Ao eliminar a etapa da separação, a nova lei do divórcio diminui também a angústia dos casais que hoje estão no limbo: nem casados, nem livres para nova união
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A obrigatoriedade de cumprir um período de separação como condição para o divórcio não passava de uma imposição de um estado paternalista, que ainda enxerga os brasileiros como cidadãos necessitados de tutela. Visava a oferecer um tempo de reflexão para evitar possíveis arrependimentos por parte dos ex-cônjuges. Mas, além de se mostrar inócua (as estatísticas revelam que a porcentagem dos que voltam atrás é ínfima), a medida acabava deixando ex-marido e ex-mulher em uma espécie de limbo, onde eles nem bem podiam se considerar casados, nem bem estavam livres para oficializar uma nova relação. Como acontece com quase todas as regras lesivas, essa passou a ser frequentemente burlada. Homens e mulheres ansiosos por romper também os vínculos formais com seus ex-parceiros tinham apenas de contar com a cumplicidade de duas testemunhas dispostas a atestar que eles já não viviam juntos havia mais de dois anos para conseguir o divórcio e, desse modo, escapar de ter de continuar formalmente uma união que, na prática, não existia mais – situação que, para muita gente, é constrangedora. A bibliotecária Maria Célia Carvalho, de 53 anos, pôs fim a um casamento de 32 anos em fevereiro. A separação judicial está em trâmite desde então. “Quando o vínculo afetivo acaba, você quer cortar tudo de uma vez. O rito jurídico é sofrido, e você fica numa situação estranha. Eu ainda não me sinto 100% independente”, afirma.
Com a nova lei, esse desgaste tende a ser menor. “O caminho do divórcio ficará menos longo e tortuoso”, diz Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), ONG que preparou o projeto, enviado para o Congresso por um grupo de parlamentares de vários partidos. Ao propor a eliminação da etapa da separação, a entidade tinha como objetivo acabar também com outro anacronismo da lei: a figura da culpa. Como, para a Justiça, o casamento é um contrato civil, que estabelece deveres como o da fidelidade, da assistência mútua e do respeito entre os cônjuges, a quebra unilateral desse contrato implicava, obrigatoriamente, a culpa de alguém. Assim, ao definir o responsável pelo fim da relação, o juiz define automaticamente quem é o “culpado” (o outro lado fica sendo o “inocente”). Ele não necessariamente sofre punição, mas não é incomum que à mulher “culpada”, por exemplo, seja outorgada uma pensão alimentícia menor que a recebida por outra na mesma situação – mas que, aos olhos da Justiça, foi cumpridora de seus deveres conjugais. No ano passado, um juiz mineiro negou pensão a uma enfermeira tida como “culpada” pelo fim do seu casamento por “conduta desonrosa” (o togado considerou que ela traíra o marido ao manter um namoro virtual em um site de relacionamentos na internet). Como a discussão da culpa se dá na etapa da separação, que desaparece com a nova lei, o IBDFam acredita que também a figura da culpa deixará de existir. Há, porém, especialistas que discordam – avaliam que a discussão sobre o assunto apenas migra da etapa da separação para a do divórcio. O impasse deverá ser decidido pelo Judiciário depois que a nova lei entrar em vigor e à medida que os questionamentos forem surgindo.
A nova lei brasileira do divórcio representa um avanço porque diminui a interferência do estado numa questão absolutamente privada dos cidadãos. “Estamos caminhando na direção do modelo correto, em que o estado não atrapalha a vida das pessoas e só interfere quando elas não dão conta dos próprios problemas”, avalia o advogado Luiz Kignel. Rumo semelhante estão tomando os Estados Unidos e países da Europa já há mais tempo. A Espanha, por exemplo, reformou sua lei do divórcio em 2005, eliminando a etapa prévia da separação e dispensando os casais da obrigação de apresentar um motivo para o rompimento. Em Portugal, a mudança foi mais radical: desde o ano passado, é possível divorciar-se pela internet.
No Brasil, até 2007, mesmo os casais que rompiam de comum acordo eram obrigados a se apresentar diante de um juiz para pedir a separação – que o magistrado poderia inclusive negar. Hoje, casais sem filhos menores de idade e que estejam se separando ou se divorciando consensualmente podem fazê-lo em cartório – o que faz muito mais sentido, já que foi lá, e não na Justiça, que eles se casaram. “A proteção do estado está se deslocando da unidade familiar para o indivíduo”, afirma a advogada Renata Di Pierro, especialista em direito de família. “Isso é positivo porque significa um maior reconhecimento da autonomia dos cônjuges” – inclusive para desatar, com rapidez e mais privacidade, os próprios nós.
Fonte: Revista Veja