Jurisprudência mineira – Apelação cível – Embargos de terceiro – Filhos – Subscrição de imóvel sem anuência do cônjuge e dos demais proprietários – Nulidade – Distinção entre subscrição e integralização

APELAÇÃO CÍVEL – EMBARGOS DE TERCEIRO – FILHOS – LEGITIMIDADE ATIVA – SUBSCRIÇÃO DE IMÓVEL SEM A ANUÊNCIA DO CÔNJUGE E DOS DEMAIS PROPRIETÁRIOS – NULIDADE – DISTINÇÃO ENTRE SUBSCRIÇÃO E INTEGRALIZAÇÃO – AÇÃO DE RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS DE EMPRESA LIMITADA – PROTEÇÃO LEGAL AO BEM DE FAMÍLIA – HIPÓTESES DE EXCEÇÃO TAXATIVAS


– Os filhos dos proprietários de bens imóveis arrecadados judicialmente possuem direito indireto ao manejo dos embargos de terceiros, por força de filiação, conforme posicionamento pacífico do colendo Superior Tribunal de Justiça.


– É anulável o negócio jurídico praticado pela esposa, que transfere para a sociedade empresária, durante a constância do matrimônio, submetido ao regime de comunhão parcial de bens, sem a necessária concordância do marido, imóvel destinado à integralização do capital social.


– Estando o bem imóvel em condomínio, a subscrição para fins de integralização do capital social da empresa depende da anuência de todos os seus proprietários, sob pena de nulidade.


– A subscrição é a manifestação de vontade emitida pelo sócio, pelo qual se compromete à transferência de bens e valores para a formação do capital social da empresa, ao passo que a integralização é a efetiva transferência dos aludidos bens e valores ao capital social da empresa.


– A transferência de bens de propriedade dos sócios de responsabilidade limitada à massa falida, sem que seja instaurada, previamente, a ação de responsabilização disciplinada pelo art. 82 da Lei nº 11.101/05, importa em desrespeito aos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.


– Constituindo os imóveis bem de família e, por conseguinte, abarcados pela proteção legal conferida pela Lei nº 8.009/90, não podem ser arrecadados pelo Sr. Administrador Judicial, conforme expressa previsão contida no art. 108, § 4º, da Lei nº 11.101/05.


– As hipóteses de exceção trazidas pela Lei nº 8.009/90 são taxativas e, assim, não comportam interpretação extensiva. Apelação cível nº 1.0024.17.004173-5/004 – Comarca de Belo Horizonte – Apelantes: Cássia Horta Vasconcelos, Leyla Horta Vieira, Bertha Horta Vasconcelos, William Fernandino Vasconcelos, Clarissa Horta Vieira, Guilherme Horta Vieira, Cayque Horta Vasconcelos e outra – Apelado: Admédico Administração de Serviços Médicos a Empresa Ltda. – Relatora: Des.ª Ana Paula Caixeta.


ACÓRDÃO


Vistos etc., acorda, em Turma, a 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em dar provimento ao recurso de apelação.


Belo Horizonte, 29 de novembro de 2018. – Ana Paula Caixeta – Relatora.


NOTAS TAQUIGRÁFICAS


DES.ª ANA PAULA CAIXETA – Cuida-se de recurso de apelação interposto contra a sentença de f. 373/379, proferida pelo MM. Juiz de Direito da 2ª Vara Empresarial da Comarca de Belo Horizonte, Dr. Adilon Cléver de Resende, que, nos autos dos embargos de terceiro opostos por Cayque Horta Vasconcelos, Bertha Horta Vasconcelos, Cássia Horta Vasconcelos, William Fernandino Vasconcelos, Guilherme Horta Vasconcelos, Leyla Horta Vieira e Clarissa Horta Vieira em desfavor de Massa Falida de Admédico – Administração de Serviços Médicos a Empresa Ltda., julgou extinto o feito, sem resolução de mérito, em relação aos embargantes Cayque Horta Vasconcelos, Bertha Horta Vasconcelos e Guilherme Horta Vieira e julgou improcedente o pedido inicial quanto aos demais embargantes. Os embargantes foram condenados ao pagamento das custas e despesas processuais e dos honorários advocatícios de sucumbência, arbitrados em 15% (quinze) por cento do valor atribuído à causa, cuja exigibilidade de recolhimento restou suspensa, por estarem amparados pelos benefícios da justiça gratuita.


Os embargos de declaração de f. 380/388 foram rejeitados pela decisão de f. 398.


Em suas razões recursais de f. 399/432, os embargantes, doravante denominados apelantes, afirmaram que Cayque Horta Vasconcelos, Bertha Horta Vasconcelos e Guilherme Horta Vieira possuiriam legitimidade para figurar no polo processual ativo destes embargos de terceiro, "com o objetivo de defender a posse e o interesse que detenham sobre o bem de família".


Aduziram que, nos autos da Ação Anulatória nº 0024.17.004220-4, o pedido inicial formulado por William Fernandino Vasconcelos foi julgado procedente, ocasião em que foi determinada a exclusão do apartamento nº 501 do Edifício Iraci Ferreira da Cunha, situado na Rua Muzambinho, nº 159, Bairro Cruzeiro, nesta cidade, mostrando-se contraditória a sentença lançada neste processo em relação ao referido imóvel.


Ponderaram que a falência da empresa Admédico – Administração de Serviços Médicos a Empresa Ltda. foi decretada em 15 de maio de 2015 e, um ano após, os imóveis, objetos destes embargos foram transferidos à propriedade da sociedade falida, "por mero ofício judicial"; que "a arrecadação somente poderá recair sobre os bens de propriedade do falido e sobre aqueles que estiverem em sua posse […], sendo que o domínio dos bens imóveis deve ser devidamente comprovado por certidões de registro expedidas após a decretação da falência"; que "eventuais bens imóveis cuja propriedade se encontre em nome de terceiros no momento da decretação da falência somente podem sofrer constrição judicial em decorrência de: (i) declaração de ineficácia (ineficácia objetiva, Lei nº 11.101/05, art. 129); (ii) ação revocatória (ineficácia subjetiva, Lei nº 11.101/05, art. 130); (iii) bens de sócios de sociedades de responsabilidade ilimitada (Lei nº 11.101/05, art. 81); e (iv) ação de responsabilização ou de integralização de sócios de responsabilidade limitada (Lei nº 11.101/05, art. 82)"; que, para a transferência dos apartamentos subscritos ao capital social para a propriedade da apelada, seria necessário o ajuizamento da ação de integralização, prevista no art. 82 da Lei nº 11.101/05, com observância do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, o que não ocorreu; que não se confundem a subscrição com a integralização de bens imóveis ao capital social da empresa. 


Defenderam que os imóveis estariam resguardados pelas benesses da Lei nº 8.009/90, "por três simples razões: primeira, porque o art. 3º da Lei nº 11.101/2005 não contempla nenhuma exceção ao direito vindicado pelos apelantes. […]; segunda, porque é evidente que os imóveis 'dados em garantia foram, de fato, revertidos em favor de terceiros', pelo simples fato de terem sido subscritos em aumento de capital social da sociedade falida (terceiro), sendo certo que é objetivo do capital social, dentre outros, a 'garantia de terceiros', credores da sociedade; terceira, a proteção legal conferida ao bem de família pela Lei nº 8.009/1990 é de ordem pública, irrenunciável e se refere a qualquer ato de constrição judicial, principalmente arrecadação em processo falimentar"; que "a farta documentação que instruiu a peça de ingresso […] demonstra que os imóveis arrecadados constituem a moradia das famílias […] há mais de 28, 18 e 31 anos."


Disseram que, quanto ao apartamento nº 501 do Edifício Iraci Ferreira da Cunha, situado na Rua Muzambinho, nº 159, Bairro Cruzeiro, não poderia ter sido arrecadado pelo Sr. Administrador Judicial, uma vez que "(I) a quota-parte de 80% da coproprietária e apelante Leyla Horta Vieira não podia ter sido transferida à sociedade falida Admédico porque não foi objeto de integralização na 11ª alteração contratual; (II) a quota-parte de 20% sobre o imóvel de propriedade da apelante Cássia Horta Vasconcelos não podia ter sido transferida, por maior razão, por falta de outorga conjugal do apelante William Fernandino Vasconcelos"; que "a jurisprudência se posiciona no sentido de que a impenhorabilidade da fração de imóvel indivisível contamina a totalidade do bem, impedindo sua alienação em hasta pública, pois a Lei nº 8.009/90 estabeleceu a impenhorabilidade do bem de família com o objetivo de assegurar o direito de moradia e garantir que o imóvel não seja retirado do domínio do beneficiário."


Por fim, destacaram as decisões colegiadas proferidas nos autos dos Agravos de Instrumento nº 1.0024.17.004173-5/001, nº 1.0024.15.050916-4/001 e nº 1.0024.17.004220-4/001.


Regularmente intimada, a embargada, doravante denominada apelada, apresentou as contrarrazões recursais de f. 434/449. 


Intervindo no feito, o ilustre Procurador de Justiça, Dr. Antônio César Mendes Martins, emitiu o parecer de f. 455/455-v., opinando pela confirmação da sentença.


Conheço do recurso de apelação, porquanto presentes os seus pressupostos de admissibilidade.


Do atento compulsar dos autos, verifica-se que os apelantes opuseram os presentes embargos de terceiro, pretendendo a exclusão dos bens imóveis listados à f. 25 do ato de arrecadação realizado pelo Sr. Administrador Judicial da apelada.


Em síntese, as questões recursais controvertidas gravitam ao redor das seguintes teses: 1ª) legitimidade dos apelantes Cayque Horta Vasconcelos, Bertha Horta Vasconcelos e Guilherme Horta Vieira para figurarem no polo processual ativo desta ação; 2ª) ausência de integralização dos bens imóveis ao capital social da empresa falida, o que tornaria necessário o ajuizamento da ação prevista no art. 82 da Lei nº 11.101/05; 3ª) proteção conferida pela Lei nº 8.009/90 aos bens imóveis; 4ª) ausência de subscrição da coproprietária do bem imóvel constituído pelo apartamento nº 501 do Edifício Iraci Ferreira da Cunha, situado na Rua Muzambinho, nº 159, Bairro Cruzeiro, nesta cidade.


Com referência ao primeiro ponto, vê-se que os apelantes Cayque Horta Vasconcelos, Bertha Horta Vasconcelos e Guilherme Horta Vieira sustentaram a sua legitimidade ativa, sob o fundamento de que residiriam nos imóveis arrecadados e que referidos bens estariam resguardados pelas benesses da Lei nº 8.009/90.


Relaciona-se a legitimidade ativa à titularidade do suposto direito, que a parte, sentindo-se lesada ou na iminência de sofrer uma lesão, comparece a juízo, pedindo que seja cessada a abusiva interferência, com a consequente proteção de sua posição jurídica.


A respeito da legitimidade, confira-se a lição de Daniel Amorim Assumpção Neves:


"Conforme tradicional lição doutrinária, a legitimidade para agir (legitimatio ad causam) é a pertinência subjetiva da demanda, ou, em outras palavras, é a situação prevista em lei que permite a um determinado sujeito propor a demanda judicial e a um determinado sujeito formar o polo passivo dessa demanda. A regra geral em termos de legitimidade, ao menos na tutela individual, é consagrada no art. 18 do novo CPC, ao prever que somente o titular do alegado direito pode pleitear em nome próprio o seu próprio interesse, consagrando a legitimação ordinária, com a ressalva de que o dispositivo legal somente se refere à legitimação ativa, mas é também aplicável para a legitimação passiva. A regra do sistema processual, ao menos no âmbito da tutela individual, é a legitimação ordinária, com o sujeito em nome próprio defendendo interesse próprio. Excepcionalmente admite-se que alguém em nome próprio litigue em defesa do interesse de terceiro, hipótese em que haverá legitimação extraordinária" (NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo CPC comentado. Editora Jus Podivm, 2016. p. 44). 


Especificamente para a hipótese dos autos, encerra o art. 674 do Código de Processo Civil:


“Art. 674. Quem, não sendo parte no processo, sofrer constrição ou ameaça de constrição sobre bens que possua ou sobre os quais tenha direito incompatível com o ato constritivo, poderá requerer seu desfazimento ou sua inibição por meio de embargos de terceiro.


§ 1º Os embargos podem ser de terceiro proprietário, inclusive fiduciário, ou possuidor.


§ 2º Considera-se terceiro, para ajuizamento dos embargos:


I – o cônjuge ou companheiro, quando defende a posse de bens próprios ou de sua meação, ressalvado o disposto no art. 843;


II – o adquirente de bens cuja constrição decorreu de decisão que declara a ineficácia da alienação realizada em fraude à execução;


III – quem sofre constrição judicial de seus bens por força de desconsideração da personalidade jurídica, de cujo incidente não fez parte;


IV – o credor com garantia real para obstar expropriação judicial do objeto de direito real de garantia, caso não tenha sido intimado, nos termos legais dos atos expropriatórios respectivos.”


Da análise do dito artigo, tem-se que, em regra, os embargos de terceiro devem ser opostos pelo proprietário e possuidor ou pelo possuidor do bem apreendido judicialmente.


Vê-se que os apelantes Cayque Horta Vasconcelos, Bertha Horta Vasconcelos e Guilherme Horta Vieira são filhos dos proprietários dos bens imóveis arrecadados e, nesse contexto, possuem direito indireto ao manejo dos embargos, por força de filiação, conforme posicionamento pacífico do Colendo Superior Tribunal de Justiça. A título de grata exemplificação, colacionase o seguinte julgado: 


“Recurso especial. Embargos de terceiro. Desconstituição da penhora do imóvel no qual residem os embargantes. Legitimidade ativa ad causam. Membros integrantes da entidade familiar. Nomeação à penhora do bem de família. Inexistência de renúncia ao benefício previsto na Lei nº 8.009/90. Medida cautelar. Efeito suspensivo a recurso especial. Julgamento deste. Perda de objeto. Prejudicialidade. Extinção do processo sem exame do mérito. – Os filhos da executada e de seu cônjuge têm legitimidade para a apresentação de embargos de terceiro, a fim de desconstituir penhora incidente sobre o imóvel no qual residem, pertencente a seus genitores, porquanto integrantes da entidade familiar a que visa proteger a Lei nº 8.009/90, existindo interesse em assegurar a habitação da família diante da omissão dos titulares do bem de família. Precedentes (REsp nº 345.933/RJ e nº 151.238/SP). – Esta Corte de Uniformização já decidiu no sentido de que a indicação do bem de família à penhora não implica renúncia ao benefício garantido pela Lei nº 8.009/90. Precedentes (REsp nº 526.460/RS, nº 684.587/TO, nº 208.963/PR e nº 759.745/SP). – Recurso conhecido e provido para julgar procedentes os embargos de terceiro, afastando a constrição incidente sobre o imóvel, invertendo-se o ônus da sucumbência, mantido o valor fixado na r. sentença. – Tendo sido julgado, nesta oportunidade, o presente recurso especial, a Medida Cautelar nº 2.739/PA perdeu o seu objeto, porquanto foi ajuizada, exclusivamente, para conferir-lhe efeito suspensivo. – Prejudicada a Medida Cautelar nº 2.739/PA, por perda de objeto, restando extinta, sem exame do mérito, nos termos do art. 808, III, c/c o art. 267, IV, ambos do CPC. Este acórdão deve ser trasladado àqueles autos” (REsp 511.023/PA, Rel. Ministro Jorge Scartezzini, Quarta Turma, j. em 18/8/2005, DJ de 12/9/2005, p. 333).


Portanto, não havia razão para que os apelantes Cayque Horta Vasconcelos, Bertha Horta Vasconcelos e Guilherme Horta Vieira fossem excluídos da lide, em virtude de pretensa ilegitimidade ativa, devendo, pois, ser reintegrados à ação.


Quanto ao imóvel constituído pelo apartamento nº 501 do Edifício Iraci Ferreira da Cunha, situado na Rua Muzambinho, nº 159, Bairro Cruzeiro, nesta cidade, esta colenda 4ª Câmara Cível, na sessão de julgamento do dia 4 de outubro de 2018, apreciou o Recurso de Apelação Cível nº 1.0024.17.004220-4/004, interposto contra a sentença proferida nos autos da ação anulatória ajuizada pelo apelante William Fernandino Vasconcelos em desfavor da apelada, na qual se discutia, justamente, a impossibilidade de arrecadação do referido bem, dada a ausência de outorga marital para a sua subscrição ao capital social da empresa falida pela apelante Cássia Horta Vasconcelos. Na oportunidade, entendeu-se pela nulidade do ato de subscrição, em acórdão que restou assim ementado:


“Apelação cível. Direito civil. Direito falimentar. Prejudicial de decadência rejeitada. Massa falida. Transferência de imóvel particular de cônjuge para integralização do capital social. Casamento sob o regime de comunhão parcial de bens. Necessidade de outorga conjugal. Art. 1.647, inciso I, do Código Civil. Invalidade do negócio jurídico. Anulação. – Nos moldes do art. 1.649 do Código Civil, ‘a falta de autorização, não suprida pelo juiz, quando necessária (art. 1.647), tornará anulável o ato praticado, podendo o outro cônjuge pleitear-lhe a anulação, até dois anos depois de terminada a sociedade conjugal’. Prejudicial de decadência rejeitada. – Ressalvada a obtenção de suprimento judicial, nenhum dos cônjuges poderá, sem a autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta, alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis, ainda que particulares. – É anulável o negócio jurídico praticado pela esposa, que transfere para a sociedade empresária, durante a constância do matrimônio, submetido ao regime de comunhão parcial de bens, sem a necessária concordância do marido, imóvel destinado à integralização do capital social.”.


Além do mais, emerge do documento de f. 80/82 que o imóvel acima descrito, registrado perante o 2º Ofício de Registro de Imóveis de Belo Horizonte, matriculado sob o nº 64.467, passou à titularidade da Sra. Cássia Horta Vieira e da Sra. Leyla Horta Vieira, na proporção respectiva de 20% e 80%, na data de 30 de dezembro de 2002.


Por seu turno, o documento de f. 63/67 evidencia que, em 9 de agosto de 2010, foi procedida a 11ª Alteração Contratual da sociedade Admédico Administração de Serviços Médicos a Empresa Ltda., constando, em sua cláusula segunda, alínea h, que a apelante Cássia Horta Vasconcelos subscreveu, para aumentar a sua participação, o aludido apartamento:


"h) R$ 400.000,00 (quatrocentos mil reais), equivalente a 400.000 (quatrocentas mil) quotas, representadas por apartamento situado na rua Muzambinho, nº 159, apt. 501, bairro Cruzeiro, Belo Horizonte/MG, […], com registro no 2º Ofício de Registro de Imóveis de Belo Horizonte/MG, sob o nº 64467, no livro 2, de propriedade da quotista Cássia Horta Vasconcelos".


Assim, o negócio jurídico seria nulo não apenas pela ausência de outorga marital, mas também porque a apelante Cássia Horta Vasconcelos subscreveu a integralidade do apartamento ao capital social da empresa falida, sem a anuência da coproprietária, a apelante Leyla Horta Vieira.


No que toca ao suposto desrespeito ao princípio constitucional do devido processo legal para fins de transferência dos bens imóveis subscritos pelos apelantes na 11ª alteração contratual ao capital social da empresa falida, é preciso que se diferenciem, para melhor compreensão do tema, os institutos jurídicos da "subscrição" e da "integralização".


A subscrição é a manifestação de vontade emitida pelo sócio, pelo qual se compromete à transferência de bens e valores para a formação do capital social da empresa, ao passo que a integralização é a efetiva transferência dos aludidos bens e valores ao capital social da empresa.


Dissertando sobre o assunto, a lição de Marcelo M. Bertoldi e Márcia Carla Pereira Ribeiro:


"Os deveres fundamentais dos sócios são o dever de contribuir para a integralização do capital social e o dever de lealdade e cooperação recíproca. Quando da constituição da sociedade, deve obrigatoriamente ficar estabelecido o montante da contribuição de cada sócio. Este montante não precisa necessariamente ser igual para todos eles, existindo a possibilidade de uns contribuírem com parcela maior e outros com parcela menor, guardando-se sempre uma proporção entre o valor da contribuição do sócio e a quantidade de quotas ou ações a ele atribuídas. Após a subscrição do capital social, ou seja, após os sócios se comprometerem perante a sociedade a contribuir com determinada quantia em dinheiro ou com a entrega de determinado bem para a integralização do capital social, se qualquer deles deixar de fazê-lo no modo e tempo combinado, terá a sociedade duas alternativas a seu dispor: executar o sócio inadimplente ou excluí-lo da sociedade. Nos termos do art. 1.004 do CC, o sócio inadimplente que se comprometeu a contribuir com bens para a integralização do capital social será demandado judicialmente para a entrega compulsória do bem prometido, arcando ainda com possíveis perdas e danos advindos da mora. 


Por outro lado, consistindo em dinheiro a integralização, além do principal, o sócio inadimplente deverá arcar com a correção monetária até a data do pagamento e de juros moratórios contados a partir da notificação. Caso os demais sócios entendam por bem não exigir judicialmente o adimplemento do sócio remisso, considerando indesejada a sua permanência na sociedade, poderão excluí-lo dos quadros sociais" (BERTOLDI, Marcelo M.; RIBEIRO, Márcia Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. 4. ed. Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 166-167).


Portanto, em um primeiro momento, o sócio subscreve o capital social, comprometendo-se à transferência de bens ou valores; em um momento posterior, o sócio, cumprindo a sua obrigação, transfere, efetivamente, os bens e valores prometidos, integralizando o capital social da empresa.


No caso em apreço, o documento de f. 63/67 aponta que os apelantes, por meio da cláusula segunda da 11ª Alteração Contratual da apelada, optaram pelo aumento do capital social, mediante a subscrição de valores e bens imóveis. No entanto, os imóveis não chegaram a integralizar o capital social, apenas o fazendo após a decretação da falência da empresa, por ato judicial.


Exige a Lei nº 11.101/05 que, em tais casos, seja apurada a responsabilidade pessoal dos sócios de responsabilidade limitada, mediante o ajuizamento de ação própria e autônoma, que tramitará perante o juízo da falência e observará o procedimento ordinário. É o que determina o art. 82 do diploma legal em comento:


“Art. 82. A responsabilidade pessoal dos sócios de responsabilidade limitada, dos controladores e dos administradores da sociedade falida, estabelecida nas respectivas leis, será apurada no próprio juízo da falência, independentemente da realização do ativo e da prova da sua insuficiência para cobrir o passivo, observado o procedimento ordinário previsto no Código de Processo Civil.


§ 1º Prescreverá em 2 (dois) anos, contados do trânsito em julgado da sentença de encerramento da falência, a ação de responsabilização prevista no caput deste artigo.


§ 2º O juiz poderá, de ofício ou mediante requerimento das partes interessadas, ordenar a indisponibilidade de bens particulares dos réus, em quantidade compatível com o dano provocado, até o julgamento da ação de responsabilização.”.


Ora, a transferência de bens de propriedade dos sócios de responsabilidade limitada à massa falida, sem que seja instaurada, previamente, a ação de responsabilização disciplinada pelo art. 82 da Lei nº 11.101/05, importa em desrespeito aos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, estando o ato, pois, eivado de nulidade.


Vale dizer: apenas se apuradas condutas pessoais dos sócios, identificadoras de dolo ou culpa na gestão que fulminou a empresa, é que poderão ser atingidos os seus bens, para fins de satisfação dos credores da massa.


Por fim, passa-se à questão da impenhorabilidade dos bens imóveis, por estarem supostamente resguardados pela proteção conferida pela Lei nº 8.009/90.


O aludido diploma legal, em seu art. 1º, estabelece o regramento geral, segundo o qual "o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei".


As hipóteses excepcionais, por seu turno, encontram-se listadas nos arts. 3º e 4º da lei em comento.


Não é demais destacar que, nos moldes do art. 5º da Lei nº 8.009/90, "para os efeitos de impenhorabilidade, de que trata esta lei, considera-se residência um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente". E arremata o parágrafo único: "Na hipótese de o casal, ou entidade familiar, ser possuidor de vários imóveis utilizados como residência, a impenhorabilidade recairá sobre o de menor valor, salvo se outro tiver sido registrado, para esse fim, no Registro de Imóveis e na forma do art. 70 do Código Civil".


Certo é que, quando do julgamento do Agravo de Instrumento nº 1.0024.17.004173-5/001, a questão foi analisada, restando assentado que os apelantes, realmente, residiam nos bens imóveis arrecadados pelo Sr. Administrador Judicial.


Dessa forma, constituindo os imóveis bem de família e, por conseguinte, abarcados pela proteção legal conferida pela Lei nº 8.009/90, não poderiam ser arrecadados pelo Sr. Administrador Judicial, conforme expressa previsão contida no art. 108, § 4º, da Lei nº 11.101/05:


“Art. 108. Ato contínuo à assinatura do termo de compromisso, o administrador judicial efetuará a arrecadação dos bens e documentos e a avaliação dos bens, separadamente ou em bloco, no local em que se encontrem, requerendo ao juiz, para esses fins, as medidas necessárias.


[…]


§ 4º Não serão arrecadados os bens absolutamente impenhoráveis.”


Ainda que se tentasse enquadrar a subscrição dos bens imóveis à exceção trazida pelo inciso V do art. 3º da Lei nº 8.009/90, tal não seria possível, pois, como entendido pelo colendo Superior Tribunal de Justiça, as hipóteses excepcionais são taxativas e não comportam interpretação extensiva. Vejam-se, a propósito, os seguintes julgados:


“Agravo interno no agravo em recurso especial. Processual civil. Embargos de terceiro. Penhora anterior ao casamento do devedor. Imóvel em que residem a esposa e os filhos. Bem de família. Impenhorabilidade. Exceções. Rol taxativo. Lei nº 8.009/90 (arts. 1º e 3º). Agravo provido. – As hipóteses de exceção à regra da impenhorabilidade do bem de família são taxativas, não comportando interpretação extensiva. – O imóvel em que residem os recorrentes, esposa e filhos do devedor, deve ser objeto de proteção pelo sistema jurídico, não sendo lícito impor à futura esposa o ônus de diligenciar sobre a existência de eventual constrição de imóvel do futuro esposo, como condição para a obtenção de direito à proteção legal, cuja eficácia apenas admite restrição prevista em lei. Ademais, os filhos do devedor têm também direito, eles mesmos, à proteção conferida ao bem de família, que se estende à entidade familiar em seu sentido mais amplo. – Se é certo que a proteção legal pode desdobrar-se em múltiplos eventos, para alcançar ambos os cônjuges em caso de separação ou divórcio, assim como o novo lar por eles constituído, com mais razão deve-se admitir que a proteção legal alcance a entidade familiar única, ainda que constituída posteriormente à realização da penhora, porquanto tal fato não se mostra relevante aos olhos da lei, que se destina à proteção da família em seu sentido mais amplo. – Agravo interno provido para conhecer do agravo e dar provimento ao recurso especial” (AgInt no AREsp 1158338/SP, Rel. Ministro Lázaro Guimarães (Desembargador convocado do TRF 5ª região), Quarta Turma, j. em 14/8/2018, DJe de 22/8/2018).


“Processo civil. Direito civil. Recurso especial. Art 462 do CPC. Direito superveniente. Error in procedendo. Execução de título executivo judicial civil decorrente da prática de ato ilícito. Penhora de bem de família. Lei nº 8.009/1990. Interpretação estrita. Violação do art. 535 do CPC não configurada. – Não ocorre violação ao art. 535 do Código de Processo Civil quando o Juízo, embora de forma sucinta, aprecia fundamentadamente todas as questões relevantes ao deslinde do feito, apenas adotando fundamentos divergentes da pretensão do recorrente. Precedentes. – O acórdão prolatado em agravo de instrumento torna preclusa a questão decidida, sendo certo que a preclusão é um fenômeno endoprocessual, ou seja, somente diz respeito ao processo em curso e às suas partes, não alcançando direito de terceiro, da mesma forma que nem sempre terá repercussões para as próprias partes em outros processos nos quais a mesma questão venha a ser incidentalmente tratada. – No caso em apreço, a toda evidência, verifica-se a existência de dois processos, os quais têm partes distintas – o executivo, em que figuram o condomínio e o cônjuge da recorrente, e o de embargos de terceiro, cuja relação jurídico-processual tem como atores o mesmo condomínio e a esposa ora recorrente, por isso não se há falar em coisa julgada. – É dever do magistrado, no momento de proferir a sentença, levar em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, a superveniência de fato ou direito novo, nos termos do art. 462 do CPC, incorrendo em error in procedendo o Tribunal que, ignorando tal providência, prolata acórdão que dá ensejo à coexistência de duas decisões inconciliáveis – uma no processo de execução, determinando a impenhorabilidade do bem de família, e outra nos embargos, estabelecendo a possibilidade de excussão desse mesmo bem. – Ademais, a Lei nº 8.009/1990 ostenta natureza excepcional, de modo que as exceções à regra geral da impenhorabilidade do bem de família são previstas de forma taxativa, sendo insuscetíveis de interpretação extensiva. Precedentes. – Recurso especial provido” (REsp 1074838/SP, Rel. Ministro Luís Felipe Salomão, Quarta Turma, j. em 23/10/2012, DJe de 30/10/2012).


Com efeito, sob qualquer ângulo em que se aprecie a questão posta nestes autos, a conclusão a que se chega é a de que os imóveis descritos à f. 25 não poderiam ser transferidos ao domínio da massa falida.


Diante do exposto, dou provimento ao recurso de apelação, para reformar a sentença e julgar procedente o pedido inicial, para:


I) tornar sem efeito e determinar o cancelamento das averbações de transferências de propriedade dos bens imóveis dos apelantes para a sociedade falida, ora apelada, junto ao 2º Cartório de Registro de Imóveis desta Comarca, matrículas nº 55.325, nº 38.380 e nº 64.467, livro 02;


II) reconhecer a natureza de bem de família dos bens imóveis e, por consequência, insuscetíveis de arrecadação pelo Sr. Administrador Judicial.


Condeno a apelada ao pagamento das custas processuais e dos honorários advocatícios de sucumbência, que arbitro, já considerada a atuação recursal, em 15% (quinze por cento) do valor atualizado atribuído à causa, restando, contudo, suspensa a exigibilidade de seu recolhimento, por estar amparada pelos benefícios da justiça gratuita, considerando a sua situação econômica de insolvabilidade.


Votaram de acordo com a Relatora os Desembargadores Renato Dresch e Moreira Diniz.


Súmula – DERAM PROVIMENTO AO RECURSO DE APELAÇÃO.

 

 

Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico – MG