Artigo – A nova família – Por Rodrigo da Cunha Pereira

Já não se fazem mais famílias como antigamente.

É o que revelam os dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no final de outubro de 2012. Melhor assim, pois significa que a família está perdendo cada vez mais sua essência patrimonialista e patriarcalista para ser regida pela afetividade e liberdade. Não estámaistão hierarquizada, pois agora interessa é o ser sujeito e não mais o objeto, ou seja, a forma ou formalidade para se constituí-la. Está mais democrática.

Mais verdadeira.

Tais mudanças situam-se em um contexto histórico em que as causas remotas vinculam-se ao declínio do patriarcalismo, revolução feminista, hiperconsumo, que revolucionaram os costumes e a moral sexual. As causas mais imediatas atrelam-seàmudança do pensamento jurídico, que por sua vez solidificou a idéia de dignidade humana, transformada em principio pela Constituição de 1988. Uma década antes já tinha sido quebrado o princípio da indissolubilidade do casamento, instalando-se em 1977 o divórcio no Brasil.De lá para cá, tudo mais foi consolidação do princípio da dignidade humana, que se desdobrou em vários outros princípios jurídicos. No final de outubro de 1997,umgrupo de juristas fundou o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), hojeamaior entidade de direito de família do mundo, e foi a grande responsável por consolidar um novo pensamento jurídico para as famílias vinculadas às noções dos direitos humanos e cidadania. E assim foi quebrando e instalando novos paradigmas e novas concepções: parentalidade socioafetiva, famílias homoafetivas, guarda compartilhada, alienação parental, barriga de aluguel, mediação etc.

Os dados do IBGE refletem e traduzem os novos princípios que regem o atual direito de família: afetividade, responsabilidade, solidariedade, melhor interesse da criança/adolescente. Todos eles, repita-se, são desdobramentos do macro princípio da dignidade humana que deve pairar sobre toda relaçãojurídica. Os dados do IBGE revelam a vida como ela é, como dizia Nelson Rodrigues. E ela é assim: cabem todas as formas e formatações de famílias. Das mais tradicionais às mais diferentes. Constatou-se que as famílias recompostas, recasamentos, uniões estáveis, famílias monoparentais e chefiadas por mulheres dobraram nos últimos 10 anos e pela primeira vez o IBGE pesquisou os casais de mesmo sexo.

O divórcio teve um aumento significativo, especialmente a partir de sua simplificação com a Emenda Constitucional nº 66, de 13/7/2010 (EC/66). Essa mudança constitucional foi um grande avanço em direção à consolidação do Estado laico, acabou com prazos para se requerê-lo, extinguiu o inútil e anacrônico instituto da separação judicial, que funcionava como uma espécie de limbo ou purgatório antes do divórcio. E assim a EC/66 acabou com a discussão de culpa e diminuiu significativamente as brigas judiciais em que se procurava um culpado pelo fim do casamento. Não há culpados, mas sim responsáveis ou irresponsáveis pelo fim de um relacionamento.

Revelar novos dados sobre asfamílias brasileiras, além de ajudar a desmistificar e quebrar preconceitos, mostra uma realidade que alguns não querem ver ou resistem em aceitar: há novas estruturas parentais e conjugais em curso. Elas são regidas pela afetividade, mas fora das estruturas tradicionais e ainda não foram apreendidas pelo IBGE, embora já tenhamchegado às barras dos tribunais. Por exemplo, há filhos que já têm em seu registro de nascimento duas mães ou dois pais. Há até aqueles que têm duas mães e também dois pais, seja em razão das adoções homoafetivas ou simplesmente porque a madrasta ou padrasto também se tornaram pais. É a dupla paternidade/maternidade, já acolhida pelos tribunais, sustentados pela teoria e prática da socioafetividade. Provavelmente, daqui a 10 anos, quando o IBGE publicar nova pesquisa, ele terá que contar os filhos com dois pais, duas mães, duas mães e um pai e vice-versa. Fim dos tempos? Não. Início de uma nova era em que a liberdade e a ética do sujeito começam a falar mais alto que os padrões sociais pre estabelecidos.

RODRIGO DA CUNHA PEREIRA: Advogado, doutor e mestre em direito civil, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM)

 

Fonte: Jornal Estado de Minas –  Caderno Opinião