RETIFICAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO – EXPRESSÃO DA VERDADE REAL – INEXISTÊNCIA – EXAME DE DNA – EXCLUSÃO DA PATERNIDADE – VONTADE DAS PARTES – DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – OFENSA
– A improcedência do pedido de retificação de registro civil, cuja paternidade dele constante foi afastada por exame de DNA, sendo esta, ainda, a vontade dos interessados, implica clara ofensa ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, o que não se admite no ordenamento jurídico pátrio. Imperioso dizer que o registro de nascimento se traduz em expressão da realidade.
Recurso a que se dá provimento.
Apelação Cível ndeg. 1.0145.03.101432-0/001 – Comarca de Juiz de Fora – Autor: Ministério Público do Estado de Minas Gerais – Apelado: S.L.O.L. – Relator: Des. Kildare Carvalho
Vistos etc., acorda, em Turma, a 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, em dar provimento.
Belo Horizonte, 8 de novembro de 2007. – Kildare Carvalho – Relator.
DES. KILDARE CARVALHO – O Ministério Público do Estado de Minas Gerais apela da r. sentença que julgou improcedente o pedido de retificação de registro civil c/c alimentos, movido por P.H.F. em desfavor de S.L.O.L. e J.D.F.
Sustenta o apelante, em síntese, que a sentença contraria os interesses do menor, que busca na Justiça o reconhecimento de uma verdade de fato, haja vista saber quem é seu verdadeiro pai. Requer, ao final, a reforma da sentença para que se anule o registro do autor, no tocante à paternidade, e que se homologue o acordo de f. 100/101, celebrado entre as partes.
Conheço do recurso, presentes os pressupostos para sua admissão.
Versam os autos sobre ação de retificação de registro civil c/c alimentos movida por P.H.F. em desfavor de S.L.O.L. e J.D.F.
O autor, quando de seu nascimento, foi registrado por J.D.F., marido de sua genitora.
Sob a alegação de que seu verdadeiro pai biológico era o senhor S.L.O.L., foi então proposta a presente ação e, após realizado o exame de DNA, comprovando o vínculo alegado entre o menor e S.L.O.L., as partes, em audiência, acordaram quanto à alteração do registro bem como quanto ao valor dos alimentos a serem pagos.
O pedido foi julgado improcedente, ao fundamento de que o reconhecimento de paternidade é irrevogável e que, na hipótese, não restaram comprovados vícios aptos a tornar o ato nulo.
A uma análise detida do feito, tenho que a r. sentença não merece subsistir, visto que contraria os princípios da verdade real e da dignidade da pessoa humana.
Não se desconhece que, conforme extraído dos autos, J.D.M. efetuou, de forma espontânea, o registro de nascimento do menor P.H.F., ciente de que não era seu pai biológico.
De fato, à luz do art. 1º, I, da Lei nº 8.560/92, o reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável e será feito no registro de nascimento.
É sabido ainda que os defeitos aptos a tornar nulo o negócio jurídico são erro ou ignorância, dolo, coação, simulação ou fraude, conforme disposto no Código Civil, em seu Livro III, Capítulo IV.
Entretanto, verifico haver, na hipótese sob exame, um conflito entre as normas supracitadas e o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, disposto no art. 1º, III, da Constituição da República.
Deflui dos autos que todas as partes envolvidas concordam com a retificação do registro civil do menor, filho biológico de S.L.O.L., conforme exame de DNA realizado.
Logo, negar ao infante a retificação de seu registro, por excesso de apego à norma processual, contrariando, assim, uma situação consolidada e aceita por todos, implica, a meu ver, ofensa à dignidade dos três envolvidos, especialmente no tocante ao menor, maior interessado na demanda, cuja proteção à infância está expressamente reconhecida no art. 6º da Carta Política.
Apenas para ilustrar, tenho por oportuno o conceito jurídico de dignidade da pessoa humana, segundo Ingo Wolfgang Sarlet:
“a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos” (in Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 59/60)
Como se sabe, os princípios são espécies de normas jurídicas, porque dizem o que deve ser, ou seja, são eles orientadores da norma, também dotados de caráter normativo.
Nos dizeres de Jorge Miranda, “os princípios não se colocam além ou acima do direito; também eles – numa visão ampla, superadora de concepções positivistas, literalistas e absolutizantes das fontes legais – fazem parte do complexo ordenamental” (in Manual de direito constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1982, p. 198).
Com efeito, a dignidade é um valor que informa toda a ordem jurídica, se assegurados os direitos inerentes à pessoa humana. Os direitos fundamentais constituem, por isso mesmo, explicitações da dignidade da pessoa, já que em cada direito fundamental há um conteúdo e uma projeção da dignidade da pessoa.
Volvendo à realidade dos autos, a despeito do disposto no art. 1º da Lei nº 8.560/92, e dos vícios aptos a anular o ato jurídico, tenho que o registro ora combatido não pode prevalecer, por não retratar a verdadeira realidade, haja vista o exame de DNA realizado entre as partes, o qual concluiu não ser J.D.M. o pai biológico do menor.
Pelo contrário, colhe-se da f. 72 a seguinte conclusão:
“Conclui-se que o Sr. Sérgio Luiz Oliveira Lindolfo é o pai biológico de Pedro Henrique Figueiras”.
Ora, diante da conclusão acima transcrita, não resta dúvida de que o registro de nascimento do menor P.H.F., ainda que efetivado por livre e espontânea vontade pelo recorrido J.D.M., resta maculado de erro, haja vista não se traduzir em expressão da realidade, nem mesmo na vontade das partes interessadas.
In casu, a ausência da paternidade é preexistente à época da efetivação do registro, sendo que o resultado do DNA apenas atestou uma situação que sempre existiu, qual seja o apelado J.D.M. nunca foi pai do menor, situação para a qual não pode o Poder Judiciário fechar os olhos.
Imperioso ressaltar que, no direito moderno, sobretudo em se tratando de questões afetas ao Direito de Família, a busca da verdade real há de se confundir com a busca da evolução humana.
Vale dizer, imperativo que os registros públicos traduzam a efetiva realidade das situações, sempre havendo tempo e infindáveis razões para que a verdade prevaleça ou seja restabelecida.
A irrevogabilidade do registro, como sustentado pela Julgadora de origem, não pode servir para coroar situação irreal, conhecida e indesejada por todos.
Nesse sentido, aliás, tem-se manifestado a jurisprudência, primando pela prevalência da verdade real. Confiram-se, pois, alguns julgados:
“Processo Civil e Civil. Ação de investigação de paternidade. Pedido expresso de anulação de registro. Desnecessidade. Julgamento extra petita inocorrente. Intimação. Nulidade. Ausência de prejuízo. Cumprimento da decisão. Forma. Alvará. Irrelevância. Exame pelo DNA. Impossibilidade de realização. Paternidade declarada com base em outras provas. Possibilidade. Caso concreto. Enunciado nº 7 da súmula/STJ. Oposição. Julgamento. Desnecessidade. Circunstâncias. Recurso desacolhido.
I – Na linha da jurisprudência deste Tribunal, a falsidade do registro de nascimento pode ser demonstrada no âmbito da ação investigatória de paternidade. A procedência do pedido conduz ao cancelamento do registro, não se exigindo pedido expresso nem muito menos ação própria.
(…)
VII – Nos tempos atuais, não mais se justifica o apego à forma, em detrimento da efetividade processual, especialmente quando ausente prejuízo. Com efeito, sempre que possível, observadas as garantias do devido processo legal, deve-se buscar a efetividade processual, evitando-se que o processo seja um fim em si mesmo (REsp 216.719/CE, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira. DJ de 19.12.2003).
“Ementa: Ação de anulação de registro civil de menor – Exame pericial extrajudicial conclusivo pela exclusão da paternidade – Declaração da mãe firmada em cartório – Sentença que julga procedente o pedido – Recurso ministerial e do curador nomeado – Prova pericial firme não combatida – Improcedência dos recursos – Confirmação da sentença hostilizada (Apelação Cível 1.0103.05.931.206-8/001. Relator: Des. Brandão Teixeira. Data da publicação: 16.12.2005).
“Ementa: Paternidade. Negatória. Registro de nascimento. Erro. Ocorrência. Retificação. Exame de DNA. Comprovação. – Para afastar falsidade dele constante, impõe-se a retificação do registro de nascimento dos menores, invalidando-se o ato de reconhecimento da paternidade, diante das provas e circunstâncias.” (Apelação Cível 1.0024.04.298602-6/001. Relator: Des. Manuel Saramago. Data da publicação: 06.12.2005.)
Diante de todas essas considerações, e atento à peculiaridade do caso aqui versado, tenho que não se pode negar aos interessados o reconhecimento de uma situação por todos desejada.
Logo, diante da prova inequívoca do resultado do exame de DNA concluindo pela ausência da paternidade, não há como deixar de acolher o pedido inicial, sob pena de grave ofensa aos princípios da verdade real e da dignidade de pessoa humana.
Por todo o exposto, dou provimento ao recurso para homologar o acordo entabulado às f. 100/101, determinando-se, por via de conseqüência, a averbação no registro de nascimento do menor P.H.F. e todas as alterações daí decorrentes, nos termos em que requeridos.
Custas, ex lege.
Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores: Manuel Saramago e Dídimo Inocêncio de Paula.
Súmula – DERAM PROVIMENTO.
Fonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais