Recentemente o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul reformou uma sentença para declarar a nulidade da fiança prestada sem outorga uxória, aplicando ao caso o entendimento remansoso dos tribunais do país sintetizados na Súmula 332 do STJ. A decisão está disponível na internet, no site do TJ-RS.
Andou bem o acórdão. Mas instiga a inteligência a aprofundar a investigação sobre a questão, à medida que alguns pontos ainda existem merecedores de melhor atenção por parte do intérprete e do aplicador da norma jurídica.
O artigo 1.650 do Código Civil brasileiro, dispositivo no qual se fundou o julgado, reza que “a decretação de invalidade dos atos praticados sem outorga, sem consentimento, ou sem suprimento do juiz, só poderá ser demandada pelo cônjuge a quem cabia concedê-la, ou por seus herdeiros”. Não obstante sua literalidade, deve ser lido cum grano salis, para que a falta da outorga uxória não seja causa de dano a terceiro que, de boa-fé, haja adquirido bens, principalmente bem imóvel, pertencente ao casal, isto é, à sociedade conjugal.
De fato, o artigo 1.650 do CC, que repete com nova redação a provisão que havia no artigo 239 do seu antecessor, mas sem inovação semântica, estabelece a legitimidade para a decretação da invalidade do ato praticado sem outorga, consentimento ou suprimento judicial, ao cônjuge ou seus herdeiros.
Uma leitura açodada desse dispositivo, divorciada dos fins previstos pela lei, ou seja, apartada do norte estatuído no artigo 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), e dos princípios enfeixados pela própria novel codificação, acarretaria que o companheiro, assim entendido aquele que mantém relação de união estável com outra pessoa, não seria parte legítima para pleitear a invalidade do ato praticado sem a sua aquiescência ou sem suprimento judicial. Vale notar, a união estável regula-se pelo regime da comunhão parcial de bens (artigo 1.725) sempre que não estiver regulada por contrato escrito firmado entre as partes, de modo que a ela também se aplicam as regras sobre o patrimônio da sociedade conjugal estabelecida sob o regime da comunhão parcial de bens.
Já por aí deflui a percepção de que a leitura do artigo 1.650 em sua estrita literalidade não alcança os fins para que foi concebido, pois o legislador disse menos do que pretendia. Em caso quejandos, sempre que lex dixit minus quam voluit, cumpre ao aplicador da norma colmatar a lacuna de conteúdo faltante. Mas ao desempenhar esse mister não pode distanciar-se dos fins que a norma inspira, sob pena de invadir a competência do legislador. Ao contrário, deve desincumbir-se dessa tarefa para dar à norma máxima harmonia com o sistema ao qual pertence.
Nessa senda, pode se sustentar, com amparo no plexo principiológico adotado pelo atual CC, notadamente o princípio da eticidade, também o termo herdeiros não faz justiça ao espírito da norma, devendo ser entendido como sucessores a qualquer título para aí incluir os sucessores da sociedade conjugal — do casal — por ato inter vivos. Igualmente, a consequência jurídica prevista na regra legal, a invalidade do ato praticado sem outorga, consentimento ou suprimento judicial, por se situar num plano anterior ao da eficácia, não inibe a declaração de ineficácia do ato pleiteada por outros que não compõem o rol alargado dos legitimados, desde que isso seja necessário para garantir a soberania do princípio da boa-fé que abarca a ética contratual (= boa-fé objetiva).
Deste modo, aquele que de boa-fé adquire bem, principalmente bem imóvel, do casal, rectius, da sociedade conjugal, é sucessor dela por título oneroso decorrente de ato inter vivos e deve ser considerado legitimado para pleitear a decretação da invalidade, ou, quando menos, da ineficácia do ato praticado sem outorga, consentimento ou suprimento judicial, que ponha sob ameaça de excussão o bem por ele adquirido. A não ser assim, a alienação feita pela sociedade conjugal para terceiro de boa-fé poderá ser declarada em fraude a credores ou à execução na proporção da meação do cônjuge que prestou fiança sem a anuência do outro, premiando-se com isso o credor negligente que, mesmo ciente de que o fiador era casado, aceitou a fiança sem o cuidado de exigir a aquiescência do cônjuge ou companheiro(a) que a lei impõe para o aperfeiçoamento do ato, o que se me afigura uma distorção paternalista incompossível com a natureza e os fins da norma sob comento.
Vale ressaltar um aspecto da questão que não pode ser descurado. É verdade que a sociedade conjugal é despersonificada. Mas também é verdadeiro que a lei concebe a comunhão de bens como um regime especial da propriedade em favor da sociedade conjugal. Em outras palavras, enquanto nas sociedades de fato, portanto despersonificadas, o patrimônio delas aparece formalmente em nome de algum sócio ou de todos os sócios sob o regime de condomínio, sem distinção relativamente ao patrimônio individual de cada um deles, a sociedade conjugal goza de um regime especial da propriedade que garante a proteção dos seus bens e os distingue dos bens particulares de cada consorte, colocando aqueles a salvo dos atos de disposição praticados individualmente por estes sem o concurso da manifestação de vontade do outro. Os bens do casal, e aqui não importa se se trata de comunhão total ou parcial porque a premissa é de que sejam bens que integram a comunhão, são como os bens de uma sociedade personificada: não pertencem aos sócios individualmente nem mesmo por quinhão ou meação, mas à sociedade, que no caso é a sociedade conjugal, de modo que o ato de disposição ou oneração, para ser válido e produzir efeitos jurídicos, deve ser praticado pela sociedade, isto é, por ambos os consortes, ou no interesse deles, se por um só for realizado.
Daí por que a fiança prestada por um dos cônjuges ou companheiros sem a anuência do outro somente poderá vincular os bens da própria sociedade conjugal, ou seja, os bens que entram na comunhão (total ou parcial) se a dívida afiançada tiver sido contraída em benefício da própria sociedade conjugal. O operador lógico “se e somente se” estabelece uma condição biunívoca inafastável que, se não for satisfeita, implica a impossibilidade de os bens que entram na comunhão serem alcançados ou afetados pela execução de dívida contraída singularmente por um dos consortes sem a aquiescência do outro.
Nem se fale em alcançar a meação do cônjuge fiador porque a meação só existe quando há partilha, e a partilha só ocorre quando se dissolve a sociedade conjugal, seja pelo divórcio, seja pela extinção da união estável. Enquanto não houver a dissolução da sociedade conjugal não tem sentido lógico algum falar em meação, pois nenhum dos cônjuges pode ser considerado sozinho dono de qualquer exceto aqueles reputados particulares por lei (CC, artigos 1.659 e 1.668). Os bens da comunhão pertencem à sociedade conjugal, ao casal, que deles é o único dono.
Permitir ao credor de um dos cônjuges a possibilidade de excutir a fração ideal correspondente ao que seria a meação do cônjuge devedor significa admitir o fim da sociedade conjugal por ato de terceiro relativamente ao bem cuja fração ideal será executada. Mas isso é absurdo, pois a sociedade conjugal só se dissolve nas hipóteses taxativas dispostas em numerus clausus pelo artigo 1.571 do CC, entre as quais não está contemplado o ato de terceiro. Além disso, a dissolução jamais poderá ser relativa, para alcançar apenas um bem. Seguindo essa trilha, exatamente porque a sociedade conjugal não se extingue por ato de terceiro nem relativamente a algum bem da comunhão, admitir a execução da meação de um dos cônjuges conduz a outro absurdo, a saber: no limite, a execução da totalidade do bem em questão. Deveras, pois, executada a meação do cônjuge devedor, supondo que não seja suficiente para satisfação da dívida, poderá o credor insurgir-se sobre sua meação na parte que restou à sociedade conjugal, pois o regime da comunhão implica que enquanto durar a sociedade conjugal, os bens pertencem a ela, e não a um ou outro ou a ambos os cônjuge em regime de condomínio. Assim, o credor poderá executar de modo recursivo a meação do cônjuge devedor na parte que restar à sociedade conjugal ao cobro de cada execução até que, no limite, terá executado a totalidade do bem em questão. Ninguém em sã consciência ousaria discordar de que esse processo recorrente que levaria à execução da totalidade do bem, privando dele a sociedade conjugal e, conseguintemente, o cônjuge que não concorreu para a constituição da obrigação, representa um absurdo, a degeneração total da mens legis que estabelece o regime especial de propriedade por meio da comunhão de bens (total ou parcial) e a proteção desses bens.
No caso de a sociedade conjugal alienar bens a terceiro de boa-fé, este não pode ficar ao desabrigo da mesma proteção porque, ao transferir a propriedade, a sociedade conjugal transfere também todas as ações e exceções que em razão do bem transferido dispunha, entre as quais, a exceção de ausência de outorga, consentimento ou suprimento judicial. Esta solução está mais de acordo com o sistema do que qualquer outra.
Com efeito, se a dívida proveniente de fiança prestada por um dos cônjuges sem a anuência do outro pode ser invalidada pelo cônjuge que não concorreu na sua prestação e tal invalidade tem o condão de tornar boa, firme e valiosa a alienação de bens da sociedade conjugal, então não se pode privar o terceiro de boa-fé que haja adquirido bem da sociedade conjugal, convicto de que esta não possuía dívidas, de obter a mesma declaração para assegurar que a alienação é boa, firme e valiosa, pois, do contrário, a sociedade conjugal se locupletaria injustamente, uma vez que a ação de regresso do terceiro deveria ser dirigida contra ela, mas o cônjuge não anuência na formação da dívida poderia opor a falta de sua aquiescência, de modo que o terceiro de boa-fé somente teria ação contra o cônjuge faltoso, que já não teria mais bens para satisfazer sua obrigação, agora decorrente da evicção.
O exame da questão mostra a mixórdia em que se pode transformar um caso simples, que a lei resolve de modo direto e sem complexidade. Afinal, aquele que aceita fiança prestada por pessoa casada ou em união estável sem a anuência do outro consorte não pode aproveitar de sua própria incúria. O princípio da boa-fé objetiva, que prefiro chamar de ética negocial, age nessa questão de diversos modos aforísticos: dormientibus non succurrit jus, nemo auditur propriam turpitudinem allegans, nemo potest venire contra factum proprium para repudiar qualquer proveito que pretenda tirar o credor negligente da fiança prestada sem a anuência do consorte do fiador que se haja declarado casado ou unido a outra pessoa. A não ser assim, deformada estará a norma e os fins que orientam sua concepção e aplicação.
Sérgio Niemeyer é advogado em São Paulo, mestre em Direito pela USP, professor, palestrante e parecerista.
Fonte: Conjur