O recente julgamento do STF – no julgamento do RE 845.779, de relatoria do ministro Luiz Fux que versa sobre o direito de transexuais serem tratados socialmente de forma condizente com sua identidade de gênero – reacendeu luz sobre tema que não é novo ao Judiciário.
Há profunda inadequação no tratamento jurídico sexual dos transexuais e sua apresentação e percepção social. O sistema jurídico embora estabeleça, desde logo, com o nascimento, uma identidade sexual, teoricamente imutável e única, deve dar conta de situações diversas, complexas e intrincadas que não podem ser homogeneizadas.
O transexual possui identidade sexual diferente do padrão conservador imposto, por não se enquadrar no modelo de sexualidade binário predeterminado. Ante este cenário, acaba havendo a rejeição por parte da sociedade frente ao transexual, que ainda passa a ser considerado pela sociedade como um traço de anormalidade.
Há bastante polêmica sobre o tema – inclusive pela inadequação do seu enquadramento médico (CID10 – F.64.0). Independente disso, sabe-se que a transexualidade é um processo que se origina com o desconforto sexual desde o nascimento na tentativa contínua na busca da harmonia entre o aspecto biológico e emocional.
Para quem se encontra nessa situação, trata-se de um drama jurídico-existencial, por haver uma cisão entre a identidade sexual física e psíquica. O sistema sócio-jurídico em muito contribui para a manutenção dessa circunstância uma vez que o sujeito é reconhecido e tratado socialmente de acordo com o sexo que aparenta pertencer ou ainda, com o sexo que este possui em seu registro civil.
Diante disto, em face de um ordenamento jurídico que privilegia a proteção da dignidade humana, faz-se mister a alteração de seu registro civil para adequar-se com sua trajetória de vida e com a vida que hoje possui. Um ordenamento jurídico que privilegie a proteção da pessoa humana não pode chancelar tamanha violação de direitos.
Com base nessa percepção, como inclusive recentemente noticiado pelo Migalhas, muitas demandas de redesignação do nome do transexual tem obtido guarida para mudança do prenome. Deve-se ater ao fato de que apesar do nosso sistema jurídico ter adotado a regra da imutabilidade do prenome, sempre deverá buscar-se um limite para esta imutabilidade, quando houver a possibilidade de esta ferir a dignidade da pessoa humana.
Há que se reconhecer o já consolidado, mas é necessário ir além!
Sob pena de violação do princípio da dignidade humana (art. 1º, III da Constituição Federal), é necessário admitir também a alteração do sexo no registro civil em decorrência da própria mudança do prenome. A não admissão da retificação do sexo perpetua tratamento desumano e cruel, incompatível com o ordenamento jurídico constitucional e vilipendiador dos direitos humanos e fundamentais.
A liberdade de adequação sexual, e por conseqüência adequação jurídica do nome, tem se solidificado em algumas decisões judiciais autorizam a troca de nome e de sexo no registro civil. É nesse sentido que se destaca decisão recente da 7ª vara de Família desta Capital, já transitada em julgado, ao afirmar que: “Portanto, revela-se impraticável manter no assento de nascimento da requerente a anotação do sexo feminino, que não corresponde a sua realidade psíquica, o que lhe causa sofrimento e, portanto, viola a dignidade humana, não havendo alternativa senão a total procedência do pleito exordial.” Ad cautelam, determinou-se “a segurança dos registros públicos impõe que, no livro cartorário, à margem do registro das retificações de prenome e de sexo da requerente, fique averbado somente que as modificações procedidas decorreram de sentença judicial”.
O fato de haver ausência de regramento específico para a alteração do registro civil do transexual, não pode ser uma justificativa para a omissão do Poder Judiciário, levando em consideração que a CF, o Código Civil e a lei dos registros públicos não vedam esta alteração.
Cumpre destacar que a lei dos registros públicos, não possui um dispositivo específico para tratar da matéria, mas permite a alteração do registro civil ao prever a mudança dos nomes suscetíveis de exposição ao ridículo. Por analogia, faz-se necessária a mudança do gênero, pois, transexual que exterioriza fenótipo sexual diverso daquele constante no documento é igualmente submetido á situação de violação à sua dignidade.
Está em pauta proteção do direito humano de determinado grupo vulnerável, todavia, seu atendimento e aceitação reverberem em toda formação social. Isto porque os direitos humanos não se enfraquecem diante da diversidade, mas sim, se fortalecem com a pluralidade de formas e conhecimentos que elas propiciam.
Melina Girardi Fachin é advogada da banca Fachin Advogados Associados.
Fonte: Migalhas