Clipping – Os sem-concurso – Opinião – Jornal Correio Braziliense

JOAQUIM FALCÃO

Professor de Direito da Fundação Getulio Vargas

Faz 122 anos. Em 14 de julho de 1887, a princesa Isabel, regente do Império, em nome do Imperador Dom Pedro II, determinou que todos os ofícios da Justiça fossem providos mediante concursos. Tabeliães, oficiais, escrivães, todos. A Constituição de 1988 também.

O Conselho Nacional de Justiça também.

O Supremo, em sua firme jurisprudência, também. Mas a centenária resistência dos cartórios contra concurso também se mantém.

Esta semana, o corregedor-geral da Justiça, ministro Gilson Dipp, tomou decisão histórica contra essa resistência.

Primeiro, mandou fazer concurso público em 5.561 cartórios, isto é, em mais de um terço dos cartórios existentes no Brasil.

Até então ocupados por interinos de confiança, os sem concurso. Segundo, estabeleceu teto de remuneração máxima dos interinos em R$ 24.117,62. Essa é inovação fundamental: teto salarial para interinos. Mostra profundo respeito à Constituição.

O maior efeito da decisão do ministro Dipp, além da moralização e valorização do Poder Judiciário, é desarticular alianças políticas internas intratribunais, entre magistrados e interinos de confiança que não contribuem para a otimização da administração da Justiça. E com a Resolução 81 do CNJ, já em vigor desde junho do ano passado, os tribunais têm agora menos de seis meses para realizarem concurso para prover todos esses cartórios. Uma vez lançado o edital, um ano para finalizar os concursos e empossar os aprovados.

Essa decisão do ministro Dipp e a Resolução do CNJ têm força de lei. E, justo por isso, os presidentes de tribunais que as descumprirem estarão sujeitos a responder por improbidade administrativa. É risco grande.

A maioria dos tribunais está tentando regularizar a situação. Conta inclusive com o apoio de representantes de cartórios que defendem concursos, como a Associação Nacional de Defesa de Concurso para Cartórios (Andecc) e setores da Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg).

A resistência em cumprir a Constituição se estreita. Interinos não poderão mais usar tribunais locais para adiar os concursos, como vinham fazendo. Contra o CNJ, só no Supremo.

A última tentativa de resistência dos não concursados é a Proposta de Emenda Constitucional 471/05, mudando a Constituição e mandando efetivar os sem concurso. Essa PEC tentou ser votada diversas vezes no último ano. O Congresso resistiu. Pressão máxima foi dada agora às vésperas da eleição.

O Congresso resistiu uma vez mais.

Não somente pela provável oposição do Supremo, como também pelo impacto nos eleitores e o cada vez mais estrito controle de financiadores de campanha, uma das estratégias dos sem concurso.

A resistência à Constituição está reforçando lideranças, como a do conselheiro Milton Nobre, do CNJ, que considera o modelo de cartório privado dispensável. Diminuiria imensamente os custos da administração de justiça.

Na verdade, cartório não é destino inevitável para o país. Só existe por causa do monopólio estatal das certidões. Somente ele emite certidões com fé pública, que os cidadãos precisam para suas vidas: nascer, morrer, casar, contratar, comprar casa etc.

Esse monopólio é herança portuguesa.

Não precisa existir.

Muitos países não têm esse amplo monopólio estatal e funcionam bem, como os EUA. Outros, na Europa, não dependem do Judiciário. Certidões de nascimento e óbito são dadas pelo governo local. Aqui, as secretarias de segurança já fornecem as carteiras de identidade. Poderiam fornecer as certidões.

Seria extensão natural e econômica.

Um novo modelo de gestão sem cartório privado – que diminua o custo das certidões, os atos necessários com fé pública e promova desburocratização intensiva – começa a ganhar corpo.

O ministro Dipp estimula hipótese nova.

Estabelecer tetos de ganhos. O que pode ser feito mediante uma política fiscal específica, se o atual modelo de concessões privadas continuar. Mas a resistência dos sem concurso agora tem que avaliar: quem tudo quer, tudo perde.

 

 

Fonte: Jornal Correio Braziliense – Caderno Opinião