INVENTÁRIO – DIREITO SUCESSÓRIO – UNIÃO ESTÁVEL – IGUALDADE SUBSTANCIAL – COMPANHEIRA – HERDEIROS COLATERAIS – INAPLICABILIDADE DO ART. 1.790 CC/02 – XTENSIBILIDADE – ART. 1.838 CC/02 E ART. 26, § 3º, CF/88 – SUCESSÃO POR INTEIRO – DIREITO – DESPROVIMENTO
– Faz-se mister, ante o entendimento constitucional de equiparação da união estável ao casamento como entidade familiar, que todos os direitos infraconstitucionais assegurados aos cônjuges sejam aos companheiros estendidos. Destarte, havendo expressa previsão legal (art. 1.838, CC/02) de que, na ausência de descendentes e ascendentes, será deferida a sucessão por inteiro ao cônjuge sobrevivente, tal direito também assiste à companheira, sendo despicienda qualquer verificação acerca da data em que os bens foram adquiridos, uma vez que a norma protetiva consubstanciada no art. 1.838 CC/02 não traz essa menção restritiva quando estiver em jogo o interesse da cônjuge/companheira em detrimento dos herdeiros colaterais, cabendo àquela, nesse caso, a
sucessão por inteiro.
Apelação Cível n° 1.0024.06.220350-0/001 – Comarca de Belo Horizonte – Apelante: João Ferreira de Moura e outro – Apelada: Maria Madalena Temoteo – Relator: Des. Geraldo Augusto
A C Ó R D Ã O
Vistos etc., acorda, em Turma, a 1ª Câmara Cível do ribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, sob a residência do Desembargador Eduardo Andrade, incorporando neste o relatório de fls., na onformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, em negar provimento.
Belo Horizonte, 16 de agosto de 2011. – Geraldo Augusto – Relator.
N O T A S T A Q U I G R Á F I C A S
Proferiu sustentação oral, pelo apelante, o Dr. Eugênio Guimarães.
O SR. DES. GERALDO AUGUSTO – Sr. Presidente. Peço vista.
Súmula – PEDIU VISTA O RELATOR, APÓS SUSTENTAÇÃO ORAL.
NO T A S T A Q U I G R Á F I C A S
DES. PRESIDENTE (EDUARDO ANDRADE) – O julgamento deste feito foi adiado na sessão do dia 28.06.11, a pedido do Relator, após sustentação oral.
Com a palavra o Des. Geraldo Augusto. DES. GERALDO AUGUSTO
– Conhece-se do recurso, presentes os requisitos à sua admissibilidade.
Trata-se de apelação interposta contra a homologação da sentença de f. 194/202 que, nos autos da ação inventário/arrolamento, para adjudicar em favor da apelada todos os bens deixados pelo falecido, bem como reconhecer a esta o direito real de habitação no imóvel destinado à residência da família.
Inconformados, pretendendo a reforma da sentença a quo, recorrem os apelantes (f. 210/217), argumentando, em síntese, que todos os bens do de cujus foram por ele adquiridos onerosamente antes da constância da união estável com a apelada, o que, nos termos do art. 1.725 c/c art. 1.658 do CC/02, por si só, já retira qualquer direito dela sobre os bens inventariados. Que o cerne da questão não é a equiparação da união estável ao instituto do casamento, e sim a existência ou não de bens a serem partilhados em favor da apelada. Que antes de se discutir a constitucionalidade ou não do inciso III, art. 1.790, CC/02, deve-se adentrar o mérito acerca da sua aplicabilidade ou não ao presente caso, uma vez que a companheira participará da sucessão do outro apenas em relação aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável. Que, em face da comprovada inexistência de bens adquiridos na constância da união estável, não há que se discutir acerca da inconstitucionalidade do suprarreferido dispositivo legal. Que, caso seja mantida a sentença, requer seja expressamente limitado o direito real de propriedade de habitação concedido à apelada do imóvel destinado à residência da família, para que seja restrito a 1/3 do imóvel, e não a sua integralidade, uma vez que os demais 2/3 são de propriedade dos apelantes, que também ali residem.
Contrarrazões às f. 227/237, em síntese, pela manutenção da decisão hostilizada.
É o relatório.
De início, vale destacar que a questão posta em debate se resume à discussão entre as partes sobre aaplicação ou não do disposto no art. 1.790 do CC/02, em confronto com a disposição dos arts. 1.725 c/c 1.658, e, ainda, com o estabelecido no art. 226, § 3º, da CR/88 e os arts. 1829 – I, parte final, e 1.838, também do CC/02.
Como consta dos autos, estabeleceu-se oficialmente pela decisão judicial de f. 65/70 que reconheceu a união estável entre a aqui apelada e o falecido Jorge Ferreira de Moura, que o período de convivência assim reconhecido estaria compreendido entre 1º de novembro de 1980 a 21 de agosto de 2006. Entretanto, a própria sentença informa e anota que foi por ela alegado ser tal período de aproximadamente de 36 anos (à época da sentença em maio/2009) e que os requeridos, irmãos do falecido e aqui apelantes, informavam ser aquele período de apenas 27 anos. A mesma sentença baseou a fixação da convivência apenas pelo período em que conviveram sob o mesmo teto, deixando de anotar o período em que mantiveram relacionamento "como namorados" antes disso (f. 66).
Aqui, não se discute mais e nem se pretende contrariar a sentença em sua decisão oficial/judicial, entretanto existem elementos bastantes para concluir por convivência muito maior no tempo, talvez aquela mesma dita pela autora (desde 1971), embora não convivendo sob o mesmo teto.
Ocorre, contudo, e não se discute, que a convivência entre o casal ultrapassou o período sob o mesmo teto, antecipando-se a este, com duração, portanto, muito maior do que os 26 anos apenas sob o mesmo teto, reconhecida oficialmente até a sua morte. Também não se contraria a dedicação exclusiva, como companheira/mulher da apelada, sendo ambos solteiros, ela dele dependente no INSS e sua curadora desde a sua interdição.
Os bens inventariados, também conforme os autos, foram adquiridos em julho de 1977 (lotes de Lagoa Santa) e em janeiro de 1963, a parte do imóvel localizado em Belo Horizonte.
Embora a dúvida favorável à apelada sobre o período da convivência em união estável não sendo sob o mesmo teto (desde 1971), a sentença (específica e aqui não objeto de apelação, porque proferida na ação de reconhecimento da união estável), entretanto só a reconheceu oficialmente a partir de 1980.
Não havendo documento formalizado pelas próprias partes sobre o tempo da união estável e o regime de bens nessa convivência, reclamam os apelantes a aplicação do art. 1.725, CC/02, que dispõe aplicar-se à união estável o regime da comunhão parcial de bens.
Dizem que, por via de consequência, nenhum direito teria a apelada como companheira sobrevivente, visto que os bens não entrariam na comunhão diante de tal dispositivo, porque sua aquisição se deu antes do inicio do período reconhecido da união estável. Entretanto, esse artigo e essa disposição legal estão na parte do direito de família e da comunhão/meação de bens entre o casal.
Aqui, necessariamente, não se discute a meação, a qual dispensa a sucessão/morte para seu reconhecimento. Discute-se aqui o direito sucessório, aquele decorrente da morte. Ainda que a apelada não tivesse direito à referida meação, por força do art. 1.725 do CC/02, poderia e pode discutir o seu direito à sucessão, como herdeira do de cujus, concorrendo ou não com os apelantes, seus herdeiros colaterais.
O art. 1.829-I, parte final, se aplica ao cônjuge sobrevivente casado sob o regime de comunhão parcial, tendo-o como herdeiro, ainda que concorrendo com descendentes/ ascendentes. Já o art. 1.838 é expresso, dispondo que, não havendo ascendentes ou descendentes, nesse caso, toda a herança (independentemente de discussão
sobre meação) é direito do cônjuge sobrevivente.
Conforme bem se expressou o Juiz a quo, argumento que aqui se robora:
"a união estável foi alçada à condição de entidade familiar pela CF de 1988, que, em seu art. 226, § 3º, dispõe que, ‘para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento’".
Por via de consequência, e por óbvio, torna-se inconcebível qualquer tratamento desigual entre a companheira que vivia em união estável e o cônjuge. Isso posto, torna-se incabível a aplicação do caput do art. 1.790, assim como do seu inciso III, por força da expressa dicção do art. 1.838, CC/02, que assim dispõe: "Em falta de descendentes e ascendentes, será deferida a sucessão por inteiro ao cônjuge sobrevivente".
Destarte, não pode prevalecer a alegação aduzida de que, mesmo neste caso concreto, deve-se vigorar o caput do art. 1.790 c/c art. 1.765 c/c art. 1.658, todos do CC/02. Isso porque, conforme o claro texto do artigo supratranscrito, inexistindo descendente e ascendente, independentemente do regime de bens, será deferida a sucessão por inteiro ao cônjuge sobrevivente, o que se conjuga, também, com o art. 1.829, III, CC/02. Por via de consequência, com fulcro na igualdade constitucional hoje contemplada, o mesmo direito assiste à companheira, sendo despicienda qualquer verificação acerca da data em que os bens foram adquiridos, uma vez que a norma protetiva consubstanciada no art. 1.838 do CC/02 não traz essa menção restritiva quando estiver em jogo o interesse do cônjuge/companheira em detrimento dos herdeiros colaterais, cabendo àquela, neste caso, a sucessão por inteiro.
A questão é tão grave, englobando o fato concreto destes autos e todos aqueles oriundos de situações idênticas, que originou, no STJ, a suscitação do incidente de inconstitucionalidade dos incisos III e IV do art. 1.790 do Código Civil pelo eminente Ministro Luís Felipe Salomão, nos autos do AI no Recurso Especial nº 1.135.354 – PB (2009/0160051- 5), entre outras razões, nos seguintes termos, diante do evidente dissídio jurisprudencial, e o que vem sendo acatado e originado de manifestações contundentes da melhor doutrina e da mais atual jurisprudência:
"[…] A tese de inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil de 2002 tem encontrado ressonância também na jurisprudência dos tribunais estaduais (TJRS, Embargos Infringentes 70027265545; TJSP, Agravo de Instrumento 567.929.4/0-00; TJRS, Agravo de Instrumento 70020389284, entre outros). Na IV Jornada de Direito Civil, realizada pelo Conselho da Justiça Federal no âmbito desta Corte, também foi aprovado enunciado nesse sentido:
‘É inconstitucional o art. 1.790 do Código Civil, devendo incindir, na sucessão pelo companheiro supérstite, as mesmas regras aplicadas ao cônjuge sobrevivente’.
3. De fato, àqueles que se debruçam sobre o direito de família e sucessões, causa no mínimo estranheza a opção legislativa efetivada pelo art. 1.790 para regular a sucessão do companheiro sobrevivo. O atacado dispositivo possui a seguinte redação:
‘Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança’.
3.1. De início, já se percebe a inadequação topológica do artigo, que nada diz respeito a ‘disposições gerais’ em matéria sucessória. Quem ‘participa da sucessão’, como dito pelo dispositivo, não é outro senão o ‘herdeiro’, razão por que a localização adequada do preceito seria no capítulo relativo à ‘ordem da vocação hereditária’.
3.2. Também em substância, nesse ponto, não andou bem o legislador de 2002.
O caput do art. 1.790 faz alusão apenas a bens ‘adquiridos onerosamente na vigência da união estável’. É bem de ver, destarte, que o companheiro, mesmo na eventualidade de ter ‘direito à totalidade da herança’ (inciso IV), somente receberá aqueles bens a que se refere o caput, de modo que os bens particulares do de cujus, aqueles adquiridos por doação, herança ou antes da união, ‘não havendo parentes sucessíveis’, terá a sorte de herança vacante. Essa conclusão somente seria evitada se houvesse interpretação do inciso IV em total independência com a cabeça do artigo, solução que parece a mais justa, mas que carece de respaldo técnico adequado
[…].
3.4. Indaga-se também acerca da legitimidade da diferenciação do quinhão que tocaria ao companheiro, a depender se concorrente com filhos comuns do casal ou com filhos unicamente do de cujus (art. 1.790, incisos I e II). Concorrendo com filhos comuns, o companheiro terá direito à quota equivalente a que fizer jus o filho (inciso I); ‘se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles’ (inciso II). Não há solução dada pelo legislador, todavia, à hipótese de existirem, a um só tempo, filhos comuns do casal e exclusivos do autor da herança.
A persistirem as frações diferenciadas dos incisos I e II, a pretexto de conferir tratamento particular ao companheiro, acabaria o legislador por tratar de forma discriminatória os próprios filhos do de cujus, o que, em última análise, poderia ressuscitar o desgastado e odioso estigma dos ‘filhos adulterinos’, algo explicitamente rechaçado pela ordem constitucional nascida em 1988 (‘Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação’ – art. 227, § 6º, da CF).
Nesse sentido, foi aprovado o seguinte enunciado na IV Jornada de Direito Civil:
‘Enunciado: Na hipótese de o companheiro sobrevivente concorrer com filhos comuns (inc. I) e descendentes somente do de cujus (inc. II), deve-se aplicar o disposto no inc. I, dividindo-se igualmente a herança.
Justificativa: Diante do princípio da igualdade entre os filhos, não se pode conceber sejam estabelecidos quinhões diferentes numa mesma partilha em que concorrem tanto os filhos comuns do companheiro sobrevivente como os descendentes só do autor da herança. Entendimento contrário faria com que os filhos exclusivos do autor da herança tivessem quinhão maior que os filhos também do companheiro sobrevivente’.
4. Finalmente, analisa-se o disposto no inciso III do art. 1.790 do Código Civil: ‘se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança’".
Depois de prever a concorrência do companheiro com os descendentes do falecido, o artigo determina a concorrência com ‘outros parentes sucessíveis’, o que abarca os ascendentes ad infinitum (art. 1.591) e os colaterais até o quarto grau (arts. 1.592 e 1.839). Como é de conhecimento cursivo, os colaterais de quarto grau do falecido são os primos e os chamados "tio-avô" e "sobrinho-neto".
Ou seja, diferentemente do que acontece com a sucessão do cônjuge, que somente concorre com descendentes e ascendentes (com estes somente na falta daqueles), o companheiro sobrevivo concorre também com os colaterais do falecido, pela ordem, irmãos (segundo grau); sobrinhos e tios (terceiro grau); e primos, "sobrinho-neto" e "tio-avô" (quarto grau).
Por exemplo, no caso dos autos, a autora conviveu em união estável com o falecido durante 26 (vinte e seis) anos, com sentença declaratória passada em julgado, e ainda assim seria, em tese, obrigada a concorrer com irmãos do autor da herança (cunhados da autora), ou então com tios, primos ou "tio-avô" do de cujus.
Tal solução também é pela mencionada doutrina acoimada com a pecha de inconstitucionalidade, basicamente, por três linhas de raciocínio:
a) a Constituição Federal não diferenciou as famílias havidas a partir do casamento daquelas cuja matriz é a união estável; a possibilidade de conversão da união estável em casamento não permite ao legislador conferir menos direitos à primeira; ambas as formas de família possuem a mesma dignidade constitucional;
b) ainda que pudesse o legislador infraconstitucional tratar de forma diferenciada a sucessão do companheiro comparativamente com a sucessão do cônjuge, o art. 1.790 do CC ofenderia a dignidade da pessoa humana, ao permitir a concorrência de parentes distantes do de cujus com o companheiro sobrevivo, junto de quem construiu o patrimônio a ser partilhado; violaria o direito fundamental à herança e, além do mais, a diferenciação por que optou o legislador ofenderia os princípios constitucionais da razoabilidade e da proporcionalidade;
c) tendo em vista que a Lei nº 8.971/94 previu a concorrência do companheiro somente com descendentes e ascendentes do de cujus ("na falta de descendentes e de ascendentes, o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito à totalidade da herança, art. 2º, inciso III, da lei"), silenciando quanto ao tema a Lei nº 9.278/96, as disposições do art. 1.790 violariam o princípio da proibição de retrocesso em matéria de direitos fundamentais, princípio amplamente sufragado pela doutrina constitucionalista, doméstica e estrangeira.
No que concerne ao pedido de reembolso, conforme bem expôs o Juiz a quo, devem os interessados, ora apelantes, utilizarem-se das vias próprias.
Por fim, é ululante que o direito real de habitação no imóvel destinado à residência da família restringe-se ao 1/3 mencionado expressamente na inicial (f. 26), não incidindo sobre os demais 2/3 sequer mencionados.
Não fosse por isso, o parágrafo único do art. 7º da Lei 9.278/76, que confere o direito real de habitação ao companheiro sobrevivente, por sua vez, não é preceito incompatível com qualquer norma do Código Civil atual e sobrevive, inclusive porque está de acordo com a determinação expressa pela Constituição Federal, que reconhece e protege a união estável como entidade familiar paralela à que é fundada no matrimônio.
Com tais razões, nega-se provimento à apelação, mantendo-se a sentença vergastada por seus e por estes fundamentos.
Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores Vanessa Verdolim Hudson
Andrade e Armando Freire.
Súmula – NEGARAM PROVIMENTO.
Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico – MG