certas matérias, por sua relevância e por exigirem maior preparo jurídico a este (juiz) são confiadas” (A administração pública e a ordem jurídica privada, Ed. Bernardo Álvares, l961, p. 72).

Ora, não há nenhuma exigência legal de o juiz participar, em jurisdição voluntária, velando pela validade formal do ato, nessa forma de partilhamento amigável de bens. Se uma das requerentes os tem, todos, em seu nome, nada há que a impeça, nem que exija outras formalidades, de fazer a devida transferência das respectivas partes ideais, ou de bens individuais, como pretendem; e, se tal alienação de bens, por vontade mútua, tem forma própria de se realizar, como a escritura pública ou particular, e mesmo a tradição de bens móveis, a homologação judicial jamais teria força de substituí-las, considerando-se verdadeira exorbitância judicial, invadindo seara alheia, a homologação de qualquer partilha nesse sentido.

Com tais considerações, nego provimento ao recurso, condenando as requerentes em custas processuais, mas isentas por estarem sob o pálio da AJ.

É o meu voto.

Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores Maurício Barros e Antônio Sérvulo.

Súmula – NEGARAM PROVIMENTO.

 

Fonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais