Jurisprudência mineira – Apelação cível – Separação judicial – Emenda constitucional nº 66/2010 – Abolição do instituto

JURISPRUDÊNCIA MINEIRA

JURISPRUDÊNCIA CÍVEL

APELAÇÃO CÍVEL – SEPARAÇÃO JUDICIAL – EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 66/2010 – ABOLIÇÃO DO INSTITUTO – INOCORRÊNCIA – DESCONSTITUCIONALIZAÇÃO DO TEMA – LIBERDADE DE REGULAMENTAÇÃO PELO LEGISLADOR ORDINÁRIO – DIVÓRCIO – DECRETO DIRETO – ART. 1.580 DO CC – LAPSO TEMPORAL – INOBSERVÂNCIA – SENTENÇA REFORMADA

– A Emenda Constitucional nº 66/2010 não aboliu a separação judicial do ordenamento jurídico pátrio, limitando-se à desconstitucionalização do tema, conferindo ao legislador ordinário liberdade para sua regulamentação, em consonância com os reclamos da sociedade pós-moderna.

– Deve ser reformada a sentença que converte a ação de separação judicial em divórcio, sem observância do lapso temporal exigido pelo art. 1.580 do Código Civil.

Apelação Cível n° 1.0028.11.000116-2/001 – Comarca de Andrelândia – Apelante: Ministério Público do Estado de Minas Gerais – Apelados: L.F.L. e outro – Relator: Des. Afrânio Vilela

A C Ó R D Ã O

Vistos etc., acorda, em Turma, a 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, sob a Presidência do Desembargador Roney Oliveira, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, em dar provimento ao recurso.

Belo Horizonte, 13 de dezembro de 2011. – Afrânio Vilela – Relator.

N O T A S T A Q U I G R Á F I C A S

DES. AFRÂNIO VILELA – Em exame, apelação interposta pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais contra a r. sentença de f. 18/19 que, nos autos da ação de divórcio direto litigioso – convertido em consensual -, homologou o acordo firmado em audiência de conciliação e decretou o divórcio das partes, com amparo na Emenda Constitucional nº 66/2010.

O Ministério Público do Estado de Minas Gerais, em suas razões de f. 21/25, sustenta, em síntese, que a Emenda Constitucional nº 66, que alterou a redação do art. 226, § 6º, da CR/88, não extirpou a separação judicial do ordenamento jurídico, cingindo-se a permitir que a legislação infraconstitucional disponha sobre o tema. Assevera que a CF "apenas ‘desengessou’ os requisitos do divórcio, em nível constitucional (e não no nível legal), mas não cassou arbitrariamente a faculdade e o direito de os casais se separarem judicialmente, caso não estejam certos do divórcio". Que, constando da exordial que os apelados não estão separados de fato há mais de 2 anos, incabível a decretação direta do divórcio.

Preenchidos os pressupostos de admissibilidade, conheço do recurso.

Primeiramente, cumpre elucidar que a Constituição Federal se classifica, quanto à extensão, como analítica, o que significa dizer que, além de direitos e garantias fundamentais e a organização políticoadministrativa do Estado, tutela temas prescindíveis de estar em seu bojo, conferindo-lhes status de norma formalmente constitucional.

Esse tipo de constituição, intitulada analítica ou prolixa, sofre considerável quantidade de emendas, sendo certo que a CRFB/88 se encontra atualmente na sua Emenda Constitucional nº 67, enquanto a Constituição norte-americana não foi alterada por mais de 20 emendas ao longo de sua existência secular.

No Brasil, em decorrência de o Código Civil de 1916 autorizar o desquite amigável ou judicial, figura pejorativa ante o contexto social de outrora, houve a constitucionalização do tema alusivo ao casamento e das formas de sua dissolução, nos seguintes termos:

"Art 144. A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. Parágrafo único. A lei civil determinará os casos de desquite e de anulação de casamento, havendo sempre recurso ex officio, com efeito suspensivo".

O texto supra foi mantido quase que inalterado nas constituições posteriores, até promulgação da Emenda nº 9 à CF/67 (em. 01/69), que autorizava a dissolução conjugal, desde que observados os requisitos legais:

"Art. 1º O § 1º do art. 175 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:

‘Art. 175 – […]

§ 1º O casamento somente poderá ser dissolvido, nos casos expressos em lei, desde que haja prévia separação judicial por mais de três anos".

Art. 2º A separação, de que trata o § 1º do artigo 175 da Constituição, poderá ser de fato, devidamente comprovada em Juízo, e pelo prazo de cinco anos, se for anterior à data desta emenda".

Assim, desde 1977 o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, o que foi sedimentado na esfera infraconstitucional pela Lei 6.515, de 26 de dezembro 1977, conhecida como Lei do Divórcio.

A Emenda nº 09/77 suprimiu da carta constitucional de 1967, emendada em 1969, o termo "indissolubilidade do casamento", que constava do § 1º do seu art. 175, que passou a dispor:

"§ 1º O casamento somente poderá ser dissolvido, nos casos expressos em lei, desde que haja prévia separação judicial por mais de três anos".

Valendo-se do permissivo constitucional, o legislador ordinário editou a lei do divórcio. A mencionada lei, não a emenda constitucional, revogou, expressamente, o art. 315 do Código de 1916, que viabilizava o término da sociedade conjugal em caso de morte de um dos cônjuges; nulidade ou anulação do casamento, ou pelo desquite, amigável ou judicial.

A Lei nº 6.515/77 foi recepcionada pela CF/88, que, na redação originária do § 6º do seu art. 226, determinava a observância do lapso temporal de 1 ano, contado da separação judicial, ou 2 anos da efetiva separação de fato. O Código Civil de 2002, em consonância com a Lei Maior, em seu art. 1.580, sedimentou que: "Decorrido um ano do trânsito em julgado da sentença que houver decretado a separação judicial, ou da decisão concessiva da medida cautelar de separação de corpos, qualquer das partes poderá requerer sua conversão em divórcio.

§ 1º A conversão em divórcio da separação judicial dos cônjuges será decretada por sentença, da qual não constará referência à causa que a determinou. § 2º O divórcio poderá ser requerido, por um ou por ambos os cônjuges, no caso de comprovada separação de fato por mais de dois anos".

Com a entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 66, disseminou-se o entendimento quanto à supressão do instituto da separação judicial, haja vista o texto constitucional vigente não dispor sobre requisitos temporais para o divórcio, in verbis:

"Art. 226 […]

§ 6º – O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio".

Registro que, desde o primeiro contato com o sucinto texto da emenda, não me convenci quanto à noticiada revogação dos dispositivos da lei civil concernentes à separação judicial, instituto este que nunca se destinou à dissolução do casamento, adstrito a pôr fim, exclusivamente, aos deveres inerentes aos cônjuges, estabelecidos no art. 1.566 do Código Civil.

Todavia, após ter acompanhado, na condição de revisor, dois votos firmados pelo eminente Desembargador Caetano Levi Lopes, em sentido diverso, instaurada a celeuma doutrinária, dediqueime ao estudo do tema, o que culminou na sedimentação do entendimento inicial, notadamente a partir da leitura da entrevista prestada pelo Dr. João Baptista Vilella, Professor emérito na Faculdade de Direito da UFMG, ao Jornal Carta Forense.

Instado a avaliar o teor e as repercussões da EC nº 66, o eminente jurista chamou a atenção para o fato de não ser próprio dos textos constitucionais revogarem legislação ordinária, o que é afeto ao nível da legislação infraconstitucional, consignando, ainda, com muita propriedade que:

"A convergência mínima entre as leis ordinárias e a Constituição não é uma invenção da pirotecnia ou do capricho de juristas e tribunais. É, sim, um requisito de segurança da vida social. É a certeza de que o cidadão e a iniciativa privada podem continuar buscando nas leis ordinárias a resposta às suas perguntas prosaicas, em vez de querer extraí-las dos textos curtos, compactos e densos da Constituição. A Constituição, em regra, não fala para o povo. Fala para os poderes políticos da Nação, seus destinatários por excelência. Por isso sua linguagem é antes principiológica que pragmática.

[…]

A emenda Constitucional não declarou seu repúdio aos requisitos que constavam do § 6º do art. 226. Não os proscreveu do direito brasileiro. Onde está escrito que ela o tenha feito. Apenas os dispensou (na medida em que não os repetiu), o que é algo bem diferente. Uma vez que apenas os dispensou, o legislador ordinário fica livre para conservá-los ou não. E, se os conservar hoje, poderá mandá-los para o lixo amanhã. Voltar a adotá-los em futuro próximo ou remoto […]" (Jornal Carta Forense – out. de 2010 – p. A16/A17).

Assim, balizado nos valiosos ensinamentos prestados pelo ilustre catedrático, ouso, respeitosamente, distanciar do posicionamento constante da r. sentença, até então predominante em nossos tribunais, inclusive neste sodalício, quanto à efetividade direta do novo texto constitucional e consequente efeito revogatório da legislação infraconstitucional, conforme discorri.

Como dito alhures, no Brasil, o instituto de desquite, previsto no Código Civil de 1916, foi alvo de preconceito religioso e social, fato este que não poderia passar ao largo do direito, que, por se tratar de fenômeno social, reflete a evolução da sociedade em que se insere.

Ante o repúdio à figura inserida no Código Civil revogado, largamente criticada pela sociedade altamente conservadora do início do século XX e também pela Igreja, que ao longo da história é reconhecidamente grande formadora de opiniões, o legislador constituinte de 1934, visando disseminar o temor à evolução do instituto para o divórcio, elevou a matéria ao status constitucional, em que permaneceu até 13.07.2010, quando da publicação da EC 66/2010.

No período em questão, ocorreram inúmeras mudanças sociais, com profundas alterações no comportamento humano e, por conseguinte, nas relações familiares.

Hodiernamente, ante a prevalência das garantias constitucionais, notadamente a liberdade e paridade, não mais subsiste a família patriarcal, sendo ampla a inclusão da mulher no mercado de trabalho em suas diversas áreas, sua participação no orçamento familiar, sendo não raras as vezes que se apresenta como chefe da unidade. Também corriqueira a existência de famílias monoparentais, guarda compartilhada, uniões estáveis, homoafetivas, dentre outros.

E, justamente em razão da mudança de cenário, o legislador constituinte constatou a desnecessidade de o texto constitucional continuar dispondo sobre os requisitos para o divórcio e relegou a matéria, que já não lhe era afeta, às disposições infraconstitucionais.

Não obstante o respeito àqueles que professam entendimento diverso, não me parece, como afirmado pela maioria, ter havido revogação tácita dos artigos nos 1.571, III, 1.572 a 1.578 e 1.580 do CC, o que somente restaria configurado se a emenda passasse a regular a matéria tratada no diploma civil ou, ainda, se implicasse eventual incompatibilidade, consoante § 1º do art. 2º da L.I.C.C.:

"§ 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior".

Ao editar a emenda constitucional em debate, intitulada pela mídia como "emenda divorcista", o legislador nada mencionou sobre dispensa, ou não, de qualquer outro requisito para o divórcio, os quais desde 1977 eram tratados em consonância com o texto civil.

Inequívoca a flexibilização conferida para o trato da matéria, visto que a retirada do corpo constitucional confere ao legislador ordinário ampla liberdade para dispor sobre a manutenção ou não dos requisitos elencados na lei civil para decreto do divórcio. No entanto, em termos de conteúdo, extensão ou alcance das leis, nada foi alterado, visto a atual redação do § 6º do art. 226 da CF/88 limitar-se a transcrever o art. 1.571, III, do CC, nada inovando no sistema infraconstitucional, cujos preceitos prevalecem no tocante aos requisitos temporais para dissolução do casamento civil.

Se a intenção do legislador era retirar a tutela do Estado sobre a decisão tomada pelos cônjuges, como anunciado na proposta de emenda, deveria fazer constar expressamente do texto a desnecessidade do atendimento dos requisitos previstos na lei civil, conferindo à emenda a aplicação imediata defendida por muitos, visto que, de plano, o diploma civil seria inaplicável por contrariar a norma constitucional.

Ausente qualquer disposição nesse sentido, forçoso concluir que a Emenda Constitucional nº 66/2010 não aboliu a separação judicial do ordenamento jurídico pátrio, limitando-se à desconstitucionalização do tema, conferindo ao legislador ordinário liberdade para sua regulamentação, em consonância com os reclamos da sociedade pós-moderna.

In casu, alinhando-me aos argumentos constantes das razões de recurso, tenho que a sentença recorrida não pode prosperar no que concerne ao decreto de divórcio direto dos apelados, haja vista que, quando da propositura da demanda, não se encontravam separados de fato pelo lapso temporal exigido por lei.

Com efeito, deve ser reformada a sentença que converte a ação de separação judicial em divórcio, sem observância do lapso temporal exigido pelo art. 1.580 do Código Civil.

Isso posto, dou provimento ao recurso para reformar a sentença na parte que decretou o divórcio, dela devendo constar a procedência do pedido de separação judicial.

Sem custas, ex lege.

Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores Roney Oliveira e Brandão Teixeira.

Súmula – DERAM PROVIMENTO AO RECURSO.

 

Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico – MG