Walter Ceneviva: Solidariedade viva

NÓS , os profissionais do jornalismo e da advocacia, temos a tendência, às vezes exagerada, de por dúvida em muito do que se ouve e se lê, buscando nas entrelinhas e nas pausas, a descoberta do que pode existir por trás do fato narrado.

Há outras profissões ligadas à mesma desconfiança, como se fosse um vício. Lembro das duas porque, afinal, são as minhas. Pois o que se viu em São Luiz do Paraitinga, no começo deste ano, mudou minha visão. Desde que a cidade destruída em grande parte pelas inundações, com dezenas de casas levadas pela correnteza, a catedral, o mercado, a prefeitura, a biblioteca, o cartório do registro civil demolidos e o conjunto de prédios da melhor arquitetura colonial paulista atingido, mostrou o oposto. Enorme dose de solidariedade espontânea logo se mobilizou.

O pessimismo, sobre o que seja solidariedade, quando se lida com o direito, é até razoável. Para essa área profissional, a solidariedade existe, mas não aquela que impõe sacrifícios pessoais e despojamento para beneficiar até desconhecidos.

Seres humanos que deixaram seus afazeres foram a São Luiz levando além do conforto espiritual, toda sorte de bens. Até as autoridades de fora da cidade se sensibilizaram. Viu-se que a solidariedade é possível. O contrastante diagnóstico pessimista de parte da população talvez se explique pela extraordinária mudança instalada no mundo moderno, em que os parâmetros das condutas humanas tornaram-se instáveis. Nada é definitivo.

Para o advogado, a explicação em matéria de saber o que é solidário, é mais simples. Das quase 50 vezes em que o Código Civil enuncia regras e situações envolvendo formas de atos jurídicos solidários ou vinculados à solidariedade, não é porque caracterizem a atitude ética, de buscar o bem do próximo.

Na lei, solidariedade não se liga a gestos e iniciativas de pessoas que se associam, sem outra inspiração que não a do desejo de dar qualidade à vida do próximo, sem olhar a quem. Existe no ter dívida ou ter crédito.

Assim, em direito civil, a solidariedade sempre envolve uma obrigação legalmente possível. Nela concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada qual deles envolvido na obrigação pelo total da dívida (Código Civil, artigo. 264).

Para não deixar dúvida, o artigo 265 é ainda mais expressivo. Enuncia que a solidariedade não se presume, mas resulta da lei ou da vontade das partes, para satisfazer ou para exigir um direito. Ou a lei a impõe ou duas ou mais pessoas, sendo devedoras ou credoras, assumem em conjunto o direito ou o dever, de cobrar ou de pagar, em face do negócio jurídico contratado.

Nada disso se aplicou em São Luiz do Paraitinga. Lá, fui testemunha da destruição. Há os que perderam tudo. Seguiu-se, porém, à grande tristeza, uma emoção nova.

Centenas, milhares de pessoas, permanecendo anônimas, na maioria, imediatamente se mobilizaram para ajudar na limpeza da cidade, na contribuição de remédios, desinfetantes, roupas de vestir, de cama e mesa, móveis, livros, petrechos de cozinha, tudo o que se possa imaginar. Foram buscar o bem comum, de uma cidade pequena, cujas maiores riquezas são imateriais, ligadas à história, à arquitetura, à música, ao folclore. Ela e seu povo merecem o esforço.


Fonte: Folha de S. Paulo – São Paulo/SP