Artigo- Registro civil e escravidão, por Fonseca Neto

Poucas pessoas são sabedoras hoje em dia de que foi houve no Brasil resistência contra a implantação do censo demográfico e sobretudo da obrigação do registro civil de nascimento e de óbito, novidades naquele tempo do Segundo Império –anos de 1851 e 1852. 

Na região atualmente conhecida como Nordeste, as reações a essas novas obrigações em face do poder público parece foram mais radicais, chegando ao estado de verdadeira insurgência, bastante gente em armas, ao ponto de o ministro da Justiça, Euzébio de Queiroz, dizer, em 1850, segundo o historiador Hamilton Monteiro: “É necessário porém acabar quanto antes esse germe de revoltas”. Referia-se, no contexto, ao estado de insurgência naqueles anos e décadas posteriores à declaração de Independência, em particular, a revolução Praieira, projetada de Pernambuco a todo o grande sertão, do árido Agreste e em rumo da Hiléia amazônica. Lembra Monteiro que a “prisão dos seus principais líderes [da Praieira] não significou que os revoltosos tivessem esquecido suas reivindicações”.

Naquele ano de 1851 o governo conservador decreta o arrolamento da população e sua contagem, assim também a obrigação de que todos deveriam ser registrados na escrivania do juiz de Paz. Eram medidas para entrar em vigor no ano seguinte, 1852. A notícia dessas novas obrigações espalhou-se como rastilho de pólvora renovando os temores de maiores opressões, especialmente entre os trabalhadores e pobres em geral e que esses decretos visariam “escravizar a todos os recém-nascidos e aqueles batizados com as formalidades prescritas por aquela lei”. Logo foram elas associadas a outra antiga opressão: o recrutamento forçado dos filhos jovens dos trabalhadores livres. Ademais, aquele era o ano da chamada “abolição” do trafico negreiro e o que se pensava seria o censo demográfico serviria para instaurar uma nova escravidão – aliás, registro era sinônimo de cativeiro. No limite (e nos parece com toda a razão) aquilo era mais uma sujeição que se lhes impunha. Especialmente nas províncias mais do norte oriental – somente no século XX o vocábulo “nordeste” passaria a denominar essa região – grupos armados levantaram dezenas de “termos” e “freguesias”: “ataques às vilas e engenhos, fuga de autoridades e grandes proprietários [incitando os líderes] os moradores a tomarem das armas ‘se não querem ficar reduzidos com seus filhos ao cativeiro’”. 

“Ronco da abelha”: assim vários historiadores se referem a essas manifestações de irredenção contra o censo e o registro civil. Padres foram acusados de insuflar os “proletários” – pois é, documentos oficiais começam a usar esse vocábulo; lembram de 1848! – pois estariam perdendo poder. Eram os párocos os encarregados pelo triplo registro: batizado, casamento e óbito.  Fato também é que somente em 1872 se faria o primeiro censo demográfico (o qual, aliás, pedia mesmo se declarasse a cor da pele) e o registro civil somente viria depois de 1880.

E como aconteceram essas levantações aqui pelo Piauí? Ainda estamos por investigar esse desdobramento. O que se sabe é que nesse ano os donos do poder no Piauí estavam mais ocupados na mudança da capital provincial. Aliás, no dia que essa mudança efetivou-se, o imperador do Brasil estava em Paris assinando a Convenção mundial sobre pesos e medidas – ainda hoje em vigor – e que também motivaria outra onda de insurgência dos eitos.     

E foi muito lentamente que as pessoas foram aceitando fazer o registro de nascimento de seus filhos, do casamento e de óbito … Uma prova: há exatos 110 anos, em agosto de 1901, o juiz da Comarca do Alto Itapecuru, no Maranhão, o piauiense dr. Antonio José da Costa, fazia visita de trabalho a um dos termos de sua vasta comarca, Passagem Franca, e nessa missão realizava audiências públicas para ouvir os reclamos da sociedade e reclamar dela sobre sua baixa adesão ao registro civil, prescrevendo pesadas multas e outras admoestações aos infratores. Ele estranhava a baixa adesão das pessoas ao dito registro. Outro piauiense ali chegado, Henrique José Couto, sucedendo a Antonio José, por volta de 1905, seguiria idêntica prevenção: reclamava da não adesão das pessoas ao registro civil. Reclamava que no tempo de um ano apenas três registros de óbito haviam sido feitos no cartório da Passagem Franca e prescrevia pesadas multas aos infratores.

O juízes visitantes deixavam nos “provimentos” cartoriais as suas observações apreensivas. O que se pode entender disso mais de duas décadas depois de 1881, quando obrigatório se tornou tal registro? O antigo temor de escravidão é uma prova das perversões desse regime social que, sob vários aspectos, inutilizou, por séculos, e inutiliza, a idéia e a prática da cidadania no Brasil.  

 

(*) Fonseca Neto, da Ufpi, do IHGP, escreve às segundas-feiras nesta página.


Fonte: www.acessepiaui.com.br