Juizado determina pagamento de pensão alimentícia como forma de punição a pais que rejeitam criança depois de adotá-la. Cinco foram devolvidas em Belo Horizonte este ano
Em ação inédita no Brasil, o juiz titular da Infância e da Juventude de Belo Horizonte, Marcos Flávio Padula, baixou a Instrução 002, em 20 de junho de 2011, que vai provocar reviravolta nos processos de adoção no país. Ele determinou o pagamento de uma espécie de pensão alimentícia como punição aos casais que adotam uma criança e, durante o período de adaptação e antes da entrega do termo definitivo de guarda (trânsito em julgado), já no momento de receber a certidão de nascimento do filho adotivo, devolvem a criança ao juiz. Apesar de representar menos de 1% dos casos do juizado, em média, as cinco crianças devolvidas este ano na capital mineira carregam na alma a marca da dupla rejeição, tanto da família biológica quanto da família adotiva.
Nem mesmo todo o cuidado tomado pelo juizado (que exige documentação completa e laudo de sanidade psicológica dos candidatos a pais adotivos, visitas de assistentes sociais e frequência obrigatória em reuniões de grupos de apoio à adoção) é capaz de evitar aberrações, como as de um casal de uma comarca no interior de Minas que rejeitou uma menina de 9 anos por ela ser “preta demais”. “Graças a Deus conseguimos reencaminhá-la para uma família de São Paulo. Ela já fez aniversário e está feliz demais com a nova família”, revela Sandra Amaral, fundadora do grupo de apoio à adoção A instituição De volta para casa, de Divinópolis, em parceria com a Igreja Batista, é a única entidade do tipo a manter uma casa de assistência a 150 crianças, evitando que sejam encaminhadas para adoção. “Damos a chance de a família de origem resgatar o filho. Às vezes, a dificuldade é o pai que foi preso ou a separação da mãe com o padrasto, que leva à situação de maus tratos”, compara.
Na instrução de Padula, não foi fixado qual será o valor da pensão alimentícia a ser paga pelos ex-guardiães que devolverem o filho adotivo. A quantia deve ser depositada em juízo até que a criança complete 18 anos ou seja adotada por outro casal. “É um arraso quando isso (a devolução) acontece. A adoção não pode ser algo de impulso, tem de ser um desejo real do casal, porque, do ponto de vista psicológico, a devolução é grave e confirma para a criança que ela é impossível de ser amada”, alerta a psicóloga Rosilene Cruz, coordenadora técnica da Vara da Infância e da Juventude de BH.
Ela lembra que os pais adotivos já são preparados para enfrentar as fases dos filhos adotivos que, primeiro, passam por um período de ‘lua-de-mel’ com os pais adotivos e, em seguida, começam a testar os limites dos novos pais. “Como já foram rejeitados uma vez, eles têm medo de amar, igualzinho a quem já perdeu um grande amor e tem medo de se envolver em novo relacionamento”, completa.
Irrevogável
De forma clara, o artigo 48 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece que “a adoção é irrevogável”. Em sua instrução normativa, o juiz de BH detalha o procedimento para devolução de crianças e adolescentes sob guarda judicial e, o mais importante, a responsabilidade civil dos guardiães. Segundo o texto, a criança terá de ouvir a manifestação de que está sendo devolvida diretamente dos pais adotivos, que terão de explicar as razões do abandono.
Além disso, os ex-guardiães não poderão entregar a criança ao juiz e ir embora – terão de entrar em contato com o Setor de Estudos Familiares (SEF) e deverão se explicar em audiência perante o juiz. Caso insistam na devolução, terão de acompanhar a criança até o abrigo e, caso abandonem o filho adotivo nas dependências do juizado, serão responsabilizados civil e criminalmente, inclusive com possibilidade de prisão em flagrante.
Um amor de primeirahora
“Minha filha é uma menina bacana, amiga de todo mundo, não dá um pingo de trabalho e tem a saúde perfeita”, exagera a comerciante de Divinópolis, Patriciana Pereira Figueiredo, de 46 anos. Quem conhece Joyce, de 9 anos, não acredita que ela tenha sido devolvida aos 5 anos pela primeira mãe adotiva. “Ela estava guardada por Deus para mim. Veja como somos parecidas”, diz ela, contando que a outra teria problemas psiquiátricos e chegou a tentar ver a menina depois na escola. Os problemas ficaram no passado. “Joyce já veio para mim com a mochila da escola. Diante do juiz, ela olhou bem para mim e perguntou se eu queria ser a mãe dela. No mesmo dia, já saí com o pedido da guarda dela”, conta a mãe, que sempre chora ao se lembrar desse momento, apesar de já terem se passado quatro anos.
Filhos do coração
Anelise foi adotada pela mãe Edméa, que também adotou Luana, que é prima do coração de Larissa, que foi adotada por Rosely, que é cunhada de Elizethe, que ama Vinícius. Parece poema de Drummond, mas é o retrato de uma família de verdade do Bairro Caiçara, na Região Noroeste de Belo Horizonte. Na foto abaixo, ninguém se parece muito, mas todos sorriem para a câmera.
Nessa família há menos filhos biológicos do que filhos do coração, como são chamadas as escolhas que nascem do amor e não necessariamente da barriga da mãe. A saga começou com a professora Edméa Costa Santos, de 49 anos. Solteira, adotou Anelise aos 6 anos, que já está fazendo 23. Mais tarde, viria Luana, hoje com 8 anos, filha da vizinha. “Ela era bebê e passou a noite aqui porque a família estava em situação difícil. Ela estava com frio, pois os vidros do barracão estavam quebrados. A mãe foi deixando aqui e não voltou para buscar”, conta ela, que entrou com processo de guarda no juizado, cujo termo saiu este ano.
Neste ínterim, a cunhada Rosely Aparecida Figueiredo Costa, de 42 anos, iniciou tratamento para engravidar, sem sucesso. Diante do exemplo de Edméa, partiu para a adoção. Em 2004, entrou na fila da adoção, mas decidiu pegar para criarLarissa, hoje com 6 anos, que acabou tendo o processo questionado pela Justiça. “Foi um ano de sofrimento até obter a guarda. Fiquei 40 dias indo diariamente ao abrigo, tentando ver minha filha que o juiz tomou de mim”, conta. Sem desistir da felicidade, foi à luta e ainda incentivou Elizethe a adotar Vinícius, que nasceu com o intestino fechado e chegou a usar bolsa de colostomia, mas está curado aos 4 anos. “Enfrentamos juntos todas as lágrimas e comemoramos as nossas vitórias”, resume Edméa, dando a receita da felicidade.
Fonte: Site Jornal Estado de Minas