Artigo – Partilha de herança em famílias pluriparentais exige contas – Por Ivone Zeger

Ainda existe muita gente pensando que uma vez em união estável, os companheiros terão os mesmos direitos que são garantidos pela lei aos cônjuges, por meio do casamento civil. Por isso não foi surpresa quando minha cliente chegou ao escritório repleta de indignação. Não bastasse a perda do companheiro, o inventário estava prestes a ser aberto, não foi deixado testamento, e ela percebeu: a polêmica com os herdeiros ia longe. Em união estável há 10 anos, minha cliente teve um filho com seu companheiro. E ele, antes de unir-se à minha cliente, teve dois filhos do casamento anterior. Como ficará a partilha da herança?

No que se refere à partilha de bens quando ocorre a separação, os processos de reconhecimento de união estável e sua dissolução acomodam — digamos assim — a possibilidade da divisão de bens adquiridos onerosamente ao longo da união, a determinação de pensão alimentícia e a guarda dos filhos. E então há isonomia com o casamento civil. É bom lembrar que “bens adquiridos onerosamente” significa bens comprados.

No entanto, no que se refere à herança e sucessão daquele que falece, o tema torna-se mais complexo e a lei ainda faz discriminações, com vantagens para os cônjuges em detrimento dos companheiros. É possível aos que vivem em união estável realizar uma escritura pública ou contrato de convivência, determinando o regime de bens, assim como os que irão se casar podem fazer o pacto antenupcial, justamente com a finalidade de estabelecer regras para a administração dos bens. E, na hipótese de uma viuvez, determinar como deverão ser divididos os bens. Na falta destes instrumentos legais, passa a vigorar o regime de comunhão parcial de bens e, na verdade, essa é a situação mais comum. E justamente essa é a situação da minha cliente.

Antes de comentar as diferenças entre os direitos de cônjuges e companheiros, vamos explicitar melhor duas palavrinhas que serão bastante utilizadas aqui: meação e herança.

Na técnica dos inventários, a meação é a parte que cabe ao cônjuge sobrevivente, na sociedade conjugal. É constituída por metade dos bens do cônjuge falecido e é um direito que se assemelha ao de um sócio. A meação é decorrência de uma relação patrimonial existente em vida, entre pessoas, estabelecido por lei ou pela vontade das partes, uma vez que a meação está condicionada ao regime de bens, que pode ampliar ou restringir o patrimônio que deve ser divido igualmente entre os cônjuges. Por exemplo, a meação pode se aplicar exclusivamente aos bens adquiridos ao longo do casamento ou união estável; ou pode abranger estes bens e também os bens particulares do cônjuge falecido.

Já a herança existe em função do falecimento de alguém e da necessidade de que o falecido seja “sucedido”. Assim, pode-se definir herança como o conjunto de direitos e obrigações que são transmitidos a uma ou mais pessoas, ou seja, aos herdeiros. Os sucessores, ou herdeiros, passam a ter a mesma situação jurídica do falecido, também chamado “autor da herança”, e passam a herdar não só bens, mas direitos e obrigações também.

Feitas as devidas distinções, podemos continuar:

Se minha cliente fosse casada, o que seria dela por lei, sem necessidade de polêmica?

Dentro desse contexto do regime da comunhão parcial de bens, na hipótese de não haver testamento, a lei diz que o cônjuge sobrevivente tem direito a metade dos bens adquiridos durante o casamento (a meação explicada acima), mesmo que não tenha contribuído financeiramente para sua aquisição, e também a parte dos bens adquiridos antes do casamento, se houver. O restante será dividido entres os descendentes.

O cônjuge, diferentemente do companheiro, ocupa um lugar privilegiado, digamos assim, na vocação hereditária. Ele é um dos chamados herdeiros necessários, os que vêm primeiro, os que obrigatoriamente devem herdar. Quem serão eles? Serão os descendentes — filhos, na falta destes os netos e na falta destes, os bisnetos — e o cônjuge. E se não houver descendentes? Então os herdeiros necessários serão os ascendentes — pai e mãe, na falta destes os avós e, ainda na falta destes, os bisavós — e o cônjuge. Assim, quando marido ou esposa falecem e não têm descendentes nem ascendentes, o cônjuge herda todo o patrimônio.

Voltando à minha cliente, na hipótese de ela ser casada: receberia a metade dos bens adquiridos ao longo dos dez anos de união estável — a meação — e também teria uma parte da herança, composta por todos os bens do falecido, assim como seu filho e os dois enteados.

Pois bem. Como isso se dará de fato com minha cliente, uma vez que ela não era casada? Ela também terá direito à meação, e à parte do patrimônio, mas somente daqueles bens que foram adquiridos onerosamente ao longo da união estável. A ela não caberá participação na sucessão de bens que seu companheiro falecido tinha antes da união, chamados bens particulares. Assim, os bens que o companheiro dela tinha antes de se unir à ela, os bens particulares ou pessoais, serão divididos apenas entres os três filhos.

Um tanto injusto, não? Mas a diferença não para aí. O companheiro ou companheira não tem o mesmo posto de herdeiro necessário, como o tem o cônjuge, aquele casado pela lei civil. Isso implica no seguinte: se o casal não tinha descendentes, o companheiro sobrevivente dividirá a herança — que já é menor que a do cônjuge, pois não engloba os bens particulares — com os ascendentes; se não existirem ascendentes, o companheiro sobrevivente fica numa situação ainda pior: dividirá a herança com os herdeiros colaterais, que são os irmãos, na falta destes os sobrinhos e tios, e na falta destes, os primos-irmãos. Que dificuldade, não? Ou seja, o companheiro sobrevivente só herdará a totalidade dos bens se o companheiro falecido não tiver parentes vivos!

No geral, embora um tanto desvantajosas para os companheiros, a lei é clara em relação à partilha quando há filhos ou quando há enteados, determinando as quotas da herança para cada caso. Mas não se pode dizer o mesmo quando há filhos e enteados, “tudo junto e misturado”, para usar uma frase da moda.

E é justamente esse o caso da minha cliente, aliás, muito comum hoje em dia: ela concorre com o filho e dois enteados. Surpresa: para as famílias pluriparentais, as que têm “tudo junto e misturado”, o cálculo das quotas ainda não têm regras mais apropriadas.

Os enteados de minha cliente acham que por ela ter recebido a meação, não tem direito a mais nenhum quinhão do patrimônio do pai. A minha cliente acha que tem direito a boa parte do patrimônio porque o companheiro falecido tinha casas de veraneio que eram usufruídas por todos os filhos, mas a manutenção era feita pelo casal, assim como o pagamento de empregados. Porém, por mais que os enteados não queiram que ela herde mais nada além da meação; e por mais que ela considere ter direito a herdar muito mais do que lhe caberá, o que valerá, mesmo, será o determinado pelo artigo 1790 do Código Civil, que trata da sucessão do companheiro em relação aos bens adquiridos onerosamente durante a união estável e que já foram descritos acima.

Ou seja, em meio a reclamações e indignações, a solução é sentar e calcular até que se consiga uma partilha justa. A situação dos companheiros em relação aos cônjuges ainda renderá muita discussão entre juristas e legisladores. Por ora, me atentarei aos cálculos!


Ivone Zeger é advogada especialista em Direito de Família e Sucessão, integrante da Comissão de Direito de Família da OAB-SP e autora dos livros Herança: Perguntas e Respostas e Família: Perguntas e Respostas.


Fonte: Conjur