Em favor do poder de polícia, da tutela jurisdicional do Estado e de todos os instrumentos institucionais indispensáveis à organização social, os cidadãos de uma sociedade democrática concedem ao Poder Público o direito de reter dados de sua vida privada: enquanto residentes, enquanto profissionais, enquanto contribuintes ou apenas portadores de registros civis, de indicação de filiação, de prontuário ou número de identidade. É evidente, no entanto, que essa concessão se destina a possibilitar o exercício de uma função precípua e indelegável do Estado – seja, por exemplo, no campo da segurança pública ou da arrecadação tributária – e implica, por parte do Estado, a obrigação de preservação de sigilo, pois esta é ínsita ao respeito à privacidade, conforme o que é assegurado por dispositivos legais e constitucionais, consagrados pelo Estado Democrático de Direito. Eis porque se torna uma clara aberração, ético-jurídica, a idéia de o Estado poder “comercializar” dados sigilosos dos cidadãos que estejam sob sua estrita e inalienável custódia, por melhores que sejam as intenções de “modernizar” os sistemas de informatização cadastral da sociedade.
O projeto em questão, ora em estudo na Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo, destina-se a arranjar financiamento privado – pelo sistema PPP (Parceria Público-Privada) – para implementar um amplo processo de modernização informática, no cadastramento da população de São Paulo, convertendo do papel para meios digitais 45 milhões de fichas datiloscópicas, 60 milhões de registros criminais e atualizando fichas de mais de 40 milhões de pessoas. Por licitação pública seria escolhida empresa que, só na parte inicial do projeto, deveria investir cerca de R$ 490 milhões. E, entre as “contrapartidas” pela prestação de tal serviço, a empresa privada poderia desenvolver a exploração comercial dos dados captados da população, vendendo-os para bancos, administradoras de cartões de crédito, seguradoras, redes de magazines, de telemarketing, etc.
Está certo que o Estado precisa obter recursos para modernizar seus equipamentos e sistemas, especialmente em um campo essencial, como o da segurança pública. Também certo é que, no Estado de São Paulo, este é um setor que se tornou especialmente nevrálgico para a administração pública, haja vista os trágicos acontecimentos de maio, que geraram tantas mortes e a humilhante paralisação da mais importante cidade do País, por determinação do crime organizado. Nada disso, no entanto, justifica a profunda distorção da função pública, que seria a obtenção de receita extra – que se assemelharia ao que, na esfera cível, se designa por “enriquecimento ilícito” – com a comercialização de dados privados e sigilosos dos cidadãos. Por mais que o Estado necessite de recursos para sustentar – ou aperfeiçoar, pela modernização – seus serviços essenciais, há limites, sobretudo éticos, para sua atuação, especialmente no que diz respeito à preservação do espaço e dos direitos da cidadania.
Diga-se, a bem da verdade, que os dados sigilosos dos cidadãos já vêm sendo constantemente violados, por meio dos repasses não autorizados de informações entre administradoras de cartões de crédito, empresas de telemarketing, de telefonia e tantas outras, que penetram sem qualquer cerimônia na intimidade das casas das pessoas para vender os mais diversos produtos – sem levar em conta, pelo menos, o tempo que as obriga a perder, pelo não solicitado contato comercial, no recinto de sua residência e vida privada. Também se leve em conta que até os camelôs do centro da cidade vendem, por preços módicos, CDs pirateados com dados cadastrais de segmentos da população cuja abordagem interessa a vários ramos de negócios. Nem por isso o Estado poderá minimizar o valor ético do sigilo privado, pois em o fazendo estará praticando uma indiscutível violação de direitos.
Que a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo busque outros meios, criativos que sejam, para modernizar seus cadastros digitais. Que não o faça, porém, a qualquer custo moral.