Recentemente, foi publicado aqui no ConJur um instigante artigo do Professor José Fernando Simão[1]intitulado “Retroagir ou não retroagir: eis a questão”, no qual o prestigiado professor narrou seu espanto em relação ao acórdão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina que entendeu pela possibilidade de “retroatividade do regime de separação absoluta de bens” em razão de contrato de união estável que teria previsto o “efeito ex tunc das disposições patrimoniais.”
Se seguirmos as premissas do festejado Professor Simão, impossível não concordar com sua conclusão, qual seja: o contrato escrito de união estável intercorrente à própria união só pode produzir efeitos patrimoniais da sua subscrição em diante, mantendo-se até a data do contrato o regime da comunhão parcial de bens e para depois dele o regime convencionado no pacto, pois, no entender do Professor Simão, a retroatividade representaria na verdade uma doação entre os companheiros ou, ainda, uma renúncia ao direito de propriedade já adquirido com a meação garantida pela comunhão parcial de bens.
Ocorre que essa conclusão não resolve e, na verdade, segundo me parece, cria uma contradição, qual seja: sendo a união estável reconhecida apenas depois que configurada a “convivência pública, contínua e duradoura” (conforme exata redação do artigo 1.723 do Código Civil)[2], e não podendo o contrato de convivência no entender do Professor Simão declarar a separação total de patrimônio como sendo o regime de bens desde o início da convivência, isso significa que nunca haverá uma união estável unicamente com o regime da separação total de bens, a menos que se imagine que duas pessoas antes mesmo de se afeiçoarem já comecem assinando logo nos primeiros encontros um contrato de convivência, o que,sem dúvida, se não éum despropósito, ao menos é incomum, além de desnecessário.
Isso porque a legislação não limita em absoluto a autonomia dos conviventes em regularem o que bem entenderem a respeito do regime patrimonial. Pelo contrário. Concede extrema liberdade e apenas fixa um regime legal para o caso de nada ser pactuado em sentido diverso por eles. E considerando que essa pactuação será sempre a posteriori[3], uma vez que seria impossível que as partes primeiro fizessem o contrato para só depois começarem a se unir pública, duradoura e continuamente, evidente que não terá esse contrato de união estável efeito constitutivo de algo que começa dali em diante, mas sim meramente declarativo do que as partes já vêm vivendo e que, naquele momento, perceberam-se naquela situação jurídica e resolveram declará-la em contrato.
É certo, portanto, que o contrato de união estável só pode existir se tiver efeitos retroativos, pois todos os que declaram pacto de união estável sem tê-la vivido duradoura e continuamente nada mais estão a fazer do que falsear o instituto para pactuar intenção de um dia constituir união estável sem tê-la ainda caracterizada.
Um exemplo deixa a contradição às claras: Duas pessoas começam a se relacionar em namoro, cada um com seu emprego, com suas contas separadas e aquisições pessoais incomunicáveis. No primeiro ano começam a conhecer os familiares um do outro. No segundo, começam a passar alguns dias um na casa do outro e a se apresentar publicamente como casal e decidem adotar um filho, sempre tendo combinado que a questão patrimonial seria completamente separada, com todas as despesas divididas e economias próprias de um e de outro. No terceiro ano, decidem unificar as residências até então separadas em uma, a ser adquirida por apenas um deles com o dinheiro reunido no ano anterior. No quarto ano conseguem adotar o primeiro filho do casal, mantendo tudo com a mais absoluta separação. No quinto ano, percebem-se efetivamente em um relacionamento público, contínuo, duradouro e com o objetivo de constituir família, razão pela qual optam por colocar em um papel tudo o quanto tinham combinado. Subscrevem o contrato de convivência declarando que viviam em união estável havia 3 anos e que o regime de bens sempre foi o da separação absoluta de bens. No sexto ano, o outro convivente adquire um imóvel para si como investimento e o coloca para alugar. Vivem assim por mais 10 anos, quando decidem dissolver a união.
Diante desse exemplo (real), qual seria a saída legal? E, como da lei cada intérprete tira o que lhe convém, qual seria a saída mais justa? Devemos interpretar o contrato de união estável como um contrato declarativo da relação jurídica já existente e consumada, produzindo efeitos por todo o período da convivência, de modo a cada convivente ficar com aquilo que amealhou em nome próprio, ou deveríamos interpretá-lo como sendo um contrato que até a sua data valeria a comunhão parcial (partilhando-se, portanto, o primeiro imóvel adquirido pelo primeiro convivente), mas mantendo-se com o segundo convivente o imóvel que ele, depois do contrato, comprou em nome próprio?
Há ainda outra contradição que salta aos olhos: se o contrato de convivência não pode declarar que a união estável existe desde antes da sua subscrição e que a separação absoluta de bens vige entre os conviventes por todo o período da convivência ali declarada, podendo apenas, como defende o estimado Professor Simão, gerar efeitos dali para frente (ex nunc), como funcionaria então nos casos em que o contrato de convivência prevê a comunhão universal de bens entre os conviventes? Por acaso o contrato de convivência que previsse a comunhão universal também só teria efeito prospectivo? Como isso seria possível?Ou nessa hipótese seria possível que o contrato tivesse efeito ex tunc? Podemos ter no sistema dois pesos e duas medidas?
É certo que fraudes e prejuízos a um dos conviventes pode existir tanto se optando por uma ou por outra interpretação. Também de uma forma ou de outra é possível se pensar em manipulação pelos conviventes para prejudicar terceiros. Contudo,certo é que a interpretação das regras jurídicas nunca pode ser mediante pressuposição de má-fé ou para contorno de situações pontuais de injustiça, já que contra elas os prejudicados e Judiciário têm instrumentos suficientes, não cabendo ao intérprete criar dificuldade que o legislador não previu.
E lendo a literalidade do artigo 1.725 do Código Civil, é possível tirar algumas pistas de que realmente o que se consagrou ali foi a ampla liberdade dos conviventes quanto à eleição do regime de bens para toda a união, senão vejamos:
“Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.”
A primeira delas é que o artigo de lei traz a regra da comunhão parcial de bens e diz que essa regra pode ser excepcionada se houver algum contrato escrito entre os companheiros prevendo outra forma de arranjo patrimonial. Ou seja, basta que se implemente a exceção para que a regra não tenha efeito, pelo que se percebe que, pela redação, é sim possível que existam situações em que a união estável poderá ter em toda ela norma patrimonial diferente da comunhão parcial.
A segunda é de que, para dar a interpretação defendida com brilho pelo Professor Simão, a redação precisaria ser diametralmente oposta, dizendo que na união estável o regime é sempre o da comunhão parcial de bens, podendo os conviventes alterarem esse regime mediante contrato escrito com efeitos futuros.Não parece que seja isso o que está escrito e nem o que pode ser entendido do artigo 1.725 do Código Civil.
A terceira pista é de que regime de bens pela constituição de família nada tem que ver com doação do que foi adquirido anteriormente, muito menos com renúncia ao direito de propriedade daquele que se dispõe à união afetiva de vida com outra pessoa, sob pena de, aplicando com rigor essa interpretação, todos os pactos antenupciais com eleição da comunhão universal estarem sujeitos ao pagamento de ITBI ou ITCMD sobre a metade do patrimônio dos nubentes que, naquele ato, estariam passando à propriedade do outro, o que evidentemente é incogitável.
À guisa de conclusão e diante dos pontos levantados, parece-me que a questão a ser discutida não é sobre retroatividade ou não do contrato de união estável, pois retroatividade não há, considerando que por definição o contrato de união estável só pode ser feito para tratar de uma união que se iniciou no passado e transcorre no presente. Assim, a característica jurídica da cláusula que esclarece os efeitos patrimoniais não é constitutiva de uma relação jurídica nova cujos efeitos se pretende sejam retroagidos, não! É sim declaratória de uma relação jurídica (a de separação total ou de comunhão universal) que já vinha sendo vivida e consumada desde o início da convivência, razão pela qual não há qualquer problema jurídico de se reconhecer a possibilidade ampla de autonomia aos conviventes arranjarem as relações patrimoniais daquela família da maneira que melhor lhes aprouver, desde o início da união até o seu término, tal como o artigo 1.725 do Código Civil claramente permite.
[1]Disponível em http://www.conjur.com.br/2015-set-27/processo-familiar-retroagir-ou-nao-retroagir-eis-questao, último acesso em 22/12/2015.
[2]O que significa dizer que o contrato de união estável nunca é constitutivo da união, pois por óbvio seria um documento simulado por falsidade de cláusula se as partes o fizessem antes de conviverem pública, duradoura e continuamente (nos termos do artigo 167, parágrafo 1º, II, do Código Civil),
[3] Ver nesse sentido, DELGADO, Mario Luiz. Casamento e União Estável: distinções necessárias: “Uma união de fato, iniciada com ou sem contrato, tem o seu potencial de transformar-se ou não em uma união estável, a depender da presença dos demais elementos característicos. Essa aferição se fará sempre a posteriori, ao contrário do casamento, sempre a priori.”
Hernani Zanin Junior é advogado e sócio do escritório Falcon, Gail e Zanin Sociedade de Advogados.
Fonte: Conjur