Em 1929, o consultor-geral da República elaborou parecer no qual opinou que a naturalização poderia ser revogada. O parecerista registrou a natureza juspublicista do instituto, premissa hoje indiscutível, ainda que, à época, suscitasse alguma discussão. Fez referência a Teixeira de Freitas, em passagem interessante sobre a supremacia do Direito Constitucional, premissa também hoje indiscutível, ainda que também, à época, essa premissa não fosse de aceitação geral. De igual modo, e com idêntico objetivo, o parecerista (Solidônio Leite) citou Clóvis Beviláqua.
O parecer é muito simples, por isso é que talvez cative tanto: é texto de um tempo no qual os intérpretes do Direito tinham mais tempo e menos questões; porém, nem por isso desprezavam a profundidade das análises que faziam. Segue o parecer, que pode comprovar essa constatação:
“Parecer sobre consulta verbal, reservada, do Ministério da Justiça em 26-7-1929, respondida em 27-7-1929.
Tem-se reconhecido ser a naturalização assunto que interessa ao direito público (o interno como o internacional), muito mais do que ao direito civil.
A qualidade de nacional, sendo o laço que prende o indivíduo ao Estado, constitui condição indispensável para o gozo de direitos políticos. Deve, portanto, ser regulada pelo direito público.
O nosso Teixeira de Freitas mostrou com a maior clareza o erro das ideias contrárias, bebidas no direito francês. “A lei constitucional é a primeira lei, de onde todas as outras devem dimanar. Constituída uma associação política, a consequência imediata é logo a designação de quem dela faz parte. A nacionalidade é a condição primordial dos direitos políticos, porque ninguém pode exercer direitos políticos sem ser nacional. Quando se perde a nacionalidade, perdem-se necessariamente os direitos políticos”.
Não difere Clóvis Beviláqua:“Ainda que algumas legislações incluam esta matéria entre as do direito civil, ela é, por sua natureza, essencialmente constitucional”.
Quanto aos constitucionalistas, baste-nos a opinião de Barbalho:“Se a perda da nacionalidade produz sempre a dos direitos políticos, é bem evidente que a qualificação da nacionalidade pertence ao direito constitucional, e não ao direito civil”.
A nova lei francesa, de 10 de agosto de 1927, tomou orientação diversa da seguida na lei de 1889. (…)
As noções da nacionalidade e de naturalização, explicou Mallarmé, na Câmara dos Deputados, pertencem muito mais ao direito público do que ao direito privado.
A própria França acaba, assim, de adotar a boa doutrina, da qual decorrem consequências importantes; entre outras, maior rigor na aplicação dos princípios que regem a cidadania.
O liberalismo, que tem predominado nas concessões de naturalização, tudo nos aconselha a abandoná-lo. Tanto mais quanto aos países organizados cumpre impedir a infiltração de maus elementos que poderão ser facilmente aproveitados pelas forças destruidoras que ameaçam subverter o mundo civilizado.
Essa a orientação, que se está seguindo em toda a parte; e é sem dúvida a que decorre do mais importante dos deveres do Estado – o tocante à sua própria segurança.
Por isso tem se admitido seja cassada a naturalização assim no caso de falsas declarações; como, em geral, quando o exigem os interesses da segurança do Estado.
A nova lei francesa de 10 de agosto de 1927 expressamente o permite se o naturalizado se tornar indigno dos direitos inerentes à cidadania.
Comentando-a, diz Valéry, que os seus autores merecem elogios por terem dado ao novo instituto jurídico da desnaturalização toda a amplitude de que havia mister.
Foi origem da lei a preocupação nascida durante a guerra, de tornar mais sérias do que dantes, as condições exigidas para a naturalização.
Na Inglaterra já a Comissão Interministerial de 1901, informando ter a experiência mostrado serem frequentes os casos de naturalizações obtidas de má fé, sustentava a conveniência de se anularem os certificados concedidos em virtude de declarações falsas ou fraudulentas; o que foi atendido na lei de 1914 e de modo muito mais completo na de 1918. Esta admite a desnaturalização, em substância:
1º) No caso de deslealdade;
2º) No caso de infração penal grave ou de má reputação;
3º Nos casos em que um indivíduo naturalizado tiver procedido de modo contrário à intenção, que manifestou, de residir na Inglaterra.
A lei autoriza o Secretário do Estado a anular o certificado de naturalização obtido por falsa declaração, por fraude, ou mediante dissimulação de certos fatos importantes; e ainda em outros casos, se achar ser a manutenção do mesmo certificado prejudicial ao interesse público.
Procurou-se assim satisfazer à necessidade, que a experiência da guerra demonstrou, de se alargarem as disposições da lei de 1914.
Com o mesmo espírito da lei inglesa de 1918, foi promulgada no Egito a de 26 de maio de 1926.
A naturalização, diz Valery, “é um favor que o Estado concede ao estrangeiro que pediu para ser admitido na comunhão cívica. Se o beneficiado se mostra indigno do favor obtido, é justo e lógico se lhe retire o mesmo”.
É a luz de tais princípios que devemos nos orientar na aplicação da nossa lei sobre naturalização.
Esta não se compreende sem o propósito de vincular-se o estrangeiro ao país cuja nacionalidade se propõe a adotar; e não pode ser concedida senão a quem tenha bom procedimento moral e civil.
Portanto pode o governo declará-la sem efeito se verificar tê-la concedido a quem não pretendia integrar-se na comunhão nacional; mas sim exercer com mais segurança a prática de atos criminosos.
Na hipótese, a naturalização foi obtida para facilitar, no estrangeiro, o exercício de comércio ilícito, no qual, o naturalizado, em contínuas viagens figura como correio brasileiro, levando malas com selos de lacre com as armas da República e os dizeres do Consulado-Geral do Brasil em Antuérpia.
Não há muito o Poder Executivo declarou sem efeito a portaria de naturalização, sob o fundamento de haver sido a mesma naturalização obtida dolosamente porquanto faltava ao requerente o requisito essencial que consistia no propósito de adquirir e conservar a nova nacionalidade.
Solidonio Leite”.
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP. Doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).
Fonte: Conjur