O Projeto de Lei 1009/2011, convertido no PLC 117/2013 — conhecido como Projeto de Lei da Guarda Compartilhada —, vem sendo apresentado equivocadamente como criador da “guarda compartilhada” no direito brasileiro, e está gerando falsas expectativas de que algo substancial irá mudar em relação ao tratamento judicial do relacionamento entre pais/mães e filhos.
Contudo, sem necessidade das alterações do PLC 117/2013, já é vigente que os “pais” e/ou as “mães” são os titulares natos e exercem em igualdade de condições sobre a prole comum o chamado “Poder Familiar” (antigamente denominado “pátrio poder”), independe de quem exerça a guarda, pois esta última significa apenas a posse de fato dos incapazes, e deve ser preferencialmente compartilhada "sempre que possível", ou seja, sempre que assim se mostrar condizente com os superiores interesses das crianças e adolescentes.
É o que já decorre do Código Civil de 2002, especialmente após a redação dada pela Lei 11.698, de 13 de junho de 2008, conforme ora se comprova:
a) "a separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos" (artigo 1.632);
b) "o pai ou a mãe que contrai novas núpcias, ou estabelece união estável, não perde, quanto aos filhos do relacionamento anterior, os direitos ao poder familiar, exercendo-os sem qualquer interferência do novo cônjuge ou companheiro" (artigo 1.636);
c) "o divórcio não modificará os direitos e deveres dos pais em relação aos filhos. Parágrafo único. Novo casamento de qualquer dos pais, ou de ambos, não poderá importar restrições aos direitos e deveres previstos neste artigo" (artigo 1.579).
E para que não paire qualquer dúvida, o artigo 1.584 do Código Civil, com a redação da mencionada Lei 11.698/2008, dispõe expressamente:
"A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser:
I – requerida, por consenso, pelo pai e pela mãe, ou por qualquer deles, em ação autônoma de separação, de divórcio, de dissolução de união estável ou em medida cautelar;
II – decretada pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho, ou em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe.
Parágrafo primeiro — Na audiência de conciliação, o juiz informará ao pai e à mãe o significado da guarda compartilhada, a sua importância, a similitude de deveres e direitos atribuídos aos genitores e as sanções pelo descumprimento de suas cláusulas.
Parágrafo segundo — Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada.
Parágrafo terceiro – Para estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os períodos de convivência sob guarda compartilhada, o juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, poderá basear-se em orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar.
Parágrafo quarto – A alteração não autorizada ou o descumprimento imotivado de cláusula de guarda, unilateral ou compartilhada, poderá implicar a redução de prerrogativas atribuídas ao seu detentor, inclusive quanto ao número de horas de convivência com o filho.
Parágrafo quinto – Se o juiz verificar que o filho não deve permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, deferirá a guarda à pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, considerados, de preferência, o grau de parentesco e as relações de afinidade e afetividade".
Em sentido análogo dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao prever: a) "A guarda destina-se a regularizar a posse de fato, podendo ser deferida, liminar ou incidentalmente, nos procedimentos de tutela e adoção, exceto no de adoção por estrangeiros" (artigo 33, parágrafo 1º); b) "nos casos do parágrafo quarto deste artigo, desde que demonstrado efetivo benefício ao adotando, será assegurada a guarda compartilhada, conforme previsto no artigo 1.584 da Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil" (artigo 42, parágrafo 5º).
Acrescenta-se que, sempre que possível, o menor “deve ter sua opinião devidamente considerada”, livre de pressões e influências das partes e eventuais interessados, “respeitado seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão sobre as implicações da medida” (artigos 2º, 15, 16, incisos I e II, 28, parágrafos 1º e 2º, e 83, caput, do Estatuto da Criança e do Adolescente).
Também não diverge dessa linha a Lei da Alienação Parental, ao dispor: a) "Caracterizados atos típicos de alienação parental ou qualquer conduta que dificulte a convivência de criança ou adolescente com genitor, em ação autônoma ou incidental, o juiz poderá, cumulativamente ou não, sem prejuízo da decorrente responsabilidade civil ou criminal e da ampla utilização de instrumentos processuais aptos a inibir ou atenuar seus efeitos, segundo a gravidade do caso: I – declarar a ocorrência de alienação parental e advertir o alienador; II – ampliar o regime de convivência familiar em favor do genitor alienado; III – estipular multa ao alienador; IV – determinar acompanhamento psicológico e/ou biopsicossocial; V – determinar a alteração da guarda para guarda compartilhada ou sua inversão; VI – determinar a fixação cautelar do domicílio da criança ou adolescente; VII – declarar a suspensão da autoridade parental. Parágrafo único. Caracterizado mudança abusiva de endereço, inviabilização ou obstrução à convivência familiar, o juiz também poderá inverter a obrigação de levar para ou retirar a criança ou adolescente da residência do genitor, por ocasião das alternâncias dos períodos de convivência familiar" (artigo 6º); b) "A atribuição ou alteração da guarda dar-se-á por preferência ao genitor que viabiliza a efetiva convivência da criança ou adolescente com o outro genitor nas hipóteses em que seja inviável a guarda compartilhada" (artigo 7º).
O PLC 117/2013, declaradamente pretendendo "estabelecer o significado da expressão “guarda compartilhada” e dispor sobre sua aplicação", promove indevida confusão entre “Poder Familiar” e “Guarda”. Pior que isso, tal PLC 117/2013, substituindo a expressão "sempre que possível", pela expressão "encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar", aparentemente desloca o foco dos interesses dos incapazes, para dar prevalência aos interesses dos pais.
A verdade é que o PLC 117/2013 objetiva apenas enfatizar a preferência do legislador à guarda compartilhada, em razão da visão — baseada em questionável pesquisa, tanto pelos dados, quanto principalmente pela desconsideração dos fundamentos casos concretos — de que o Poder Judiciário supostamente estaria sendo comedido (6% dos casos analisados na aplicação da guarda compartilhada).
De qualquer forma, decorre do próprio PLC 117/2013 — analisado no seu conjunto —, que permanecem prevalecendo os superiores interesses dos incapazes quanto à atribuição da guarda dos mesmos, pois: a) é mantida a possibilidade de se deferir a guarda a terceira pessoa — até diversa do(a)s próprios pais/mães — "que revele compatibilidade com a natureza da medida, considerados, de preferência, o grau de parentesco e as relações de afinidade e afetividade" (artigo 1.584, parágrafo 5º); b) reafirma que "compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar" (artigo 1.634, "caput"); c) prevê que "a cidade considerada base de moradia dos filhos será aquela que melhor atender aos interesses dos filhos" (artigo 1.583, parágrafo 3º); d) excepciona a regra da prévia oitiva da parte contrária, antes de "liminar de guarda", "se a proteção aos interesses dos filhos exigir" (artigo 1.585, "caput").
Quanto a este último aspecto, pouco inovou o PLC 117/2013, quando a prevê que, "Em sede de medida cautelar de separação de corpos, em sede de medida cautelar de guarda ou em outra sede de fixação liminar de guarda, a decisão sobre guarda de filhos, mesmo que provisória, será proferida preferencialmente após a oitiva de ambas as partes perante o juiz, salvo se a proteção aos interesses dos filhos exigir a concessão de liminar sem a oitiva da outra parte, aplicando-se as disposições do art. 1.584" (artigo 1.585, "caput").
Nesse tema, o único mérito do projeto é trasladar explicitamente ao instituto da antecipação dos efeitos da tutela — verdadeira natureza processual da atribuição liminar de guarda —, o que já prevê o artigo 797 do Código de Processo Civil: "só em casos excepcionais, expressamente autorizados por lei, determinará o juiz medidas cautelares sem a audiência das partes".
O PLC 117/2013, ainda, não traz qualquer novidade, quando prevê que o genitor sem a guarda deve "supervisionar os interesses dos filhos", assim como pode "solicitar informações (…) objetivas ou subjetivas, em assuntos ou situações que direta ou indiretamente afetem a saúde física e psicológica e a educação de seus filhos", e ainda exigir "informações" acerca dos filhos, de "qualquer estabelecimento público ou privado" (artigo 1.583, parágrafo 5º, e artigo 1.584, parágrafo 6º).
Isso porque todos esses deveres/direitos — como acima constatado — podem ser exercitados, exigidos e requeridos com base no "Poder Familiar".
Restam analisar as verdadeiras novidades do PLC 117/2013, iniciando-se pela previsão de multa de R$ 200 a R$ 500, contra o estabelecimento público ou privado que não atender à solicitação de informações de pais e/ou mães sobre filhos (artigo 1.584, parágrafo 6º).
O legislador teria sido mais feliz e resguardado melhor os pais/mães se tivesse substituído a restritiva expressão "estabelecimento público ou privado", por pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado. E seria bem mais efetivo se não taxasse o mínimo e o máximo da multa, permitindo que esta fosse dosada em cada caso concreto, proporcionalmente ao poder econômico do "estabelecimento" destinatário, e evitando que ela se deteriore com o tempo, frente ao fenômeno inflacionário.
Também prevê o PLC 117/2013 a possibilidade de o genitor que não detém a guarda “solicitar” "(…) prestação de contas, objetivas ou subjetivas, em assuntos ou situações que direta ou indiretamente afetem a saúde física e psicológica e a educação de seus filhos" (artigo 1.583, parágrafo 5º).
Nesse tema — a par do adjetivo “subjetivas”, de difícil compreensão —, o legislador explicitamente pretende modificar a jurisprudência largamente majoritária do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que "aquele que presta alimentos não detém interesse processual para ajuizar ação de prestação de contas em face da mãe da alimentada, porquanto ausente a utilidade do provimento jurisdicional invocado, notadamente porque quaisquer valores que sejam porventura apurados em favor do alimentante, estarão cobertos pelo manto do princípio da irrepetibilidade dos alimentos já pagos" (STJ. Resp 985.061/DF, Rel. ministra Nnancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 20/05/2008, DJe 16/06/2008).
Mas se enfatiza que "o reconhecimento da má utilização das quantias pelo genitor detentor da guarda não culminará em qualquer vantagem ao autor da ação, ante o caráter de irrepetibilidade dos alimentos, e, ainda, em face de a obrigação alimentar, e seus respectivos valores, restarem definidos por provimento jurisdicional que somente pode ser revisto através dos meios processuais destinados a essa finalidade" (STJ. Resp 970.147/SP, Rel. ministro Luis Felipe Salomão, Rel. p/ Acórdão ministro Marco Buzzi, 4ª Turma, julgado em 04/09/2012, DJe 16/10/2012).
Tal disposição terá pouca utilidade — ao menos prática —, pois nada adianta prever genericamente direito de prestação de contas, ignorando que alimentos prestados são irrepetíveis, e sem modificar os objetivos da própria ação de prestação de contas, prevista no Código de Processo Civil.
Isso não significa ausência de mecanismos jurídico-processuais adequados à solução de malversação de recursos destinados às crianças e adolescentes.
Com efeito, se os alimentos estão sendo prestados em valor maior que o necessário, pode ser o caso de se movimentar a ação revisional alimentar. E se o genitor gerenciador dos alimentos estiver desviando o necessário ao sustento e educação do filho para outras finalidades, podem ser aplicadas medidas até mais severas, como, por exemplo, a modificação da guarda e/ou do regime de visitas, e em casos mais graves — apropriação indébita e/ou abandono de incapaz —, até a suspensão ou perda do poder familiar.
Resta analisar o que pretende o PLC 117/2013, ao mencionar a "base de moradia dos filhos" (artigo 1.583, parágrafo 2º), bem como ao introduzir ao poder parental em relação aos filhos, a prerrogativa de se deferir ou negar "consentimento para mudarem sua residência permanente para outro Município" (artigo 1.634, inciso V).
A Constituição Federal dispõe que "é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens" (artigo 5º, inciso XV).
O Código Civil de 2002 prevê que: a) "o domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo definitivo" (artigo 70); b) "se, porém, a pessoa natural tiver diversas residências, onde, alternadamente, viva, considerar-se-á domicílio seu qualquer delas" (artigo 71); c) "muda-se o domicílio, transferindo a residência, com a intenção manifesta de o mudar. Parágrafo único. A prova da intenção resultará do que declarar a pessoa às municipalidades dos lugares, que deixa, e para onde vai, ou, se tais declarações não fizer, da própria mudança, com as circunstâncias que a acompanharem" (artigo 74).
O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê que: a) "considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade" (artigo 2º); b) "nenhuma criança poderá viajar para fora da comarca onde reside, desacompanhada dos pais ou responsáveis, sem expressa autorização judicial" (artigo 83).
E a Lei da Alienação Parental dispõe que "são formas exemplificativas de alienação parental (…) V – omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço; (…) VII – mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com avós" (artigo 2º).
Logo, é garantida a qualquer pessoa, desde a adolescência (12 a 17 anos), a livre locomoção em todo território nacional — e por isso, por exemplo, a dificuldade de condução coercitiva de adolescentes em estado de vulnerabilidade (uso de drogas, abandono nas ruas etc.), mesmo para a própria proteção dos mesmos.
O PLC 117/2013, então, restringiu o direito de ir e vir dos adolescentes, subordinando-o à autorização dos pais — e poderia ter ido mais longe, permitindo que, mediante crivo e fiscalização judicial, restrição semelhante fosse criada em casos de prova de estado de vulnerabilidade e/ou abandono de criança e adolescente.
O importante é salientar que, em decorrência da interpretação sistemática de todos os dispositivos acima conjugados, a pessoa eventualmente detentora da guarda unilateral não está peremptoriamente proibida de mudar seu domicílio para outra cidade/comarca com os menores, se tal mudança for satisfatoriamente justificada (oportunidade de emprego; proximidade com local de tratamento, em caso de doença grave etc.).
Somente deve ser repelida — se necessário até com a inversão da guarda — a mudança de domicílio injustificada e/ou com objetivo de prejudicar o contato do filho comum com o genitor que não possui a guarda, com familiares deste e/ou com os avós.
Fonte: Conjur