A incidência do Imposto Sobre Serviços (ISS) sobre os serviços de registros públicos, cartorários e notariais foi pacificada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) nº 3.089-2. Defendia-se que a Constituição Federal preveria um regime tributário próprio para os referidos serviços, em decorrência de possuírem, em sua essência, caráter público, mesmo que prestados por meio de delegação aos particulares. Assim, restou afastado pelo Supremo o argumento no sentido de que, por tal caráter público presente em seu âmago, seriam remunerados por meio da figura das taxas, espécie tributária criada pela Constituição Federal para a contraprestação dos serviços públicos em geral, nos termos do artigo 145, inciso II, o que afastaria a possibilidade de serem alvo da incidência de quaisquer outros impostos.
Inobstante a não-prevalência de tal tese no julgamento realizado pelo Supremo, remanesce a discussão acerca da base de cálculo a ser aplicada: deve ser utilizado o preço do serviço ou um valor fixo, como ocorre no caso dos profissionais autônomos?
O Decreto-lei nº 406, de 1968, que regulava integralmente a incidência do ISS, antes da entrada em vigor da Lei Complementar nº 116, de 2003, estabelecia, em seu artigo 9º, parágrafo 1º, para serviços prestados sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte, como é o caso dos profissionais autônomos, um valor fixo a servir de base de cálculo do imposto. Essa disposição não foi revogada pela Lei Complementar nº 116, que atualmente trata do ISS. Nesse passo, argumenta-se que os serviços de registros públicos e afins, subordinados à figura de um oficial regularmente habilitado, deveriam sofrer a cobrança do ISS tendo por base de cálculo um valor fixo, haja vista a similitude existente com os serviços desempenhados pelos autônomos.
Nesse contexto, o município de São Paulo, ao editar a Lei nº 13.701, permitiu que os profissionais que realizassem, pessoalmente e em caráter privado, atividade por delegação do poder público, pudessem efetuar os recolhimentos de ISS com base em um valor fixo. Contudo, no fim do ano passado uma nova lei municipal – a Lei nº 14.865, de 2008 – foi editada sobre o tema, alterando-se a previsão suprarreferida, de modo que o ISS devido pelos serviços de registros públicos, cartorários e notariais seja cobrado com base no preço dos serviços prestados.
Essa previsão poderá ser contestada sob dois enfoques principais. Primeiramente, amparando-se no mesmo Decreto-lei nº 406, que, como visto, estabelece que serviços prestados sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte, como é o caso, têm por base de cálculo um valor fixo – do que decorreria a impossibilidade de a lei municipal dispor contrariamente a essa previsão. Ainda nesse ponto, uma interpretação sistemática de diversas disposições legais permite concluir que o ordenamento jurídico brasileiro enxerga nos serviços de registros públicos, de cartórios e notariais, justamente uma subordinação às pessoas físicas daqueles que receberam a delegação pública para desempenhar essas atividades, reforçando-se, assim, sua equiparação aos profissionais autônomos, que são tributados, tendo por base de cálculo um valor fixo.
Exemplificativamente, têm-se os artigos 3º e 14, da Lei federal nº 8.935, de 1994, dos quais se extrai que o tabelião ou oficial de registro, sob a forma de trabalho pessoal, formalizam juridicamente a vontade de terceiros. Na mesma lei, os artigos 21 e 22 veiculam, respectivamente, a responsabilidade pessoal desses indivíduos pelo gerenciamento administrativo e financeiro das atividades desempenhadas, bem como pelos danos causados por prepostos seus a terceiros. Destaque-se que essa última previsão impede que se enxergue no fato do titular dos serviços notariais e de cartório receber auxílio de terceiros uma desnaturação do caráter pessoal de sua atividade. Também a legislação relativa ao Imposto de Renda (IR) determina expressamente seu tratamento como profissional autônomo, quando estabelece que sua tributação ocorrerá na pessoa física do delegatário. Por fim, o referido artigo 3º da Lei federal nº 8.935 esclarece que o notário ou tabelião e o oficial de registro são profissionais de direito. Ou seja, trata-se de uma atividade que exige uma qualificação especial – bacharelado em direito -, sendo esse mais um indicador de sua natureza pessoal.
Em segundo lugar, incluem-se no preço dos serviços determinados encargos que são revertidos ao poder público, ou seja, estar-se-ia tributando valores não absorvidos pelo próprio contribuinte. Violar-se-ia, ademais, a vedação constitucional à tributação recíproca entre entes públicos, já que, cobrando-se ISS com base no valor de todo o rendimento, incluindo-se, portanto, os emolumentos, haveria a incidência do ISS sobre valores revertidos a outros entes públicos, o que, como visto, é expressamente proibido, conforme estabelece a alínea “a” do inciso VI do artigo 150 da Constituição Federal.
Já há, inclusive, algumas decisões judiciais reconhecendo que a tributação dos referidos serviços deve dar-se somente sobre a pessoa física do delegatário, reconhecendo o caráter pessoal do serviço, do que decorrerá que sua base de cálculo deverá obedecer ao disposto no parágrafo 1º do artigo 9º do Decreto-lei nº 406, não podendo, pois, levar em conta o valor do preço do serviço.
Destaque-se, por fim, uma relevante decisão, de 12 de março deste ano, do corregedor-geral de Justiça do Rio de Janeiro, cujo órgão integra o Tribunal de Justiça do Estado (TJRJ), que reconheceu que os notários e oficiais de registros não estão obrigados a exibirem seus livros para os fiscais municipais, já que a fiscalização dos serviços por eles prestados é privativa do Poder Judiciário. Fixou-se, ademais, que, no desempenhar dessa fiscalização, o Poder Judiciário deverá observar que o recolhimento do ISS se dá por valor fixo, incidente sobre a pessoa do delegatário.
Tem-se, assim, uma importante decisão a demonstrar o posicionamento desse tribunal, se chamado a manifestar-se novamente sobre a questão, no âmbito de ações movidas pelos notários, tabeliães, ou oficiais de registro, e que também poderá ser utilizado como precedente em outros Estados. Fortalece-se, com isso, a tese de que o ISS cobrado sobre os serviços de registros públicos, cartórios e notariais não pode ocorrer com base na receita dessas atividades, dando-lhes mais força em eventuais demandas a serem propostas perante o Poder Judiciário.
Roberto Junqueira de S. Ribeiro e Diogo Henrique Duarte de Parra são advogados do escritório Duarte Garcia, Caselli Guimarães e Terra Advogados
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Fonte:Jornal Valor Econômico