BRASÍLIA – Há cerca de dois anos, a IX Conferência Nacional de Direitos Humanos foi finalizada sem, na verdade, terminar. Promovida pela primeira vez também pelo Poder Executivo e com caráter deliberativo, a plenária final do evento praticamente implodiu, promovendo uma cicatriz na relação entre a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), à época comandada por Nilmário Miranda, e as entidades da área. De volta ao seu caráter de reunião entre a sociedade civil e a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara (CDHM), sem contar com a presença oficial do governo na base da promoção do evento, a décima edição da conferência na última sexta-feira (2) chegou ao seu encerramento completo bem avaliada pelos seus organizadores e pelos participantes.
Um dos pontos altos do encontro foi o avanço na agenda comum dos movimentos e entidades sem deixar de lado as demandas particulares de cada grupo. “A Conferencia é processo de posicionamento e aprendizado. É momento em que os movimentos conversam entre si, discutem temas transversais e temas de interesse comum que no dia a dia eles não conseguem discutir”, explica Ivônio Barros, do Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos (FENDH). Dentro dos grandes desafios traçados para os diversos segmentos que integram a luta pelos direitos humanos, ganhou destaque colocar os Direitos Humanos como elemento central na construção de um novo modelo de desenvolvimento para o País.
Segundo Barros, as entidades consolidaram a percepção de que a ‘opção neoliberal’ do governo tem impacto negativo direito na proteção e promoção dos direitos humanos tanto por retirar recursos fundamentais para a garantia dos Direitos Humanos para o repasse às transnacionais e aos bancos quanto por interferir na concepção das políticas públicas com um viés conservador (leia Novo modelo econômico é condição para garantir direitos e Encontro repudia ameaças e manutenção do neoliberalismo). “Temos um modelo concentrado que não consegue conceber qualquer perspectiva mais democrática. Isso se dá, para citar alguns exemplos, nas políticas agrária, de meio ambiente e de comunicação, nas quais o agronegócio, os grandes projetos degradadores e o monopólio sufocam experiências que incluem a população, como a reforma agrária e as rádios comunitárias”, diz.
“Precisamos inverter as prioridades, em vez de aumentar e garantir o lucro dos banqueiros e das transnacionais, precisamos de recursos dirigidos a políticas públicas de educação de qualidade, de segurança pública, garantia de acesso humano e digno à saúde, programas de geração de trabalho e renda, efetivação de uma verdadeira reforma agrária, implementar a demarcação das terras indígenas e quilombolas e respeitar e garantir os direitos dos povos da floresta e de ribeirinhos”, defende a carta final da Conferência. Como proposta concreta, o documento pede a aprovação do projeto de lei apresentado à Comissão de Legislação Participativa pelo Fórum Brasil de Orçamento que altera a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) para flexibilizar os limites relativos aos gastos públicos e estabelecer novas metas e garantias de investimentos em políticas sociais (leia: Fórum apresenta proposta de Lei de Responsabilidade Social ).
“Essa proposta visa definir as prioridades sociais nos gastos públicos, do mesmo modo como a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) orienta a administração fiscal e orçamentária”, explica o presidente da CDHM, Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP). Segundo Caio Varela, do Instituto Nacional de Estudos Sócio-Econômicos (Inesc), a Lei de Responsabilidade Social prevê estabelecer garantias, inclusive punições, para aqueles gestores que não cumprirem as metas envolvendo a execução dos programas que compõem as políticas sociais.
Outro grande tema que aglutinou os diversos interesses presentes na Conferência foi a resolução da crise por que passa a segurança pública no País explicitada pelos ataques promovidos pelo grupo criminoso Primeiro Comando da Capital (PCC) e pela chacina promovida pelas forças de segurança contra a população das periferias da cidade em resposta. “A conferência representou um ar novo em direção ao progresso, num momento caracterizado por um vento retrógrado, de regressão à barbárie”, avalia Greenhalgh. Na opinião de Ivônio Barros, a conferência avançou na compreensão do perigo que esta situação constiui para a democracia e para os direitos humanos do País, sendo necessário um duro enfrentamento tanto das raízes ligadas à situação de exclusão que vive parte da população quanto da resolução dos graves problemas existentes nos sistemas de segurança pública existentes no Brasil.
Para Rosiana Queiroz, do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), é perciso fazer um amplo debate nacional sobre a situação da segurança pública no País a partir de um profundo diagnóstico que permita identificar onde estão os problemas de maneira mais clara. “É preciso aproveitar este momento de crise para fazer uma avaliação do sistema de segurança no País. Os estados são responsáveis, mas não dá para não ter uma diretriz nacional”. Na sua opinião, para além de reformar o poder público, a solução dos problemas passa pela sociedade civil se apropriar do problema e realizar um amplo monitoramento do tratamento dado no sistema prisional brasileiro.
Neste sentido, a conferência deliberou pelo apoio à aprovação do Protocolo Facultativo Contra a Tortura, que estabelece uma série de ações de combate a esta prática, entre elas a criação de uma comissão integrada por especialistas, entidades da sociedade civil e representantes do Ministério Público para a realização de uma fiscalização independente sobre as forças públicas de segurança. A matéria está em tramitação no Senado e segundo a integrante do MNDH haveria um compromisso do governo com a sua aprovação até 26 de junho, dia internacional de combate à tortura. Outra iniciativa resultante da conferência foi a criação de uma rede nacional de combate à violência letal juvenil com o objetivo de trabalhar o exetermínio de jovens negros e pobres em curso hoje nas grandes metrópoles brasileiras.
ENTRE O POSSÍVEL E O DESEJÁVEL
A conferência também apontou para a revisão do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), iniciativa criada no governo Fernando Henrique Cardoso que contém um conjunto de ações visando a implementação da política nacional para a área. “Precisamos de uma política de direitos humanos, ao mesmo tempo clara, publicizada, abrangente, permanente e possível de ser monitorada, com metas e prazos para serem cumpridos e respeitados. É necessário promover a atualização do Programa Nacional de Direitos Humanos, com ampla participação da sociedade”, afirma a carta final do evento.
Uma das principais condições colocada nas recomendações para que haja esta revisão com vistas a avançar na política nacional de direitos humanos é a criação de conselhos e ouvidorias nos âmbitos federais, estaduais e municipais com participação da sociedade civil, orçamento, estrutura e autonomia. A primeira ação cobrada pelo documento final da conferência é a aprovação do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH). No entanto o texto destaca que na sua criação deve ser garantida maioria de membros da sociedade civil, orçamento próprio e atuação autônoma. Este é um dos pontos que ainda não foi consensuado no movimento, pois uma parte condiciona o apoio à aprovação a este formato e outra avalia que a aprovação em si já é um avanço frente ao hoje existente Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), ligado ao Ministério da Justiça.
A diferença entre os avanços possíveis e os desejáveis, e a tática para obtê-los, deve se manifestar também na relação com a Secretaria Especial de Direitos Humanos. Há divergência ainda entre as organizações sobre o grau de crédito que deve ser dado às possibilidades de resultados que podem ser obtidos ainda até o fim do ano. O secretário, Paulo Vannuchi, sinalizou de forma expressiva sua intenção de, independente do grau das críticas, construir um ambiente de diálogo em torno de sua pasta. Tendo participado do início, de um painel e do encerramento do evento, destacou a importância da carta elaborada para o Governo Federal. “A conferência servirá para que o governo redefina suas prioridades na área, a partir da atualização das propostas e demandas da sociedade civil aqui representada. A carta final é um documento valioso para observar o que está sendo cumprido e propor os ajustes necessários”, disse.
Para Rogério Tomaz, da Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos, será preciso muito empenho do movimento para que o conteúdo da carta se transforme em iniciativas concretas. “O saldo da Conferência é positivo, mas o mais importante de tudo é enfrentar o desafio de fazer avançar a luta para que as propostas aprovadas na plenária final sejam concretizadas”.
Fonte:Agência Carta Maior