Jurisprudência mineira – Retificação de registro de nascimento – Transexual – Mudança de nome


RETIFICAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO – TRANSEXUAL – CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO JÁ REALIZADA – PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – MUDANÇA DE NOME – NECESSIDADE PARA EVITAR SITUAÇÕES VEXATÓRIAS – INEXISTÊNCIA DE INTERESSE GENÉRICO DE UMA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA À INTEGRAÇÃO DO TRANSEXUAL


– A força normativa da constituição deve ser vista como veículo para a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, que inclui o direito à mínima interferência estatal nas questões íntimas e que estão estritamente vinculadas e conectadas aos direitos da personalidade.


– Na presente ação de retificação, não se pode desprezar o fato de que o autor, transexual, já realizou cirurgia de transgenitalização para mudança de sexo e de que a retificação de seu nome lhe evitará constrangimentos e situações vexatórias.


– Não se deve negar ao portador de disforia do gênero, em evidente afronta ao texto da lei fundamental, o seu direito à adequação do sexo morfológico e psicológico e a  consequente redesignação do estado sexual e do prenome no assento de seu nascimento.


– V.v.: – A construção doutrinária e pretoriana que tem admitido a mudança ou alteração do prenome em todos os casos, sem qualquer restrição temporal, inclusive por fatos havidos posteriormente ao registro, o faz porque é vedado o emprego de prenome imoral ou suscetível de expor ao ridículo o seu portador (art. 55, parágrafo único, da LRP).


– Nosso ordenamento jurídico não autoriza a retificação do sexo da pessoa no registro de nascimento pelo fato de aquela ter realizado cirurgia de mudança de sexo e/ou por esta afirmar sofrer preconceitos e constrangimentos.


Apelação Cível n° 1.0024.05.778220-3/001 –


Comarca de Belo Horizonte – Apelante: E.P.S. – Relator: Des. Edivaldo George dos Santos. – Relator para o acórdão – Des. Wander Marotta


A C Ó R D Ã O


Vistos etc., acorda, em Turma, a 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, em dar provimento, vencido o


Relator.


Belo Horizonte, 6 de março de 2009. – Wander Marotta – Relator para o acórdão. – Edivaldo George dos Santos – Relator vencido.


N O T A S T A Q U I G R Á F I C A S


DES. EDIVALDO GEORGE DOS SANTOS –


Presentes os pressupostos próprios exigidos, conheço do recurso.


Cuidam os autos de ação de retificação de registro civil ajuizada por E.P.S., que o autor narra que “desde a infância apresenta comportamento feminino”(f. 06), sendo “conhecida popularmente como ‘B.'” (f. 06), e, nesta toada, informa que, em “Jundiaí/SP, na Clínica Jalma Jurado” (f. 08), depois de “várias séries de exames clínicos e avaliações psicológicas favoráveis, realizou a cirurgia” (f. 08) de mudança de sexo, passando, dessa forma, “a apresentar toda a conformação dos caracteres femininos: com seios, cabelos, aparência facial, tom vocal, vestimentas e hábitos, conforme seu gosto e sonho” (f. 08).


Diz que tem experimentado toda sorte de constrangimentos e situações desagradáveis, necessitando, assim, “que seja realizada a retificação de registro civil, com a mudança de nome e sexo do requerente, de E.P.S. para B.T.P., de sexo masculino para sexo feminino” (f. 10), de modo a reintegrála à sociedade.


Devidamente processada a ação, sobreveio a sentença de f. 258/264, por via da qual restou julgada improcedente a ação.


Não se conformando, o autor apelou às f. 267/ 286, pretendendo a reforma da decisão primária pelas razões ali expendidas.


O art. 56 da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/ 73), prescreve que “o interessado, no primeiro ano após ter atingido a maioridade civil, poderá, pessoalmente ou por procurador bastante, alterar o nome, desde que não prejudique os apelidos da família, averbando-se a alteração que será publicada pela imprensa”.


Entretanto, no caso em apreço, o apelante não guardou respeito a esse prazo, visto que, nascido em 19.10.1975 (f. 18), somente em 14 de julho de 2005 deu entrada nesse procedimento, como se tem de f. 93.


Há, contudo, uma construção doutrinária e pretoriana que tem admitido mudança ou alteração do prenome em todos os casos, sem qualquer restrição temporal, inclusive por fatos havidos posteriormente ao registro, fazendo-o baseado na premissa de que é vedado o emprego de prenome imoral ou suscetível de expor ao ridículo o seu portador (art. 55, parágrafo único, da LRP). Entretanto, no caso em apreço, o nome do apelante nada tem de imoral, nem é capaz de expô-lo ao ridículo ou de causar-lhe constrangimentos ou situações vexatórias.


A bem da verdade, pelo que se infere de todo o processado, o que ocorre é que o apelante, como transexual, já tendo, inclusive, passado por cirurgia, nunca se conformou por ter nascido do sexo masculino.


No entanto, penso que a legislação pátria não agasalha a sua pretensão, mesmo porque razões subjetivas não admitem mudanças como a pretendida. Nesse sentido, tenha-se a lição de Walter Ceneviva:


“Não se trata de questão de gosto ou de preferência do indivíduo, a que enseja alteração. Deve ser claramente enunciada e, embora subjetiva, há de ser compreensível objetivamente”. Disso se infere que a regra é a inalterabilidade do registro civil (prenome e patronímico), somente excepcionada em casos que a justifiquem. Os autores pátrios trazem algumas destas hipóteses, dentre as quais, conforme supracitado, a possibilidade de homônimo ou o fato de o indivíduo ser conhecido no meio em que vive por outro nome, o que autorizaria o acréscimo deste ao prenome registrado. A lei, mesmo com a alteração operada em seu art. 58, traz a possibilidade de alteração do prenome quando este exponha o seu portador ao ridículo, em conformidade com o parágrafo único do art. 55 (in Lei dos Registros Públicos comentada. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 115).


A amparar este entendimento, tenham-se os seguintes precedentes:


“Retificação de registro civil – Alteração de prenome – Razões subjetivas – Inexistência de amparo legal – Regra da definitividade. – Não goza de amparo legal a pretensão de alteração de prenome composto por razões subjetivas do seu titular, constituindo a regra geral do registro público a definitividade do prenome, alterável apenas em hipóteses excepcionais” (AC nº 1.0024.06.087742-0/001, Comarca de Belo Horizonte, 6ª CC., Rel. Des. Maurício de Barros, j. em 27.03.2007).


“Retificação registro de nascimento. Alteração prenome. Capricho pessoal. Impossibilidade. Recurso não provido. – A exegese dos arts. 57 e 58 da Lei 6.015/74 informa que a imutabilidade do registro de nascimento não é absoluta, podendo ocorrer alteração do nome a título de exceção e motivadamente e a substituição do prenome quando se tratar de apelido público notório. Nessa linha, improcede o pedido de retificação quando as partes não apresentam qualquer exceção à regra da imutabilidade do prenome, fazendo transparecer, na realidade, mero capricho pessoal” (AC nº 1.0702.05.259156-8/001, Comarca de Uberlândia, 5ª CC., Rel. Des.ª Maria Elza, j. em 15.03.2007).


Especificamente quanto à desejada alteração de sexo, de masculino para feminino, é necessário ter em mente que o registro de nascimento deve conter a realidade, pelo que não se me apresenta possível a retificação desejada, mesmo porque o fato de ter experimentado a intervenção cirúrgica não tornou o autor, do ponto de vista genético, do sexo feminino, mas apenas o adequou ao seu sexo psicológico.


Noutras palavras, a cirurgia teve apenas o condão de dar aparência feminina ao apelante, mas não o tornou mulher na acepção da palavra, já que não o tornou dotada de útero, ovários e outras características próprias e peculiares das mulheres. Não se deve perder de vista, ainda, que a pretensão deduzida pelo apelante, caso acolhida, por certo poderá trazer sérios e graves transtornos a toda a sociedade, ou ao menos a parte dela. É que, por exemplo, seria possível ao apelante, até mesmo, contrair núpcias com alguém que desconhecesse a sua realidade e que, então, poderia ser enganado, porque o apelante jamais poderá gerar filhos, já que, do ponto de vista genético, é masculino e não feminino.


Com a costumeira habilidade, o i. Des. Moreira  Diniz apontou, ainda, outros problemas que podem  advir da procedência de pleitos como este ao julgar questão assemelhada à presente, vejamos:


“[…] Não me parece razoável aceitar que alguém seja obrigado a ir às barras dos Tribunais para obter a invalidação de um ato para cuja prática o próprio Judiciário contribuiu ao autorizar a modificação da anotação relativa ao sexo no registro civil da pessoa. É uma constatação incômoda: o Judiciário, de forma consciente, contribuindo para um erro que gera efeito jurídicos e prejuízos para terceiros. E aí já está o primeiro exemplo de como a espécie não é de interesse exclusivo do indivíduo, mas de toda a coletividade. Todos sabemos que a legislação proíbe que, ao expedir certidões de registros civis, o Cartório faça referência a alterações como a que, por exemplo, está agora sendo pretendida. Logo, se autorizada a alteração – não me refiro ao caso específico, mas a todo e qualquer caso de transexualismo com cirurgia realizada -, o indivíduo poderá obter e portar, sempre, uma certidão onde será consignado não seu sexo original (e que ainda tem), mas o sexo decorrente de seu sentimento e de sua simples aparência em consequência da cirurgia. Qualquer pessoa que for a cartório obterá idêntica certidão sem a mínima referência a qualquer alteração feita no registro.


Um terceiro, de boa-fé, levado pela aparência física de um operado, ou mesmo pelo amor, poderá chegar ao casamento. Realizado o ato sob o aspecto legal, no momento da consumação, ou até mesmo quando buscar a constituição de prole, esse terceiro descobre a verdade. O casamento foi contraído com pessoa do mesmo sexo.  Quem induziu essa pessoa a erro? Foi apenas o operado? Penso que não.


De qualquer forma, está aí um caso clássico de prejuízo a terceiro. Ainda que obtenha a anulação do casamento, sob o aspecto moral, sob o aspecto psíquico, essa pessoa sofrerá consequências que podem ser indeléveis. Imaginem os senhores como essa pessoa enfrentará o convívio de seus circunstantes.


Aliás, causa preocupação o debate instaurado na Câmara Federal por ocasião da tramitação do mencionado Projeto de Lei nº 70/95, na medida em que, se seu proponente fez incluir, na Lei dos Registros Públicos, dispositivo que torna obrigatória a referência à cirurgia no registro e nas certidões a ele pertinentes, há emenda, aprovada pelas comissões, que, mais do que tirar a exigência, proíbem a referência.


Além das emendas (em número de duas), propostas ao referido projeto, o tema vem tratado também no Projeto de Lei nº 3.727, de 16 de outubro de 1997. Esse projeto foi apensado ao PL 70/95. Outro exemplo de prejuízo que a alteração do lançamento relativo ao sexo pode causar: o transexual faz a cirurgia, passa a ter aparência feminina, obtém registro civil de pessoa do sexo feminino e se vê habilitado a participar de concurso público destinado a pessoas do sexo feminino. Essa pessoa irá concorrer com outras, original e realmente do sexo feminino, em vantagem, quando se cuidar de certame em que houver avaliação de resistência ou capacidade física. É evidente o prejuízo que será causado às outras concorrentes.


Mais um exemplo: o esporte domina, hoje, procedimentos que permitem, com um simples exame, detectar a real conformação sexual de uma pessoa. O que prevalecerá? O registro civil? Ou o resultado do exame? Essa pessoa poderá disputar na categoria do “novo” sexo? Essa pessoa terá afrontados seus direitos essenciais se não puder disputar em tal categoria?” (EI nº 1.000.00.296076-3/001, DJ de 08.06.2004).


Diante do exposto, nego provimento ao recurso.


Custas, ex lege.


DES. WANDER MAROTTA – Conheço do recurso, mas, data venia, adoto entendimento diverso ao do eminente Relator e ao do Sr. Procurador de Justiça, Procurador Antônio César Mendes Martins.


O autor, que é professor, objetiva a retificação de seu nome em razão do disposto nos arts. 59 e 109 da Lei de Registros Públicos. Afirma ser popularmente conhecido pelo nome de “B.” e que, desde a infância, sempre apresentou um comportamento feminino, já tendo realizado cirurgia para mudança anatômica de sexo, o que leva a que deve ser deferida, desta forma, a retificação de nome, constando do novo registro o que foi por ele escolhido, que é do sexo feminino, além, evidentemente, da mudança de sexo. Analiso, primeiro, o pedido de retificação do registro civil do nome do autor.


Demonstrou o requerente que nasceu em 19.10.1975 (f. 18) e que já realizou a cirurgia de mudança de sexo, sendo conhecido pelo nome que pretende adotar como seu no registro civil (f. 22). A cirurgia ocorreu, dentre outros motivos, para permitir a inserção social e a concretização de sua autoimagem, que foi, inclusive, diagnosticada com “disforia de gênero” ou “transtorno de identidade sexual” antes da sua realização (f. 23), isso nos idos de 2004 (f. 18/29).


As relações entre os particulares, atualmente, não são mais regidas pelo Direito Civil clássico, que consagrava o individualismo econômico e a propriedade. A Constituição Federal consagra em todo nosso ordenamento jurídico a proteção aos direitos fundamentais, buscando evitar transtornos decorrentes do direito positivista. Os direitos fundamentais, hoje, são considerados como um conjunto de princípios que exprimem uma ordem de valores objetivada na Constituição. E, além da eficácia vertical, que obriga os poderes da República, possuem eficácia horizontal, aplicando-se de forma imediata nas relações entre os particulares.


Esses direitos estão todos calcados no princípio da dignidade da pessoa humana, dito elemento estruturante do Estado Democrático de Direito, e segundo o qual todo ser humano tem o direito de ser respeitado como ser individual. Segundo Maria Helena Diniz, a transexualidade é a condição sexual da pessoa que rejeita a sua identidade genética e a sua própria anatomia, identificando-se psicologicamente com gênero diverso. Segundo essa autora, “[…] trata-se de uma anomalia surgida no desenvolvimento da estrutura nervosa central, por ocasião de seu estado embrionário, que, contudo, não altera suas atividades intelectuais e profissionais, visto que, em testes aplicados, apurou-se que possui, em regra, um quociente intelectual (QI) entre 106 e 118, isto é, um pouco superior à média” (O atual estágio do biodireito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 231).


Na lição de Tereza Rodrigues Vieira, em artigo intitulado “Adequação de sexo do transexual: aspectos psicológicos, médicos e jurídicos”, publicado no site da conceituada Universidade Mackenzie (www.mackenzie.com.br/universidade/ psico/ publicação/revista2.2/artg.pdf): “Transexual é o indivíduo que possui a convicção inalterável de pertencer ao sexo oposto ao constante em seu registro de nascimento, reprovando veementemente seus órgãos sexuais externos, dos quais deseja se livrar por meio de cirurgia. Segundo uma concepção moderna, o transexual masculino é uma mulher com corpo de homem. Um transexual feminino é, evidentemente, o contrário. São, portanto, portadores de neurodiscordância de gênero. Suas reações são, em geral, aquelas próprias do sexo com o qual se identifica psíquica e socialmente.


Culpar esse indivíduo é o mesmo que culpar a bússola por apontar para o norte. O componente psicológico do transexual caracterizado pela convicção íntima do indivíduo de pertencer a um determinado sexo se encontra em completa discordância com os demais componentes, de ordem física, que designaram seu sexo no momento do nascimento. Sua convicção de pertencer ao sexo oposto àquele que lhe fora oficialmente dado é inabalável e se caracteriza pelas primeiras manifestações da perseverança dessa convicção, segundo uma progressão constante e irreversível, escapando a seu livre arbítrio”.


O transexual é o indivíduo que possui uma genitália, mas sua personalidade e atos são completamente de sexo diverso ao que aparenta. Essa é exatamente a situação do autor, que inclusive já realizou a cirurgia para mudança de sexo, possuindo atualmente aparência feminina (f. 34/ 40 e 18/29).


Nos termos da Constituição da República: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:


[…]


III – a dignidade da pessoa humana; […]


Art. 3º – Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: […]


IV – promover o bem estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idades e quaisquer outras formas de discriminação. […]


Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade, nos termos seguintes: […]


X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, […]”. A dignidade da pessoa humana, atributo fundamental do próprio Estado Democrático de Direito, consagra, de igual forma, e inclui direitos da personalidade que devem ser observados por todos. A dignidade é um conceito plástico, abrangente, que ganha a dimensão que convém prestar-lhe em cada caso concreto. Os direitos da personalidade, segundo a doutrina mais aceita hoje, decorrem do reconhecimento da dignidade; a personalidade é o atributo genérico reconhecido a alguém para que seja sujeito de direitos e deveres; é a aptidão para titularizar a relação jurídica, tornando-se portadora de todos os atributos decorrentes dos direitos da personalidade, dentre eles o direito ao nome.


A personalidade tem início com o nascimento com vida e só termina com a morte, sendo intransmissível e irrenunciável. Além disso, a personalidade confere ao ser humano os chamados “direitos da personalidade” que estão vinculados ao reconhecimento dos valores inerentes à pessoa humana, imprescindíveis ao desenvolvimento de suas potencialidades físicas, psíquicas e morais, tais como a vida, a incolumidade física e psíquica, o próprio corpo, o nome, a imagem, a honra e a privacidade, entre outras.


No caso, objetiva o autor a retificação de seu nome para que passe a ser identificado por apelido do sexo feminino. A cirurgia, como já assinalado, já foi efetivada, ressalvando-se não haver necessidade de autorização judicial para a sua realização, como se verifica da leitura do Código Civil em vigor e das Resoluções 1.482/97 e 1.652/02, emitidas pelo ConselhoFederal de Medicina.


O nome constitui exigência formal e ideológica da pessoa e individualiza a pessoa na sociedade. É um direito da personalidade e, como tal, constitui categoria jurídica fundamental. Estabelece o art. 58 da Lei nº 6.015/73 ser o prenome imutável. Entretanto, ainda nos termos da referida lei, pode ser objeto de retificação quando constar erro gráfico no registro de nascimento, ou quando expuser seu portador ao ridículo (art. 55, parágrafo único).


Walter Ceneviva (in Lei dos Registros Públicos  comentada. 9. ed. São Paulo: Saraiva, p. 103) afirma que, ao requerer a alteração do prenome, baseada em exposição ao ridículo, ou constrangimento, deve o interessado:


“a) afirmar que o prenome o submete ao riso e ao escárnio dos demais;


b) explicar por que, subjetivamente, sente-se ridículo;


c) comprovar, no seu meio social, o afirmado ridículo”.


No caso, não permitir que o autor – transexual já com aparência de pessoa do sexo feminino – modifique o nome vai expô-lo a situações vexatórias e até mesmo ao ridículo, instigando o preconceito contra a sua pessoa. É sem dúvida vexatória a situação de um indivíduo que, com aparência de mulher, seja portador de um nome masculino. Naquelas ocasiões em que se lhe exija identificação pessoal (em viagens, lojas, hotéis, etc.), o constrangimento será inevitável e marcante.


Ora, a Lei de Registros Públicos deve ser interpretada, levando-se em conta os princípios e fundamentos da Constituição da República. Segundo Carlos Alberto Bittar (em seu livro Os direitos da personalidade. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001): “Outro direito fundamental da pessoa é o da identidade, que inaugura o elenco dos direitos de cunho moral, exatamente porque se constitui no elo de ligação entre o indivíduo e a sociedade em geral.


Com efeito, o nome e outros sinais identificadores da pessoa são os elementos básicos de associação de que dispõe o público em geral para o relacionamento normal, nos diversos núcleos possíveis: familiar, sucessório, negocial, comercial e outros. Cumpre, aliás, duas funções essenciais: a de permitir a individualização da pessoa e a de evitar confusão com outra. Possibilita seja a pessoa imediatamente lembrada, mesmo em sua ausência e a longas distâncias. […]


O bem jurídico tutelado é a identidade, que se considera como atributo ínsito à personalidade humana. O direito essencial é ao nome, mas também recebem proteção os acessórios” (p. 124/ 125).


E continua o referido autor:


“Dentre as características do nome civil, a par das comuns aos direitos da personalidade, devem ser realçadas: a inestimabilidade (não se pode valorar economicamente, eis que inegociável); obrigatoriedade (uso necessário e mesmo contra a vontade do titular); imutabilidade; irrenunciabilidade (não pode ser afastado pelo titular); oponibilidade a terceiro e à família. […] O direito ao nome alcança: o uso em todas as circunstâncias, em atos privados ou públicos, com exclusividade pelo titular (que impõe a abstenção a terceiro de usar)” (p. 126).


Postas tais diretrizes, o que se tem é que a manutenção do nome do autor causar-lhe-á constrangimentos, e, na lição de Walter Ceneviva, “uma vez que se constate ser o prenome capaz de expor o seu titular a situações de vexame, a alteração deve ser deferida, a seu requerimento, com a prova, por ele, da verificação de vexame” (Lei dos Registros Públicos comentada. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 126).


A opção sexual do autor deve ser respeitada sem que com isso possa ser submetido a situações vexatórias. Atualmente seu nome não corresponde a seu aspecto físico, num divórcio que fatalmente o deixará exposto a situações de ridículo.


A Lei de Registros Públicos, aliás, autoriza a mudança do nome quando sua manutenção expõe seu titular a situação vexatória. É exatamente essa a hipótese dos autos. Um autêntico Estado Democrático de Direito reconhece, respeita e faz cumprir todos os direitos dos seus cidadãos, inclusive o direito a uma nova identidade sexual.


A Lei de Registros Públicos – bem como a lei civil e processual em vigor – não deve ser interpretada de modo a impedir uma pessoa de exercer, na sua plenitude, os direitos decorrentes da dignidade da sua condição de pessoa humana, devendo ser, ao contrário, interpretada em conformidade com os princípios e valores consagrados na Constituição. Assim, deve ser permitida a mudança do nome do autor, já submetido a mudança de sexo, pois só com isso será possível sua total inserção social, a preservação de sua dignidade e a observância dos princípios da dignidade, solidariedade e igualdade. A mudança, tal como requerida, retira-o, de certa forma, da condição de clandestino social. Como bem observou o eminente Des. Carreira Machado, em voto proferido nos embargos infringentes nº 1.0000.00.296076-3/001(1), julgado por este Tribunal em 22/04/2004 – e no qual ficou vencido:


“Não pode o juiz, no caso trazido aos autos, ficar à  margem da análise da dignidade da pessoa humana, que consiste em um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, previsto no art. 1º, III, da Constituição da República”.


É de ressaltar, por fim, a possibilidade, acrescida pela Lei 9.708, de 19.11.1998, de o prenome poder ser “substituído por apelidos públicos e notórios”. Essa justificativa também pode viabilizar legalmente o pedido inaugural e o torna possível, pois o recorrente sempre foi conhecido por todas as pessoas com as quais se relaciona, desde o trabalho, em casa, na família, junto aos vizinhos e pelos amigos, como B. Com a mesma orientação há precedentes na Justiça brasileira:


“Direito constitucional. Transexualismo. Inclusão na tabela SIH-SUS de procedimentos médicos de transgenitalização. Princípio da igualdade e proibição de discriminação por motivo de sexo. Discriminação por motivo de gênero. Direitos fundamentais de liberdade, livre desenvolvimento da personalidade, privacidade e respeito à dignidade humana. Direito à saúde. Força normativa da


Constituição.


1 – A exclusão da lista de procedimentos médicos custeados pelo Sistema Único de Saúde das cirurgias de transgenitalização e dos procedimentos complementares, em desfavor de transexuais, configura discriminação proibida constitucionalmente, além de ofender os direitos fundamentais de liberdade, livre desenvolvimento da personalidade, privacidade, proteção à dignidade humana e saúde.


2 – A proibição constitucional de discriminação por motivo de sexo protege heterossexuais, homossexuais, transexuais e travestis, sempre que a sexualidade seja o fator decisivo para a imposição de tratamentos desfavoráveis.


3 – A proibição de discriminação por motivo de sexo compreende, além da proteção contra tratamentos desfavoráveis fundados na distinção biológica entre homens e mulheres, proteção diante de tratamentos desfavoráveis decorrentes do gênero, relativos ao papel social, à imagem e às percepções culturais que se referem à masculinidade e à feminilidade.


4 – O princípio da igualdade impõe a adoção de mesmo tratamento aos destinatários das medidas estatais, a menos que razões suficientes exijam diversidade de tratamento, recaindo o ônus argumentativo sobre o cabimento da diferenciação. Não há justificativa para tratamento desfavorável a transexuais quanto ao custeio pelo SUS das cirurgias de neocolpovulvoplastia e neofaloplastia, pois a) trata-se de prestações de saúde adequadas e necessárias para o tratamento médico do transexualismo; e b) não se pode justificar uma discriminação sexual (contra transexuais masculinos) com a invocação de outra discriminação sexual (contra transexuais femininos).


5 – O direito fundamental de liberdade, diretamente relacionado com os direitos fundamentais ao livre desenvolvimento da personalidade e de privacidade, concebendo os indivíduos como sujeitos de direito ao invés de objetos de regulação alheia, protege a sexualidade como esfera da vida individual livre da interferência de terceiros, afastando imposições indevidas sobre transexuais, mulheres, homossexuais e travestis.


6 – A norma de direito fundamental que consagra a proteção à dignidade humana requer a consideração do ser humano como um fim em si mesmo, ao invés de meio para a realização de fins e de valores que lhe são externos e impostos por terceiros; são inconstitucionais, portanto, visões de mundo heterônomas que imponham aos transexuais limites e restrições indevidas, com repercussão no acesso a procedimentos médicos.


7 – A força normativa da Constituição, enquanto princípio de interpretação, requer que a concretização dos direitos fundamentais empreste a maior força normativa possível a todos os direitos simultaneamente, pelo que a compreensão do direito à saúde deve ser informada pelo conteúdo dos diversos direitos fundamentais relevantes para o caso.


8 – O direito à saúde é direito fundamental, dotado de eficácia e aplicabilidade imediatas, apto a produzir direitos e deveres nas relações dos poderes públicos entre si e diante dos cidadãos, superada a noção de norma meramente programática, sob pena de esvaziamento do caráter normativo da Constituição.


9 – A doutrina e a jurisprudência constitucionais contemporâneas admitem a eficácia direta da norma constitucional que assegura o direito à saúde, ao menos quando as prestações são de grande importância para seus titulares e inexiste risco de dano financeiro grave, o que inclui o direito à assistência médica vital, que prevalece, em princípio, inclusive quando ponderado em face de outros princípios e bens jurídicos.


10 – A inclusão dos procedimentos médicos relativos ao transexualismo, dentre aqueles previstos na Tabela SIH-SUS, configura correção judicial diante de discriminação lesiva aos direitos fundamentais de transexuais, uma vez que tais prestações já estão contempladas pelo sistema público de saúde.


11- Hipótese que configura proteção de direito fundamental à saúde derivado, uma vez que a atuação judicial elimina discriminação indevida que impede o acesso igualitário ao serviço público.


12 – As cirurgias de transgenitalização não configuram ilícito penal, cuidando-se de típicas prestações de saúde, sem caráter mutilador.


13 – As cirurgias de transgenitalização recomendadas para o tratamento do transexualismo não são procedimentos de caráter experimental, conforme atestam Comitês de Ética em Pesquisa Médica e manifestam Resoluções do Conselho Federal de Medicina.


14 – A limitação da reserva do possível não se aplica ao caso, tendo em vista a previsão destes procedimentos na Tabela SIH-SUS vigente e o muito reduzido quantitativo de intervenções requeridas.


14 – Precedentes do Supremo Tribunal Federal, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, da Corte Européia de Justiça, do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, da Suprema Corte dos Estados Unidos, da Suprema Corte do Canadá, do Tribunal Constitucional da Colômbia, do Tribunal Constitucional Federal alemão e do Tribunal Constitucional de Portugal. Direito processual. Legitimidade ativa do Ministério  Público Federal. Antecipação de tutela contra a Fazenda Pública. Abrangência nacional da decisão.


15 – O Ministério Público Federal é parte legítima para a propositura de ação civil pública, seja porque o pedido se fundamenta em direito transindividual (correção de discriminação em tabela de remuneração de procedimentos médicos do Sistema Único de Saúde), seja porque os direitos dos membros do grupo beneficiário têm relevância jurídica, social e institucional.


16 – Cabível a antecipação de tutela, no julgamento do mérito de apelação cível, diante da fundamentação definitiva pela procedência do pedido e da presença do risco de dano irreparável ou de difícil reparação, dado o grande e intenso sofrimento a que estão submetidos transexuais nos casos em que os procedimentos cirúrgicos são necessários, situação que conduz à automutilação e ao suicídio. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.


17 – Conforme precedentes do Supremo Tribunal Federal e deste Tribunal Regional Federal da 4ª Região, é possível a atribuição de eficácia nacional à decisão proferida em ação civil pública, não se aplicando a limitação do art. 16 da Lei nº 7.347/85 (redação da Lei nº 9.494/97), em virtude da natureza do direito pleiteado e das graves consequências da restrição espacial para outros bens jurídicos constitucionais.


18 – Apelo provido, com julgamento de procedência do pedido e imposição de multa diária, acaso descumprido o provimento judicial pela Administração Pública” (TRF – 4ª Região – Ap. 2001.71.00.026279-9/RS – Rel. Juiz Roger Raupp Rios – 3ª Turma – j. em 14.08.2007).


“Registro civil – Retificação – Assento de nascimento – Transexual – Alteração na indicação do sexo – Deferimento – Necessidade da cirurgia para a mudança de sexo reconhecida por acompanhamento médico multidisciplinar – Concordância do Estado com a cirurgia que não se compatibiliza com a manutenção do estado sexual originalmente inserto na certidão de nascimento – Negativa ao portador de disforia do gênero do direito à adequação do sexo morfológico e psicológico e a consequente redesignação do estado sexual e do prenome no assento de nascimento que acaba por afrontar a lei fundamental – Inexistência de interesse genérico de uma sociedade democrática em impedir a integração do transexual – Alteração que busca obter efetividade aos comandos previstos nos arts. 1º, III, e 3º, IV, da Constituição Federal – Recurso do Ministério Público negado, provido o do autor para o fim de acolher integralmente o pedido inicial, determinando a retificação de seu assento de nascimento não só no que diz respeito ao nome, mas também no que concerne ao sexo” (Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível nº 209.101-4 – Espírito Santo do Pinhal – 1ª Câmara de Direito privado – Rel. Elliot Akel – 09.04.02 – v.u.).


“Registro civil. Transexualidade. Prenome. Alteração. Possibilidade. Apelido público e notório. – O fato de o recorrente ser transexual e exteriorizar tal orientação no plano social, vivendo publicamente como mulher, sendo conhecido por apelido, que constitui prenome feminino, justifica a pretensão já que o nome registral é compatível com o sexo masculino. Diante das condições peculiares, o nome de registro está em descompasso com a identidade social, sendo capaz de levar seu usuário a situação vexatória ou de ridículo. Ademais, tratando-se de um apelido público e notório justificada esta a alteração. Inteligência dos arts. 56 e 58 da Lei nº 6.015/73 e da Lei nº 9.708/98″ (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 00394904NRO-Proc70000585836, data: 31.05.2000, Sétima Câmara Cível, Rel. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, origem Esteio).


“Apelação cível. Constitucional e processual. Ação de obrigação de fazer movida contra o Estado visando obter a realização de cirurgia de transgenitalização de neocolpovulvoplastia (mudança de sexo) porquanto, não tendo o autor recursos para financiá-la e estando a utilizar medicamentos preparatórios da cirurgia que podem acarretar efeitos colaterais pondo sua vida em risco, os quais foram indicados por médicos do próprio Estado, não pode ser desamparado pelo Poder Público tendo em vista o direito social à saúde, previsto na constituição. Sentença de improcedência. – O direito social à saúde, previsto no art. 196 da Constituição é autoaplicável, podendo se efetivar mediante a tutela jurisdicional.


– A negativa da efetivação de um direito assegurado pela Constituição, sem justificativa, constitui ofensa moral causadora de angústia, desalento, desesperança. – Apelo provido” (2005.001.07095


– Apelação Cível -TJ/RJ – Nona Câmara Cível – Des. Joaquim Alves de Brito – j. em 26.07.2005).


E deste Tribunal:


“Civil. Sexo. Estado individual. Imutabilidade. – O sexo, como estado individual da pessoa, é informado pelo gênero biológico. A redefinição do sexo, da qual derivam direitos e obrigações, procede do Direito e não pode variar de sua origem natural sem legislação própria que a acautele e discipline. Rejeitam-se os embargos infringentes. V.v.: – Embargos infringentes – Transexual – Retificação de registro – Nome e sexo – Negar, nos dias atuais, não o avanço do falso modernismo que sempre não convém, mas a existência de um transtorno sexual reconhecido pela medicina universal, seria pouco científico. Embargos acolhidos para negar provimento à apelação, permitindo, assim, a retificação de registro quanto ao nome e sexo do embargante” (Relator: Carreira Machado, p. em 22.04.2004).


Ressalto, ainda, que a questão não é nova para o Legislativo, em que o Projeto de Lei nº 70-B, de 1995, de autoria do Deputado Federal José Coimbra, em tramitação no Congresso Nacional, propõe a alteração do art. 129 do Código Penal; e, também, a do art. 58 da Lei de Registros Públicos, permitindo a retificação do nome e estado sexual com a averbação do termo “transexual” no registro de nascimento e na carteira de identidade.


Assim, dou provimento ao recurso para que seja o autor autorizado a retificar seu nome, nos moldes pretendidos na inicial. Indefiro, contudo, o pedido para que conste da certidão de registro civil ser ele do “sexo feminino”, visto não haver amparo legal para a pretensão.


É como voto.


DES.ª HELOÍSA COMBAT – Versam os autos sobre pedido de retificação de registro civil, tendo o autor sido submetido a uma cirurgia para mudança anatômica de sexo.


Peço vênia ao ilustre Relator, pois tenho o mesmo entendimento externado pelo não menos ilustre Revisor, cujo voto subscrevo, com pequena divergência pontual, no tocante a constar na certidão do registro o “sexo feminino”. Dada a relevância do tema versado, sou levada a fazer algumas considerações. Daniel Sarmento (A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2.000, p. 70 e seg.) trata das funções do princípio da dignidade da pessoa humana, ressaltando sua magna importância no sistema constitucional e afirma que a primeira dessas funções é a própria legitimação ética da Constituição.


Prossegue o tratadista, dizendo que o princípio da dignidade da pessoa humana é um limite indeclinável para a atuação do Estado e que qualquer ato que se revelar atentatório à dignidade humana será inválido e desprovido de eficácia jurídica, ainda que não colida frontalmente com algum dispositivo constitucional.


Em seguida, colaciona lição de Antonio E. Pérez Luño, que destaca a dupla dimensão constitutiva do princípio da dignidade, ou seja, a dimensão negativa, que busca impedir a submissão da pessoa humana a ofensas e humilhações, e a dimensão positiva, que impõe reconhecer “a autonomia imanente ao Homem, pressupondo a garantia de condições para o pleno desenvolvimento da sua personalidade” (op. cit., p. 71).


O Direito não é estático, ao contrário, é vivo, cabendo ao intérprete concretizar os princípios constitucionais.


Como bem registrou o douto Revisor, Des. Wander Marotta, deve ser respeitado o direito a uma nova identidade sexual, pena de restar ofendida a dignidade humana do autor da ação, que, por certo, sofre discriminação e constrangimentos, pelo fato de seu nome registral não corresponder ao seu aspecto físico. Por oportuno, transcrevo a ementa de acórdão do eg. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, relatado pela brilhante Desembargadora Maria Berenice Dias:


“Ementa: Apelação cível. Alteração do nome e averbação no registro civil. Transexualidade. Cirurgia de transgenitalização. – O fato de o apelante ainda não ter-se submetido à cirurgia para a alteração de sexo não pode constituir óbice ao deferimento do pedido de alteração do nome. Enquanto fator determinante da identificação e da vinculação de alguém a um determinado grupo familiar, o nome assume fundamental importância individual e social. Paralelamente a essa conotação pública, não se pode olvidar que o nome encerra fatores outros, de ordem eminentemente pessoal, na qualidade de direito personalíssimo que constitui atributo da personalidade. Os direitos fundamentais visam à concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual atua como uma qualidade inerente, indissociável, de todo e qualquer ser humano, relacionando-se intrinsecamente com a autonomia, razão e autodeterminação de cada indivíduo. Fechar os olhos a essa realidade, que é reconhecida pela própria medicina, implicaria infração ao princípio da dignidade da pessoa humana, norma esculpida no inciso III do art. 1º da Constituição Federal, que deve prevalecer à regra da imutabilidade do prenome. Por maioria, proveram em parte” (Segredo de Justiça) (Apelação Cível nº 70013909874, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Rel.ª Maria Berenice Dias, j. em 05.04.2006)”.


Quanto ao indeferimento, levado a efeito no voto do eminente Revisor, de que conste no registro a ser retificado a condição de “sexo feminino”, tenho entendimento diverso. Entendo que deve ser efetuada a retificação do sexo, uma vez que não vejo como compatibilizar o novo  prenome do autor, que passará a ser feminino, com a condição de “masculino” no registro, pois, a ser assim, continuariam a existir constrangimentos e humilhações.


Nesse passo, comungo com a v. decisão do eg. Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº 678.933-RS (2004/0098083-5), da Relatoria do Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. em 22.03.2007, p. no DJ de 21.05.2007, p. 571):


“Mudança de sexo. Averbação no registro civil. 1. O recorrido quis seguir o seu destino, e agente de sua vontade livre procurou alterar no seu registro civil a sua opção, cercada do necessário acompanhamento médico e de intervenção que lhe provocou a alteração da natureza gerada. Há uma modificação de fato que se não pode comparar com qualquer outra circunstância que não tenha a mesma origem. O reconhecimento se deu pela necessidade de ferimento do corpo, a tanto, como se sabe, equivale o ato cirúrgico, para que seu caminho ficasse adequado ao seu pensar e permitisse que seu rumo fosse aquele que seu ato voluntário revelou para o mundo no convívio social. Esconder a vontade de quem a manifestou livremente é que seria preconceito, discriminação, opróbrio, desonra, indignidade com aquele que escolheu o seu caminhar no trânsito fugaz da vida e na permanente luz do espírito.


2. Recurso especial conhecido e provido”.


Constou do voto:


‘”Trata-se de registro imperativo e com essa qualidade é que se não pode impedir que a modificação da natureza sexual fique assentada para o reconhecimento do direito do autor. Conheço do especial e lhe dou provimento para determinar que fique averbado no registro civil que a modificação do nome e do sexo do recorrido decorreu de decisão judicial”.


À luz dessas considerações, dou provimento ao recurso, para que o autor possa retificar o seu  prenome no Registro Civil, como pedido, na esteira do voto do ilustre Revisor, e mais, averbando-se a condição feminina (sexo feminino) e que a modificação decorreu de decisão judicial.


DES. WANDER MAROTTA – Sr. Presidente, pela ordem.


Ao tomar conhecimento do voto que acaba de ser proferido pela eminente Des.ª Vogal, retifico em parte o meu anterior pronunciamento, no sentido do deferimento da mudança de sexo do apelante, para também deferir a averbação no mesmo sentido em que a eminente Vogal o faz, ou seja, para permitir a averbação da condição feminina que agora decorre da nova situação física do apelante, e assim o faço  porque pode parecer contraditório que uma pessoa com nome feminino tenha averbado o sexo como se fosse masculino, podendo originar e causar problemas relevantes para o recorrente.


Assim, retifico nesta parte o meu voto para, também, deferir averbação para o sexo feminino.


DES. EDIVALDO GEORGE DOS SANTOS


– Este  relator, justificando o seu voto em que nega provimento ao recurso, entende que a mudança de sexo não ocorreu, uma vez que somente foi na aparência física que se fizeram as alterações no corpo do requerente, visto que o mesmo não possui regularmente os órgãos femininos, tanto de reprodução, como ovário, útero e tampouco glândulas mamárias de alimentação, ficando, portanto, somente na aparência tais modificações.


Assim, mantenho o meu voto.


Súmula – DERAM PROVIMENTO, VENCIDO O RELATOR.


 


Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico – MG