APELAÇÃO CÍVEL – INVENTÁRIO – INSTITUIÇÃO DE BEM DE FAMÍLIA – IMPOSSIBILIDADE – QUESTÕES QUE EXTRAPOLAM O JUÍZO DO INVENTÁRIO – AÇÃO AUTÔNOMA JÁ AJUIZADA – IMPOSSIBILIDADE DE CASSAR A SENTENÇA
– A imputação de um bem como sendo bem de família depende de adequação à Lei nº 8.009/90 no que tange ao bem de família legal ou ao art. 1.711 do CC para o bem de família voluntário. Ausentes os requisitos, impossível configurar o bem inventariado como sendo bem de família.
– Apresentadas questões por um dos herdeiros que dizem respeito à utilização de um bem inventariado, e não sua titularidade, devem ser elas solucionadas em ação autônoma já ajuizada, eis que extrapolam o âmbito da partilha.
Apelação cível nº 1.0024.12.070022-4/001 – Comarca de Belo Horizonte – 1º Apelante: Alberto Haas, em causa própria – 2º Apelante: Luiz Felippe Haas, inventariante do espólio de Emmanuel Augusto Haas – Apelados: Rachel Haas Gaetani e outro, Nathália Haas, espólio de Emmanuel Augusto Haas, representado pelo inventariante Luiz Felippe Haas – Interessados: Espólio de Teresinha Haas, Lourival Luiz da Silveira Filho, Estado de Minas Gerais, Município de Belo Horizonte – Relator: Des. Dárcio Lopardi Mendes.
ACÓRDÃO
Vistos etc., acorda, em Turma, a 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em dar parcial provimento à primeira apelação e negar provimento à segunda apelação.
Belo Horizonte, 17 de dezembro de 2018. – Dárcio Lopardi Mendes – Relator.
NOTAS TAQUIGRÁFICAS
DES. DÁRCIO LOPARDI MENDES – Trata-se de apelações cíveis interpostas por Alberto Haas e Luiz Felippe Haas contra a sentença proferida pelo MM. Juiz da 1ª Vara de Sucessões e Ausências da Comarca de Belo Horizonte que, nos autos do inventário, homologou a partilha apresentada às f. 249/253.
O primeiro apelante alega que o MM. Juiz deixou de se pronunciar acerca de diversas indagações nos autos do inventário, tendo homologado a partilha sem solucionar o que lhe foi pedido. Assim, requer o retorno dos autos à 1ª instância para que o juízo de primeiro grau se manifeste sobre: (i) desocupação forçada do imóvel residencial inventariado; (ii) apuração da validade do contrato de comodato firmado relativo a este imóvel; (iii) apuração nos próprios autos do prejuízo causado pelo comodato e/ou arbitramento de aluguéis; (iv) depoimento pessoal da herdeira Nathália Haas para os devidos esclarecimentos; (v) decretação da condição de bem de família do imóvel.
Já o segundo apelante alega tão somente que deve ser decretada a condição de bem de família do imóvel residencial inventariado, sob o argumento de que o bem era habitado pelo casal (falecidos) com a filha Nathália Haas (herdeira), a qual seguiu residindo no imóvel após o falecimento de seus pais.
Contrarrazões às f. 386/391, impugnando, preliminarmente, o pedido de gratuidade de justiça formulado pelos apelantes. Resposta à impugnação à gratuidade de justiça às f. 397/401, acompanhada dos documentos de f. 402/412 e f. 413/415. Primeiramente, cumpre rejeitar a impugnação à gratuidade de justiça.
A concessão da gratuidade da justiça está intimamente ligada à garantia constitucional do amplo acesso à justiça. O cidadão não pode ser desestimulado a recorrer ao Poder Judiciário por considerar que os recursos gastos para cumprir esse desiderato poderão comprometer seu patrimônio e seu orçamento doméstico.
Sobre o tema, leciona o doutrinador Alexandre de Freitas Câmara, em Lições de Direito Processual, v. I, 8. ed., Editora Lumen Juris, p. 35, ao analisar as "ondas" de acesso à Justiça, ocorridas no Direito Processual Brasileiro:
"Assegurada a assistência judiciária gratuita (ou, no caso brasileiro, a assistência jurídica integral e gratuita), cumpriu-se a primeira onda do acesso à ordem jurídica justa, tornando-se possível que todos – tenham ou não condições econômicas de arcar com as despesas processuais sem com isso criar dificuldades para sua manutenção e de sua família – possam levar ao Judiciário as alegações e provas necessárias para a defesa de seus interesses."
Em tema de assistência judiciária, a hipossuficiência deve ter conceito mais elástico, a fim de que não se frustre o espírito da Constituição da República de 1988 que deseja facilitar o acesso de todos à Justiça (art. 5º, LXXIV). Por isso mesmo, é de menor relevo a natureza da causa, ou a profissão do requerente do benefício. Basta que não produza renda que lhe permita pagar as custas e honorários de advogado, consoante excertos da jurisprudência colacionados por Teotônio Negrão, em escólios ao art. 2º da Lei nº 1.060/1950 (CPCLPV, 30. ed., Saraiva, p. 1.042).
Nessa conformidade, somente quando se evidenciar claramente dos autos a desnecessidade do favor, pode o juiz, de plano, indeferir a mercê da justiça gratuita. Não é, porém, a hipótese sub examine.
A propósito, o Superior Tribunal de Justiça já teve oportunidade de decidir que:
"Para que a parte obtenha o benefício da assistência judiciária, basta a simples afirmação da sua pobreza, até prova em contrário" (RSTJ-7/414).
E ainda:
“Súmula 463.
Assistência judiciária gratuita
I – A partir de 26/6/2017, para a concessão da assistência judiciária gratuita à pessoa natural, basta a declaração de hipossuficiência econômica firmada pela parte ou por seu advogado, desde que munido de procuração com poderes específicos para esse fim (art. 105 do CPC de 2015); II – No caso de pessoa jurídica, não basta a mera declaração: é necessária a demonstração cabal de impossibilidade de a parte arcar com as despesas do processo.”
A meu modesto aviso, é preferível pecar pela liberalidade, a impedir o acesso à prestação jurisdicional, quanto mais em se considerando o movimento de universalização do acesso à Justiça, promovido pelas ondas renovatórias, que atingiram o processo civil brasileiro na atualidade.
Logo, a assistência judiciária integral gratuita, além de ser um direito fundamental do cidadão que não possui meios próprios para suportar os ônus de demandar em juízo, representa uma evolução estrutural do Processo Civil, na busca da efetividade da Justiça e do aprimoramento do Estado Democrático de Direito.
Portanto, para que a concessão do referido benefício não se torne uma letra morta, impedindo que a jurisdição alcance seus escopos principais, deve-se presumir que o cidadão que se declare pobre no sentido legal o faz sem o intuito de se beneficiar indevidamente de sua concessão e, ainda, ciente das penas da lei, no caso de declarar falsamente a necessidade.
Conforme estabelecia a Lei nº 1.060/50, em seus revogados arts. 2º e 4º, não era preciso que a parte comprovasse sua situação de hipossuficiente para obter a concessão da gratuidade, sendo satisfatório apenas sua declaração nesse sentido. A lei não exigia que a parte comprovasse sua condição de necessitada, uma vez que a necessidade era presumida, podendo ser ilidida com prova em contrário.
O novo Código de Processo Civil, na verdade, pouco inovou em relação ao que já estava previsto na Lei nº 1.060/50. Conforme dispõe o art. 99 do CPC/2015:
"O pedido de gratuidade de justiça pode ser formulado na petição inicial, na contestação, na petição para ingresso de terceiro no processo ou em recurso.
§ 1º Se superveniente à primeira manifestação da parte na instância, o pedido poderá ser formulado por petição simples, nos autos do próprio processo, e não suspenderá seu curso.
§ 2º O juiz somente poderá indeferir o pedido se houver nos autos elementos que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a concessão de gratuidade, devendo, antes de indeferir o pedido, determinar à parte a comprovação do preenchimento dos referidos pressupostos.
§ 3º Presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural."
Portanto, o novo CPC presume como verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural, não sendo necessária a comprovação da situação de insuficiência de recursos, salvo quando o magistrado identificar elementos que demonstrem a possibilidade da parte em arcar com as despesas do processo. E, ainda nesta hipótese, deverá oportunizar a manifestação da parte para comprovar sua insuficiência.
Diante desses argumentos, vê-se que o apelante juntou cópia de rescisão do seu contrato de trabalho, demonstrado o seu afastamento em 9/3/2016 (doc. de f. 402/403), além de comprovante de contribuição previdenciária (f. 405/407.), no valor de R$190,80. Já o segundo apelante informa que não é herdeiro, atuando exclusivamente nos autos como representante do espólio e que os documentos que constam dos autos revelam que os bens que compõem o espólio não são suficientes para arcar com o pagamento das dívidas existentes.
Nesse contexto, vale lembrar que, para concessão da gratuidade, é irrelevante se o beneficiário tenha renda mensal, propriedade, seja móvel ou imóvel, ou esteja representado nos autos por advogado particular, porque o que deve ser verificado é a situação econômica da parte, ou seja, se as despesas judiciais prejudicarão sua manutenção ou de sua família. Basta, portanto, que não produza renda que lhe permita pagar as custas e honorários de sucumbência, sem prejuízo próprio ou de seus dependentes, consoante, inclusive, excertos da jurisprudência colacionados por Theotônio Negrão, em escólios ao art. 2º da Lei nº 1.060/50 (CPCLPV, 30. ed., Saraiva, p. 1.042).
Portanto, colacionados aos autos elementos suficientes que comprovem a alegada insuficiência de recursos financeiros, que impossibilita os apelantes de arcarem com as despesas processuais e honorários advocatícios sem prejuízo do próprio sustento ou de sua família, impõe-se o deferimento do benefício da assistência judiciária para fins recursais, sob pena de se configurar a negativa de prestação jurisdicional.
Presentes os pressupostos de admissibilidade, passo a decidir.
No que tange à alegação do primeiro apelante, tenho que não é o caso de cassar a sentença homologatória de partilha para o retorno dos autos à primeira instância.
Isso porque, quanto à omissão do juízo acerca dos questionamentos I a IV, são todos eles relativos à destinação dada ao imóvel residencial inventariado, de forma que o apelante não concorda com a administração realizada por sua irmã Nathália. Tais questões são objeto de ação autônoma – feito 5011302-02.2018.8.13.0024, conforme noticiado pelo próprio apelante (f. 339).
Assim, entendo que sua irresignação extrapola os limites do presente feito, que se destina à partilha dos bens inventariados, uma vez que, quanto à partilha em si, não há dissenso. Logo, tais questões não quedarão sem resposta do Judiciário, mas tão somente serão analisadas na ação autônoma já proposta. Acertada, assim, a sentença que homologou a partilha sem decidir acerca da regularidade da destinação dada ao bem imóvel e a consequente responsabilidade da herdeira Nathália.
Quanto ao pedido para decretar a condição de bem de família do imóvel residencial inventariado, tenho que é comum a ambas as apelações, podendo, apesar da omissão do juiz de primeiro grau, ser decidida de pronto por este Tribunal, em conformidade com CPC/15:
“Art. 1.013. A apelação devolverá ao tribunal o conhecimento da matéria impugnada.
§ 3º Se o processo estiver em condições de imediato julgamento, o tribunal deve decidir desde logo o mérito quando:
III – constatar a omissão no exame de um dos pedidos, hipótese em que poderá julgá-lo;
[…].”
Pois bem.
O imóvel para o qual se pleiteia seja reconhecida a condição de bem de família consiste na casa de nº 1.243 da Rua Odilon Braga, Bairro Comiteco (Bandeirantes), inscrita no 2º Ofício de Registro de Imóveis de Belo Horizonte sob a matrícula 5262. É certo que, em tal imóvel, até o falecimento de Emmanuel Haas, ocorrido em 2012, residia tão somente o de cujus com sua esposa, Teresinha Haas, o que se percebe pela inicial do inventário (f. 02/04), na qual consta residência da viúva na casa e residência diversa dos herdeiros, filhos do casal, todos já maiores e casados.
Com o posterior falecimento da viúva em abril de 2013, foi providenciada a junção de seu inventário com o do seu esposo pelos herdeiros, no qual passou a constar como residência da Sra. Nathália Haas o imóvel inventariado.
Ocorre que, em maio de 2013, foi celebrado contrato de comodato (juntado às f. 291/292) pela herdeira Nathália cedendo a casa de nº 1.243 da Rua Odilon Braga ao Sr. Ataíde Freitas Rocha. Em contrarrazões à apelação, a própria Nathália afirma que a pessoa com a qual celebrou o contrato ainda reside no imóvel (f. 389) e que somente celebrou tal contrato porque "não podia permitir que o imóvel permanecesse absolutamente desocupado, sob pena de sofrer depredações e até mesmo invasões." (f. 389).
Assim, o que se depreende da acurada análise do feito é que a herdeira Nathália, mesmo antes do falecimento de seu genitor, não residia e não veio a residir na casa que fora de seus pais.
Ora, o endereço residencial noticiado nos autos da herdeira Nathália era a cidade de Istambul, na Turquia, com seu marido Fahrettin Tughan Uludagalpat (f. 03) até o falecimento da Sra. Teresinha, quando, na inicial do inventário da genitora, passou seu endereço para o da casa dos falecidos pais.
Observa-se que a Sra. Teresinha faleceu em abril de 2013, e, um mês após o falecimento, já foi celebrado o contrato de comodato para o imóvel não ficar "absolutamente desocupado". Assim, em verdade, as provas carreadas aos autos demonstram que apenas o casal Teresinha e Emmanuel residia no imóvel, e, após o falecimento de ambos, nenhum dos filhos ocupou a casa.
Saliente-se que o espólio é devedor nas esferas federal, estadual e municipal, tendo sido deferidas diversas penhoras no rosto dos autos do inventário, o que leva a crer que pretendem os herdeiros o reconhecimento da condição de bem de família à casa para evitar sua execução.
Todavia, a imputação de um bem como sendo bem de família depende de adequação à Lei nº 8.009/90 no que tange ao bem de família legal ou ao art. 1.711 do CC para o bem de família voluntário. Ausentes os requisitos, impossível configurar o bem inventariado como sendo bem de família apenas porque as partes assim desejam.
Para configuração do bem de família legal, disciplinado pela Lei nº 8.009/90, é necessária a residência do próprio do casal, ou da entidade familiar, no imóvel, em conformidade com art. 1º da aludida lei. Conforme já explanado, nenhum dos herdeiros tem residência na casa de nº 1.243 da Rua Odilon Braga. Logo, o imóvel não se enquadra como bem de família legal.
Poder-se-ia pleitear, então, a imputação como bem de família voluntário. Contudo, conforme disciplinado no CC/02:
“Art. 1.711. Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial.
Art. 1.712. O bem de família consistirá em prédio residencial urbano ou rural, com suas pertenças e acessórios, destinando-se em ambos os casos a domicílio familiar, e poderá abranger valores mobiliários, cuja renda será aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família.
[…]
Art. 1.717. O prédio e os valores mobiliários, constituídos como bem da família, não podem ter destino diverso do previsto no art. 1.712 ou serem alienados sem o consentimento dos interessados e seus representantes legais, ouvido o Ministério Público.”
Na subsunção do fato à norma, tem-se que a casa inventariada ultrapassa 1/3 do patrimônio líquido da herança e não é destinada ao domicílio familiar dos herdeiros (nem mesmo indiretamente, haja vista que não confere renda por estar ocupada em regime de comodato). Dessa forma, também não foram cumpridos os requisitos necessários à instituição do bem de família voluntário.
Diante do quadro fático constatado no processo, aliado à legislação aplicável, entendo que impossível atender ao requerimento dos apelantes para gravar a casa de nº 1.243 da Rua Odilon Braga, Bairro Comiteco (Bandeirantes), inscrita no 2º Ofício de Registro de Imóveis de Belo Horizonte, sob a matrícula 5.262, como bem de família.
Mediante tais considerações, dou parcial provimento à primeira apelação para, reconhecendo a omissão na sentença, julgar improcedente o pedido de decretação da condição de bem de família do imóvel inventariado, conforme art. 1.013, § 3º, III, do CPC/15, bem como nego provimento à segunda apelação.
Incabível a condenação em honorários recursais, haja vista que a sentença recorrida não o fez.
Custas ex lege.
Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores Renato Dresch e Moreira Diniz.
Súmula – DERAM PARCIAL PROVIMENTO À PRIMEIRA APELAÇÃO E NEGARAM PROVIMENTO À SEGUNDA.
Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico – MG