Entre o carimbo e a certificação digital

O MUNDO DOS CARTÓRIOS

É onde se registra vida e morte, onde se fazem e desfazem casamentos, onde nascem pequenas empresas e grandes negócios. No Brasil, 14.964 cartórios e tabelionatos movimentam cerca de R$ 4 bilhões ao ano, mas têm pouca visibilidade. A polêmica sobre a realização de concurso público para preencher 5,5 mil postos considerados vagos mais de um terço dos existentes pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) dirigiu uma réstia de luz sobre esse universo.

Herdado dos portugueses, o sistema brasileiro é semelhante ao de outros 80 países. A gestão de cartórios já foi agrado da realeza aos súditos, presente de políticos a aliados, herança de pai para filho. Agora, mais controles tentam depurar um passado turvo.

Os cartórios estão instalados no Congresso e fazem um lobby poderoso. É uma característica peculiar de organização do Brasil diz João Geraldo Piquet Carneiro, presidente do Instituto Hélio Beltrão, ex-ministro que ficou conhecido por sua cruzada pela desburocratização.

Entre os sinais da força do segmento, Piquet Carneiro lembra da dispensa de reconhecimento de firma e de autenticação de documentos que vigorou por cerca de 20 anos, até a década de 1990.

Era uma boa prática, não implicou aumento de corrupção ou de fraude, mas aos poucos foi voltando (a exigência), talvez estimulada pelos cartórios, que tiveram perdas de receita.

Passar por cartório ou tabelionato ajuda a evitar tribunais por dar segurança jurídica, sustenta José Flávio Bueno Fischer, presidente do Colégio Notarial do Brasil. Mesmo assim, admite distorções: As pessoas de menos recursos acabam gastando mais, pois há um teto de cobrança, de forma que grandes negócios pagam proporcionalmente menos.

Fischer destaca a evolução representada pela implantação de novas tecnologias e sistemas de gestão, que tem melhorado o atendimento. Reconhece, porém, que a população ainda tem de conviver com cartórios obsoletos e mal preparados .

A fiscalização cabe às Corregedorias-Gerais de Justiça. No Rio Grande do Sul, há 754 cartórios, registros e tabelionatos. Mantida a proporção nacional, arrecadariam R$ 200 milhões ao ano. Maria Cláudia Cachapuz, juíza corregedora do Tribunal de Justiça do Estado, diz que sempre houve controle, mas desde 2008 a inspeção foi reforçada.

Temos quatro coordenadores de correição, e toda semana dois estão em inspeção. Fazemos de seis a 10 por semana, mais de 500 ao ano. Algumas resultam em intervenção, outras em recomendações de adequação.

Para Piquet Carneiro, inimigo declarado de carimbos e selos, a exigência de concursos pode ser o primeiro passo de uma depuração: É a primeira vez, desde que os militares mudaram o sistema hereditário, que vejo uma iniciativa importante de enfrentar a questão.

Concurso para preencher 5,5 mil vagas em cartórios suscitou discussão sobre o modelo de serviços e a força do segmento


Serviço repaginado
Umas das vagas que devem ser preenchidas pelo concurso no Estado tem história e mostra tanto a pena quanto o alívio dos usuários de serviços de cartório. Encravado por décadas numa esquina da Avenida João Pessoa, em Porto Alegre, o 8º Tabelionato de Notas era a imagem do caos: filas apertadas no lado de dentro e expostas à chuva e ao vento quando alcançavam o de fora.

E esses eram apenas os sinais externos da situação crítica descrita pelo juiz-diretor da Comarca da Capital, Carlos Eduardo Richinitti, como desorganização completa dos livros, registros e arquivos para justificar a intervenção em 3 de dezembro de 2009. Para interventor, foi nomeado o titular do 12º Tabelionato, Rafael Leocádio dos Santos Neto. Seis meses depois, o serviço mudou de endereço, quintuplicou a área, trocou filas desconfortáveis por cadeiras e um civilizado sistema eletrônico de senhas.

Quem me suceder aqui vai receber, entre aspas, um presente garante o tabelião.

Bisneto de um tabelião na região de Santiago, neto de outro em Aratiba, filho de um concursado e substituto efetivado antes da Constituição de 1988, Santos Neto não gosta do adjetivo hereditário aplicado ao negócio: Não passa de pai para filho por direito, eu assumi por ser o funcionário mais graduado.

O seu casal de filhos foge da atividade como o diabo da cruz , garante. Sua esperança é sugerir ao enteado de 13 anos que se dedique à profissão.

Ele gosta de computador, e como cada vez usamos mais, trouxe ele aqui para ver conta.

Para transitar do carimbo e dos fichários manuseados para o sistema digital que usa hoje, Santos Neto contou ainda, no 12º Tabelionato, com a assessoria da empresa e-tab, especializada em serviços cartoriais. Seu diretor, Marcelo Haeser, era substituto em um tabelionato e não quis ficar exposto às incertezas da sucessão e dos concursos. Decidiu ser empresário e auxiliar os bacharéis em Direito a modernizar a gestão do negócio.

Essa parceria foi replicada no 8º Tabelionato. Em julho, pela primeira vez desde a mudança, o tabelionato sob intervenção deve empatar receitas e despesas. Ainda pouco habituada com o novo endereço, a clientela diminuiu, como é possível perceber nas salas relativamente vazias da nova sede, alugada na Avenida Protásio Alves.

Na época da máquina de escrever e do carimbo, os custos eram bem menores testemunha Santos Neto.

Usar tecnologia implica mais treinamento. Até porque é do patrimônio do tabelião que saem indenizações em caso de prejuízo a usuários causado por problemas em atos de sua responsabilidade, enfatiza: Eu mesmo já indenizei um carro, telefones, mas o risco diminuiu com os novos controles.

Sinal de que os controles aumentaram, mas ainda são relativos. Todo o trabalho feito no 8º Tabelionato e até o endereço pode ser mudado pelo novo titular definido por concurso.

Santos Neto confessa não ter ideia de quanto tempo vai permanecer como interventor e que não será sem dor que transferirá a titularidade: É como um filho que a gente vai ter de abandonar, mas fica a honra de ter feito aquilo suspira, à espera de definições.

Dúvidas cercam seleção complexa
Nos 14.964 cartórios, registros e tabelionatos do Brasil, há 5.561 cargos de titulares que devem ser supridos por concurso público conforme o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Desse total, 219 estão no Rio Grande do Sul, em postos que vão do Serviço Notarial e Registral de Água Santa até o 8º Tabelionato de Notas de Porto Alegre (veja texto na página ao lado). O desembargador Eduardo Uhlein, da 3ª Câmara Especial Cível do Tribunal de Justiça do Estado, é o responsável pela organização da seleção.

Não temos ainda o número certo. Infelizmente, o CNJ centralizou a organização da lista de vacâncias. Os critérios para definir essas vacâncias geraram muita polêmica afirma Uhlein.

Por meio da assessoria de imprensa, o CNJ confirma que a lista de 219 vagas no Estado é definitiva. E ainda há 1.105 no país sob análise. Ou seja, a relação pode crescer, mas não diminuir.

Pela expectativa do desembargador, a seleção deve envolver entre 150 e 200 cargos. É preciso definir a ordem cronológica da vacância, destaca Uhlein, porque a lei prevê que, a cada três vagas, duas devem ser supridas por concurso e a terceira, por remoção. Um titular pode trocar um posto por outro, geralmente movido pela rentabilidade. O desembargador prevê que o processo leve um ano, com provas objetiva, escrita, prática, oral e de títulos.

Deve ser muito disputado, como o para juiz, que teve 6 mil inscritos para cerca de 60 aprovados. A remuneração é considerável e não está submetida a teto ressalta Uhlein.

Presidente da Associação dos Notários e Registradores (Anoreg), Rogério Bacellar contesta os critérios do CNJ para declarar os cargos vacantes, mas nega que a estratégia seja atrasar o concurso para manter os substitutos nos cargos.

Tem de resolver o quanto antes, para que os atingidos busquem uma solução afirma.

Uma das diferenças entre os critérios do CNJ e os da Anoreg é de seis anos. É o tempo entre a Constituição de 1988, que consagrou a exigência de concurso, e a lei que regulamentou o artigo sobre a forma de provimento de cargos, de 1994.

A Anoreg quer respeito aos tribunais de Justiça dos Estados que fizeram efetivações até 1994, regulamentando a transição por leis estaduais pondera Bacellar.

 

 

 

Fonte: Jornal Zero Hora – RS