Três pais para um mesmo filho

Terapia de doença genética une DNA de duas mulheres e um homem. 

Um bebê e três pais biológicos. A experiência controversa já é possível na vida real por meio de uma nova técnica de Fertilização In Vitro (FIV) em que é utilizado o DNA de duas mulheres e um homem, garantiram cientistas da Universidade de Ciência e Saúde de Oregon, nos Estados Unidos, num artigo publicado ontem na revista científica “Nature”. Segundo os pesquisadores, o principal objetivo do método é prevenir que doenças hereditárias da mãe sejam transmitidas para os seus filhos, mas a nova terapia também abre caminho para a discussão ética sobre a paternidade do embrião.

O experimento já foi bem sucedido em primatas: em 2009 nasceu a primeira macaca, de nome Chrysta, cujo embrião foi fecundado por três doadores adultos. Na época o trabalho também foi publicado na revista “Nature”. Na pesquisa atual, constatou-se que o procedimento é igualmente viável em humanos, mas seu progresso ainda esbarra da legislação. Nos Estados Unidos, onde foi feito o estudo, a aplicação deste tipo de terapia ainda precisa ser aprovada. Por isso mesmo, os pesquisadores precisaram utilizar investimentos privados, e não federais, no trabalho. No Brasil, são igualmente proibidas as práticas de engenharia genética.

— Qualquer seleção que se faça além da natureza é uma interferência no desenvolvimento normal. Esta pesquisa representa uma grande evolução médica, mas até que ponto esta alteração seria aceita pela sociedade, só o tempo e as discussões vão dizer — comentou o ginecologista Joji Ueno, doutor pela USP e coordenador da pós-graduação do Instituto de Ensino e Pesquisa em Medicina Reprodutiva de São Paulo.

Técnica elimina mitocôndrias defeituosas

A nova técnica consiste em transferir o núcleo celular de um óvulo a outro. A célula contém um núcleo onde estão os cromossomos, que carregam 99% do DNA do indivíduo. Já a mitocôndria é a usina de energia celular, mas também armazena parte restante de DNA. Todos estes genes são passados da mãe para o bebê e, quando há mutações no DNA mitocondrial, a criança pode nascer com uma série de doenças, como diabetes, cegueira, demência, desordens oculares ou gastrointestinais, assim como doenças cardiovasculares e neurológicas. As enfermidades mitocondriais não têm cura e são de herança materna, salvo raríssimas exceções. Estima-se que elas apareçam em um entre cinco mil e dez mil nascidos.

— Como a doença mitocondrial é passada de geração a geração, sempre há risco. Esta pesquisa mostra que a terapia genética pode ser uma alternativa viável para prevenir doenças devastadoras que são passadas da mãe para o filho — defendeu Shoukhrat Mitalipov, responsável pelo estudo e cientista da Universidade de de Ciência e Saúde de Oregon.

Mitalipov explicou que com o novo método, o núcleo celular de um óvulo com mitocôndrias defeituosas é retirado e reinserido num outro óvulo, previamente sem núcleo e cujas mitocôndrias são saudáveis. Desta forma, a célula terá 99% das características de uma mulher (núcleo) e 1% da de outra (citoplasma e mitocôndrias). Depois desta transferência, o óvulo é fecundado por um espermatozoide e recolocado no útero da mulher para a geração de um embrião saudável.

Para conduzir a pesquisa, Mitalipov e seus colegas obtiveram 106 óvulos humanos de voluntários saudáveis recrutados pela universidade. Os pesquisadores, desta forma, usaram o método já desenvolvido em primatas de transferir o núcleo de uma célula a outra. Os óvulos foram fecundados com êxito e se tornaram blastócitos, um estado prévio ao embrião. Nas células embrionárias, foi analisado se elas carregavam algum rastro de DNA mitocondrial da mãe, o que foi descartado. O atual estudo também avançou ao constatar que o procedimento poderia ser feito com o uso de óvulos congelados. Até então, só tinham sido utilizados óvulos frescos, o que dificultaria que o método fosse aplicado em clínicas de fertilização.

Embora animados, os pesquisadores da Universidade de Oregon afirmam que ainda há um longo caminho pela frente até que a técnica possa ser usada. Para a realização da pesquisa, eles informam ter consultado especialistas em ética e comitês da própria universidade. O ginecologista Joji Ueno lembra uma discussão semelhante já existente no dia a dia:

— Hoje já existe o exame para diagnosticar se o embrião tem a síndrome de Down, mas ele não pode ser descartado. No caso da fertilização in vitro, ele até pode ser doado para pesquisa ou para outro casal. A discussão sobre quando e em que casos aplicar o exame já é delicada. Com esta nova tecnologia, ao contrário, a alteração seria reparada a priori, sem a necessidade de desprezar o embrião.

 

Fonte: O Globo