Se por um lado a pós-modernidade contratual é a busca da vontade protegida, real, do contratante desprivilegiado na relação (Estado Social), por outro lado, é a volta do liberalismo, da supremacia das regras da economia de mercado (Estado Liberal).
Lecionam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, que “no paradigma de direito e economia, inaugurado por Ronald Case, a menção à justiça contratual como forma de interferência em prol da parte mais fraca, nos casos em que exista desnível do poder de barganha entre os contratantes, se caracteriza como “paternalismo”, pois a interferência estatal no espaço privado do contrato comumente prejudica os interesses coletivos, culminando por desarranjar o espaço público do mercado.” Segundo os autores, “na perspectiva da análise econômica, taxativamente os contratos não são o veículo adequado de promoção social da justiça. Os propósitos distributivos não devem ser colocados em posição que possam interferir no livre desenvolvimento do interesse das partes, devendo antes ser promovidos por institutos diferentes que não dizem respeito à disciplina contratual, tais como a tributação e a seguridade social.” [1]
De acordo com Leonardo Brandelli, “esta nova visão da economia de mercado pretende a volta absoluta do privado na auto-regulamentação das suas vontades, sem intervenção estatal. A privatização do Estado, neste sentido, significa a privatização do contrato. O direito não deve impor limites à contratação; tais limites devem ser apenas da ordem econômica, que é natural, ínsita ao ser humano. Busca-se substituir a legislação estatal pela nova lex mercatória, que traduz os usos e costumes da comunidade internacional de comerciantes, consistindo em uma lei sem fronteiras, fruto de um mercado globalizado, “sem Estado”, e sem um direito de autoridade, mas sim um direito que deixa fazer”. [2]
Mas, qual, então, seria a alternativa a este paternalismo – que, de acordo com a análise econômica do direito, coloca o contrato e o mercado em rota de colisão, ao gerar a imposição forçada de solidariedade pelo Estado – que não o retorno total ao liberalismo, que prevê a supremacia das regras de mercado, descuidando-se da pessoa envolvida na relação negocial?
A resposta é a concepção pluralista do contrato, em que os dois pontos de vista – a intervenção estatal para a tutela dos sujeitos deficitários, entendida, aqui, por nós, como a intervenção de um terceiro imparcial, de um notário, e a volta ao liberalismo, com a supremacia das regras de mercado – se enriquecem mutuamente, pois nenhuma teoria pode fornecer sozinha um corpo completo de soluções integradas.
Para tanto, “o contrato será, simultaneamente, instrumento e expressão da autonomia pessoal e regulador dos processos sociais de cooperação e troca. A novidade, portanto, reside na introdução, como fator de ponderação, de objetivos de regulação de mercado, outrora alheios ao direito dos contratos. Quer dizer, o contrato deve ser integrado ao seu ambiente, com o qual estabelece interação permanente. Os contratantes não são apenas sujeitos do ato jurídico, mas também agentes de transação do mercado. As regras do contrato levam em conta a posição do sujeito em mercados específicos.” [3]
Nas sábias palavras de Luciano Timm, “a sociedade não é representada pela parte mais fraca do litígio, mas sim pelo grupo de pessoas integrantes de um específico mercado. Não se pode pensar em interesses sociais em uma relação contratual e descurar do ambiente em que esta relação é celebrada – o qual é, indubitavelmente, o mercado, que pode ser conceituado como ‘espaço público de interação social e coletiva tendente a situações de equilíbrio’. Corolário disso é que o mercado não está separado da sociedade; ele é parte integrante dela. Neste sentido, como qualquer fato social, ele pode ser regulado pelas regras institucionais, especialmente pelas jurídicas”. [4]
O que se quer aqui não é a aversão ao individualismo, pelo contrário. A autodeterminação dos sujeitos e a liberdade contratual são facetas fundamentais do princípio da dignidade da pessoa humana. Todavia, a justiça contratual, trazida pela intervenção de um terceiro imparcial na relação contratual, de um notário, na qualidade de “longa manus” do Estado, entrará em cena para garantir a efetiva autodeterminação de uma categoria de contratantes, quando for constatada a sujeição ao poder contratual de outra categoria de indivíduos. Ou seja, se quer assegurar o espaço de liberdade do indivíduo, acrescido de uma eficiente tutela do sujeito deficitário, mediante a intervenção de um terceiro que identifique e contenha os riscos a que ele está exposto.
Neste sentido, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, refletindo que o mercado não é inimigo que deve ser combatido, quanto mais um opositor à sociedade, destacam que “o que se deseja é a correta normatização e regulação do mercado para que ele promova a alocação de riscos, o fluxo de trocas, a redução dos custos de transação e amplie a confiança dos agentes econômicos na segurança daquilo que se pactuou.” De acordo com os autores, “a essência econômica do contrato é a promessa. Para que os indivíduos realizem investimentos e façam surgir o pleno potencial das trocas através da especialização, faz-se necessária a redução nos custos associados a riscos futuros de ruptura de promessas”. [5] E, a redução dos riscos de ruptura de promessas se dá justamente através da intervenção de um terceiro imparcial, de um notário, que garante a tutela do hipossuficiente e a exata coincidência entre a vontade e a declaração expressa no contrato, preservando, assim, a confiança nos vínculos negociais.
Com efeito, na medida em que a vontade que os outorgantes afirmam, especialmente quando se trata da parte mais fraca da relação, é muitas vezes uma vontade deformada, errônea, incompleta, ou até mesmo ilegal, o notário, com as suas informações, conselhos e mediação, ajuda a formar a verdadeira vontade, a única a que pode dar fé. O notário coaduna a vontade das partes ao resultado querido por elas e somente reduz esta vontade por escrito após se assegurar de que as partes compreenderam o alcance e as implicações do negócio jurídico. Agindo assim, o notário protege o destinatário do negócio jurídico, oferecendo, de consequência, maior segurança jurídica e eficácia às relações negociais, já que se amplia a confiança naquilo que se efetivamente pactuou.
Pela teoria da declaração, numa relação contratual, “a relevância dada à declaração sobre a vontade interna reconhece que a que deve ter mais peso juridicamente é a vontade que foi tornada socialmente conhecida através de uma manifestação para o exterior, trazendo à tona a necessidade de se tutelar a confiança despertada no destinatário.” [6]
Ora, se o contratante tem razões para acreditar que a declaração corresponde à vontade do outro, há de se considerá-la perfeita, por ter suscitado a legítima confiança em sua veracidade. A intervenção do notário, assim, se faz necessária justamente para garantir que a vontade das partes corresponda à exata declaração expressa no contrato, preservando, assim, a confiança das partes nas expectativas legítimas criadas quanto aos efeitos do negócio jurídico.
Desta forma, pode-se concluir que o notário é o ponto de equilíbrio buscado pela pós-modernidade, pois como profissional de direito qualificado e imparcial ele está apto a permitir a liberdade do indivíduo (Estado Liberal), com a tutela eficiente dos mais fracos da relação (Estado Social), garantindo, com sua atuação, a manifestação real da vontade de todas as partes envolvidas no negócio.
Em outras palavras, o notário é um instrumento indispensável para fixar a verdade negocial, ou seja, a coincidência entre a vontade da parte e sua declaração expressa no ato, especialmente quando se tratam de negócios envolvendo partes em situação desigual, a exemplo dos negócios entre grandes empresas e pessoas com menos recursos e menos conhecimento.
E, fixando a verdade negocial, o notário tutela a confiança nas legítimas expectativas criadas nas partes contratantes, gerando certeza e segurança jurídica para os negócios. Ora, certeza e segurança jurídica é o que qualquer mercado precisa para ser próspero, pois quanto menor o risco das transações, maior é o grau de investimento e, de consequência, maior a circulação de riqueza no país.
A intervenção do notário latino, portanto, ao contrário de perder vigência, é ainda mais necessária no cenário atual de globalização e relações cada vez mais complexas, sendo uma ferramenta indispensável para o desenvolvimento econômico, com a eficiente tutela da dignidade da pessoa humana.
Quando há paz social e segurança nos negócios, há propensão de investimentos. A certeza e a segurança jurídica geradas pela intervenção do notário do tipo latino nos contratos são diretrizes de desenvolvimento econômico, especialmente levando em conta a tutela da confiança das legítimas expectativas criadas nas partes contratantes.
De fato, a segurança jurídica é o que qualquer mercado precisa para ser próspero, pois quanto menor o risco das transações, maior é o grau de investimento e, de consequência, maior a circulação de riqueza no país. “Por isso, não se compreende a ligeireza de um legislador que, ignorando a história e as lições que encerra, desvaloriza o formalismo negocial que nunca deixou de constituir uma exigência da liberdade.”[7]
[1] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil nº 4. Contratos. Teoria Geral e Contratos em espécie. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2015.p. 20
[2] BRANDELLI, Leonardo. Atuação Notarial em uma economia de mercado – a tutela do hipossuficiente. In: Revista de Direito Imobiliário nº 52. São Paulo: Instituto do Registro Imobiliário do Brasil – IRIB, jan-jun de 2002. p. 188
[3] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil nº 4. Contratos. Teoria Geral e Contratos em espécie. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2015.p. 21
[4] TIMM, Luciano. Apud FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil nº 4. Contratos. Teoria Geral e Contratos em espécie. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2015.p. 21
[5] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil nº 4. Contratos. Teoria Geral e Contratos em espécie. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2015.p. 22
[6] JOBIM, Marcio Felix. Confiança e contradição: a proibição do comportamento contraditório no Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p.146
[7] JUSTO, A. SANTOS. A segurança jurídica do Comércio e a função do notariado (direito romano). In: Boletim da Faculdade de Direito. Vol. LXXXIV. Coimbra, 2008. p. 57.
José Flávio Bueno Fischer é o 1º Tabelião de Novo Hamburgo/RS, ex-presidente do CNB-CF e membro do Conselho de Direção da UINL
Fonte: Colégio Notarial do Brasil