JOSÉ HENRIQUE LARA FERNANDES
Quem não atua na área jurídica, talvez não tenha ideia da importância do Código de Processo Civil na dinâmica de cada fato, de cada negócio realizado entre cidadãos, empresas, nas relações familiares e nas relações do cidadão com o Estado, dentre tantas outras, pois é através do processo que se deve tornar efetivo o direito previsto em outros códigos e leis, como o Código Civil, Código de Defesa do Consumidor, Lei das Sociedades Anônimas, Lei das Microempresas, em suma, é o veículo através do qual se deve alcançar a plenitude do direito previsto na legislação, para cada relação jurídica que se estabelece no meio social.
Para ter credibilidade, e conquistar a adesão do público como é desejável – não se tornando um instrumento de imposição e arbítrio -, o processo deve ser justo (e não apenas parecer justo), e precisa atingir seu objetivo, conferindo ao titular do direito o bem da vida que lhe foi negado pelas vias normais de relacionamento social.
Sendo justo e atingindo seu objetivo, o processo proporcionará o equilíbrio e a segurança das relações jurídicas, conduzindo a sociedade no caminho da paz social, que é o que todos queremos.
Certa vez, um professor que tive, com formação no direito norte americano – era doutor pela Universidade de Harvard -, intrigou-se com uma afirmação que fiz num projeto de pesquisa, de que a litigiosidade excessiva era como uma epidemia, um mal que assolava nosso país.Curioso diante daquela afirmação, o mestre esmerou-se em demonstrar, através de gráficos e figuras geométricas, que era justamente o contrário do que eu dizia. Na verdade, o baixo número de processos não indica necessariamente que se vive num meio social pacífico e equilibrado.
No caso brasileiro, até a avalanche de processos que se seguiu à Constituição de 1988, o que não havia era um rol de direitos básicos, inclusive no que tange ao acesso à Justiça.
Vivia-se um período de exceção e extrema violência, e nem por isso havia umgrande númerode processos tramitando no Judiciário, cuja estrutura ainda era bastante precária no fim do século passado. A Constituição de 1988 iniciou um ciclo de afirmação de direitos básicos, e coube ao Estado aparelhar o Judiciário para torná-los efetivos a todos os cidadãos. Assim teve origem a luta pelo acesso à Justiça, e a esses direitos constitucionais básicos, outros foram se somando através de leis específicas, sempre acompanhando a evolução social, tecnológica e econômica, de um país em desenvolvimento como o Brasil.
O atual Código de Processo Civil, promulgado em 1973, não se adequou a essa nova realidade, a esses novos direitos. Não foi feito paraum Judiciário com milhões de demandas, inúmeros prédios informatizados, e um contingente de milhares de juízes com uma condição de trabalho totalmente distinta, daquela encontrada na década de 70, quando não existiam tantos processos. O perfil atual da magistratura também não é o mesmo daquele passado e não se pode desconhecer o fator humano quando se trata de aplicar uma legislação tão próxima do cidadão, tão sujeita a paixões,como a do Processo Civil. É difícil, por outro lado, desfazer-se totalmente um estatuto tecnicamente notável como o Código de 1973. A verdade, no entanto, é que, por essas limitações humanas, ele já não vem sendo aplicado, em grande parte, ou vem sendo aplicado, outras vezes, em detrimento desses novos direitos proclamados em leis mais recentes, e, por ter se tornado tão complexo e ineficiente, é que o chamado Código Buzaid está com seus dias contados.
Dois aspectos fundamentais devem ser levados em conta na elaboração da nova legislação processual, que está por vir. O primeiro diz respeito ao fim, mais do que certo, da vasta malha de recursos criados em 1973 para dotar o processo de maior segurança. Voltemos a raciocinar sobre o fator humano: se hoje são tantos processos a serem apreciados, havendo tantos recursos disponíveis, tem-se como resultado uma apreciação quase sempre superficial de cada processo, e uma decisão com um mínimo de fundamentação (os motivos da decisão), pois sempre caberá algum recurso, e assim, dificilmente um magistrado poderá errar sozinho. Esse é o raciocínio prevalecente, que diante da futura supressão de vários recursos pode se tornar perigoso, levando à insegurança e à incredulidade do público na solução judicial dos conflitos.
Se recursos forem suprimidos (como deve acontecer), é preciso que se garanta, em contrapartida, uma decisão efetivamente fundamentada, de forma que nenhuma dúvida reste quanto à imparcialidade do julgador, e de que foi respeitado o direito da parte a uma participação ativa no processo, produzindo provas e formulando argumentos, examinados com a devida atenção pelo juiz. Outras práticas também não deverão ser toleradas, diante da inexistência de recursos, como o uso da ficção (a visão íntima ou distorcida do julgador acerca de determinado fato da causa), e das presunções não autorizadas por lei – a prática do julgador deduzir a partir e um fato provado, outro não provado, por mera economia.
Por fim, é preciso que se reconheça que o Judiciário não está suficientemente aparelhado para fazer cumprir, eficazmente, as decisões cíveis não mais sujeitas a recurso. Além disso, muitos juízes não se sentem estimulados em ir além das decisões que proferem, promovendo o cumprimento das mesmas, por razões plenamente ponderáveis. Penso, como eles, que a atividade jurisdicional se encerra com o julgamento do último recurso. Ao invés de transformar a missão de quem julga, numa caçada aos bens daquele que perdeu a causa – muitas vezes esses bens já foram dissipados ou desviados no curso do processo, e raramente alguém é punido -, deveria o legislador transferir às autoridades administrativas a responsabilidade pelo cumprimento das sentenças, mediante a apresentação, pelo interessado, de um documento expedido pelo Judiciário (uma carta de sentença).
Assim, não havendo o cumprimento espontâneo da decisão judicial, essa “carta de sentença” seria expedida pelo Judiciário em prol do interessado – o vencedor da causa ou aquele a quem tenha sido transmitido esse direito contido na sentença -, e apresentada perante o Banco Central, Detran, Cartório do Registro de Imóveis, onde quer que o devedor possua bens, a fim de que sejam depositados e alienados para pagamento do credor – aquele que venceu a causa. Para isso, existem profissionais credenciados, como depositários e leiloeiros, e sempre haverá um remédio jurídico para eventual abuso no cumprimento da sentença. Mas o certo é que o descumprimento não se justifica, e muito menos a fraude, que infelizmente se tornou tão comum.
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José Henrique Lara Fernandes é advogado, mestre em direito e professor da Universidade Cândido Mendes Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações
Fonte: Jornal Valor Econômico