Clipping – Certidão de Minas – Jornal Estado de Minas

Certidão de Minas


Livros de registros de nascimentos, casamentos e óbitos, dos séculos 18, 19 e início do 20, ganham formato digital e recuperam memória de cidades mineiras da Estrada Real

 










BETO NOVAES/EM/D.A PRESS
Dona Maria Laura do Couto Lima Guimarães, de 97 anos, moradora de Sabará, se emociona ao ver o seu registro de nascimento e batismo, guardado com cuidado na Paróquia de Nossa Senhora da Conceição

 

Lágrimas de saudade e sorrisos do reencontro se alternam durante longos minutos no rosto quase centenário. Passando os dedos sobre as linhas e letras ainda firmes do livro, Maria Laura do Couto Lima Guimarães, a dona Lalá, vê, com os olhos que não precisam de óculos de leitura, um registro sensível da sua história. Na verdade, o começo de tudo. Nas frases escritas pelo padre em 1912, com caneta-tinteiro, ela aponta o seu nome de batismo, o dos pais, Antônio Arcanjo e Francisca, e o da cidade de Sabará, onde nasceu em 11 de junho daquele ano, na Rua Direita, atual Dom Pedro II. Sem perder o ritmo e a curiosidade, ela faz novas descobertas: “Vejam, aqui no canto do papel tem a data do meu casamento e o nome do Oto, meu falecido marido”. Filhos e netos, ao seu redor, também se comovem.

 

Dona Lalá, moradora a vida inteira da histórica Sabará, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, guarda lembranças de um tempo em que os registros civis – nascimento, casamento e óbito – eram feitos única e exclusivamente nas paróquias, e não em cartórios. Só a partir da Proclamação da República, em 1889, é que o Estado se separou da Igreja Católica, tornando-se laico e responsável por atender esse direito dos cidadãos. Em Minas, o primeiro cartório funcionou na então capital, Ouro Preto, mas, de acordo com especialistas, a novidade custou muitos anos para chegar às outras cidades. “O registro na Igreja era muito importante para as famílias, era ali que a gente ganhava, de verdade, um nome, uma identidade”, conta dona Lalá, com orgulho e grande senso de história. Para ela, “os documentos são fundamentais para a nossa vida, eu guardo todos os meus num cofre”.

Milhares de histórias semelhantes às de dona Lalá acabam de sair dos livros, para ganhar a eternidade, graças aos avanços tecnológicos. Por iniciativa e patrocínio da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (Fapemig) e execução da PUC Minas, documentos dos séculos 18, 19 e início do 20, de paróquias localizadas no circuito da Estrada Real, no âmbito da Arquidiocese de BH, já estão digitalizados, abertos ao público e disponíveis para estudos. O trabalho inédito no estado e coordenado pelos professores de história do Brasil da universidade, Caio Boschi e Tarcísio Botelho, inclui 23 paróquias de Belo Vale, Caeté, Moeda, Nova União, Nova Lima, Raposos, Rio Acima, Sabará, Santa Luzia, Taquaraçu de Minas, Brumadinho, Esmeraldas, Piedade dos Gerais, Lagoa Santa e Contagem (antigo povoado de São Gonçalo da Contagem, com raízes no século 18).

 

“É um material da maior importância para todas as áreas do conhecimento, pois não é encontrado nos arquivos públicos, os quais guardam documentos oficiais. Trata-se de um projeto de democratização da informação, que interessa aos historiadores, demógrafos, profissionais do direito que necessitem de provas documentais sobre posse de terra e heranças, estudiosos do comportamento e das famílias mineiras, especialistas em traçar árvores genealógicos e muitos outros”, diz Boschi.

Todos os 237 livros, com 34 mil páginas de registros, estão armazenados em 37 CD-ROMs. Para consulta, basta ir ao Arquivo Arquidiocesano, na Praça da Liberdade, 263, em BH, aberto de segunda a sexta-feira, das 8h às 18h. Estão disponíveis dois computadores para pesquisa, informa a bibliotecária responsável pelo serviço, Maria Elizabeth Miranda do Nascimento. “Estamos preservando os manuscritos, evitando que o manuseio cause estragos ao papel”, diz a bibliotecária.

O arcebispo metropolitano dom Walmor Oliveira de Azevedo destaca que o trabalho tem importância estratégica, “sobretudo quando consideramos o seu significado básico, que é o de contribuir com a preservação de um acervo histórico de valor incalculável”. E lembra que “a memória é um dos elementos primordiais na constituição da civilização, das culturas e das organizações. Sem ela, as nações não se diferenciam e se perdem em um universo homogêneo. A gestão do conhecimento é a gestão da memória”.

 

IDENTIDADE Embora sejam informações em estado bruto, sem análises e aprofundamentos críticos, os documentos permitem, de imediato, algumas leituras sobre os períodos colonial e imperial. Uma delas é que o registro do nascimento dos brasileiros, desde o descobrimento, sempre esteve associado ao batismo. Portanto, quem não recebia esse sacramento, não tinha sua identidade documentada. “O Brasil, até a República, vivia o regime do padroado, quando os padres, que entravam na folha de pagamento do Estado, tinham uma série de atribuições civis, como cuidar até do recenseamento. Até 1889, o clero ocupava importante lugar na máquina burocrática”, explica Boschi, que também dá aulas de história do Brasil na Universidade do Porto e ajudou a organizar a documentação sobre Minas Colonial no Arquivo Histórico Ultramarino, ambos em Portugal.


Para impulsionar o projeto Digitalização e disponibilização de acervos paroquiais da rota da Estrada Real, iniciado em 2005, com um custo de R$ 50 mil bancado pela Fapemig, o professor e sua equipe se valeram de um serviço executado, anteriormente, pela Sociedade Genealógica, dos mórmons de Salt Lake City, capital do estado norte-americano de Utah, que haviam microfilmado grande parte dos livros e cederam o material para ser digitalizado. 

 

 

Páginas despertam curiosidade


Pesquisa revela detalhes sobre os primeiros registros civis feitos em Minas Gerais. Objetivo é ampliar os trabalhos, incorporando outras fontes ao acervo da Cúria de BH

 








Professor Caio Boschi, da PUC Minas, coordenou o trabalho, que serve de base para pesquisas de historiadores, advogados, demógrafos, especialistas em comportamento e outros profissionais



Numa sala do Arquivo Arquidiocesano, na Praça da Liberdade, em BH, o professor Caio Boschi examina os papéis preciosos que deram origem à pesquisa e foram transportados para os CD-ROMs. A leitura permite uma viagem no tempo, e, à medida que se encontram os registros antigos, dá para sentir claramente que os olhos estão diante de uma verdadeira certidão de Minas. Numa página, referente a um livro de 1855, da freguesia (comunidade) de Sabará, há lugar para todos os “innocentes”, como eram designadas as crianças.

Em 20 de junho de 1855, foi registrada, na Capela de Santa Rita, a menina Antônia, filha de Antônio Gonçalves de Gouveia e Anna Amélia do Carmo, tendo como padrinhos o coronel José Antônio de Assis Marinho e Anna Claudina. Na mesma página está o registro, em 7 de julho, de Vicência, “innocente” filha legítima de José Pedro da Costa, africano, e Querina Mater, crioula, sendo padrinhos Erculano Libertato e sua “consorte” dona Jacintha Pereira de Sales, todos da freguesia de Sabará. Já em 20 de julho, foi registrado Basílio, filho natural de Jacintha, africana, escrava do Barão de Curvelo. Os padrinhos eram o alferes Maurício Antônio de Azevedo e dona Maria Cláudia da Silva.

Num dos livros referentes à cidade de Santa Luzia do Rio das Velhas, hoje Santa Luzia, encontra-se o registro da professora Syria Gonçalves Teixeira de Castro Silva, nascida em 14 de fevereiro de 1905 e batizada na matriz da cidade, a 27 quilômetros de BH. Aos 104 anos e residente na Savassi, na capital, dona Syria, mãe de quatro filhos e com 15 netos e 17 bisnetos, está lúcida e vendendo saúde. Um dos filhos, o médico Márcio Castro Silva, enaltece a realização do trabalho e se diz curioso, ao lado dos irmãos e demais familiares, para ver o registro de batismo da sua mãe. “Já tentei traçar a árvore genealógica do lado do meu pai, que tem raízes em Limoeiro do Norte (CE), mas tive dificuldade exatamente pela ausência de cartórios na região, no século 19. Só consegui o batistério, que é a certidão de batismo”, diz Márcio.

Tudo indica que o trabalho vai jogar mais luz sobre a memória dos registros civis nas Gerais dos tempos coloniais, imperiais e primeiros anos republicanos. E tirar dúvidas sobre a história dos cartórios em Minas. Enquanto oficialmente o primeiro deles, em Minas, abriu as portas em Ouro Preto, a partir de 1889, os registros cartoriais, em Sabará, teriam começado bem antes, já que o livro nº 1 data de 1879. Segundo Maria Elizabeth, do Arquivo Arquidiocesano, os livros chegaram à Arquidiocese de Belo Horizonte possivelmente no início da década de 1920, quando ela se desmembrou de Mariana. O objetivo é, no futuro, incorporar os livros que ficaram em outras cidades, como Sabará, ao acervo digitalizado da Cúria de BH.

O registro de Maria Laura do Couto Lima Guimarães, a dona Lalá, que tem cinco filhos, 16 netos e 12 bisnetos, consta de um livro guardado cuidadosamente na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição. Foi com a ajuda do titular da paróquia, padre Luiz Fernando Nascimento, que a equipe do EM conseguiu localizar o documento de quase um século e mostrá-lo a dona Lalá, que também foi registrada pelos pais no cartório de sua terra natal. “Estamos muito felizes e surpresos. É de emocionar”, comentou a filha de dona Lalá, Maria Auxiliadora Guimarães.

Força da igreja na coleta de dados

Os registros paroquiais de batismos, casamentos e óbitos ganharam força a partir do Concílio de Trento, realizado de 1545 a 1563, na Itália, e passaram a ocupar lugar de destaque no desenvolvimento historiográfico, principalmente na demografia. Para o Brasil, de acordo com pesquisa dos professores Caio Boschi e Tarcísio Botelho, tais documentos assumiram contornos específicos. “Até a Proclamação da República, era função do Estado constituir as paróquias, nomear padres e remunerar parte do clero. Cabia-lhe ainda a corresponsabilidade na construção e preservação dos templos católicos, além de manter a ‘decência do culto’ por meio da conservação das alfaias, paramentos e outros elementos do ritual católico.

Ao longo do período colonial, o sistema apresentou muitas lacunas, mas, no processo de organização do Estado nacional, que se seguiu à independência política do país, melhorou sensivelmente tal prestação de serviços. Segundo Boschi, Minas estava entre as províncias do império que apresentavam avanços mais marcantes. O governo provincial mineiro, especialmente ao longo das décadas de 1830 e 1840, primou pela ênfase na definição da divisão político-administrativa, organização do aparelho burocrático e constituição de um sistema de fluxo de informações estatísticas.


Dentro desse panorama, a coleta de dados dos registros paroquiais foi muito valorizada, ficando o clero responsável pelo fornecimento de informações. A partir de 1836, cada clérigo tinha, por lei, a obrigação de enviar semestralmente ao governo provincial mapas dos nascimentos (batismos), casamentos e óbitos de sua paróquia. “O principal efeito dessa política foi, sem dúvida alguma, a melhoria na cobertura e na qualidade das informações dos registros paroquiais”, conclui o professor.

COMO ACESSAR OS DOCUMENTOS

São 34 mil páginas armazenadas em 37 CD-ROMs. O acesso ao público é de segunda a sexta-feira, das 8h às 18h, no Arquivo Arquidiocesano, na Praça da Liberdade, 263, BH.


 

Fonte: Jornal Estado de Minas