Por Cassia Proença Dahlke
Introdução
A Constituição Federal de 1988 positivou no ordenamento jurídico brasileiro o princípio da dignidade humana, instrumentalizado pela solidariedade, como garantidor dos direitos fundamentais. Tal valoração impõe à sociedade brasileira o dever de promover a inclusão de todos os brasileiros em um contexto que permita a efetiva fruição destes direitos. Este contexto é materializado por um atributo jurídico que se chama cidadania, estabelecido como um dos fundamentos da República pela Constituição de 1988.
No entanto, a compreensão do conceito de cidadania ainda é precária. Apesar da incorporação constitucional do atributo, ele ainda não foi efetivado junto à população brasileira. A incompreensão reverbera a exclusão de muitos brasileiros do direito a uma cidadania plena, legítima e que os integre na sociedade. Uma das causas desta exclusão é a inequidade do acesso às formas jurídicas de reconhecimento por parte do Estado. Neste sentido, como uma das formas de proporcionar a cidadania, reveste-se de importância a atividade do Registro Civil.
De fato, os serviços notariais e de registros possuem atribuições específicas e essenciais no sentido de proporcionar segurança jurídica, eficácia e efetividade a vários aspectos da vida das pessoas, imprimindo certeza e garantia às relações jurídicas públicas e privadas, permitindo registros oficiais de sua existência e de de todos os atos com que se insere na sociedade.
O registro civil da pessoas naturais tem como foco o registro e proteção das pessoas, conferindo publicidade de fatos e negócios jurídicos inerentes à pessoa física, desde o seu nascimento até sua morte, tendo em vista que tais fatos e atos repercutem não apenas na esfera do indivíduo, mas também interessam a toda a sociedade.
No presente artigo, abordar-se-á, de modo sumário, o histórico do Registro Civil no Brasil, bem como o conceito e valor jurídico da cidadania, e finalmente, o contexto atual do Registro Civil como Ofícios da Cidadania, servindo como importante instrumento de acesso à cidadania, que por sua vez garante a todos os brasileiros a fruição dos direitos fundamentais tutelados pelo Estado.
Breve panorama histórico do registro civil
Os serviços notariais e registrais são instituições pré-jurídicas, pois existem antes mesmo do próprio Estado. Desta forma, pode-se inferir que o serviço notarial e registral é da própria natureza da pessoa humana. Os registros públicos, especialmente o Registro Civil, constitui-se da história de vida das pessoas, das famílías, daí a relação dessa especialidade registral com a dignidade da pessoa humana, não sendo exagero afirmar que a sociedade poderia viver sem Foros, mas não sem um Registro Civil.
O primeiro esboço de registro laico no Brasil data de 1851, quando foi editado o decreto 586, que ao regulamentar o § 3º do artigo 17 da lei 586, de 6 de setembro de 1850, determinou que escrivães civis passassem a registrar os nascimentos e óbitos, a contar de 1º de Janeiro de 1852. Em imediata sequência, o primeiro regulamento de registro civil surgiu pelo decreto 798, de 18 de janeiro de 1852, cujas disposições são semelhantes às da atual Lei de Registros Públicos, tratando, inclusive, dos nascimentos e óbitos de escravos (PANCIONI, 2017). No entanto, embora promulgado, a vigência do decreto foi adiada, e o mesmo permaneceu sem data para entrar em vigor.
A influência da Igreja Católica sobre o sistema registral prevaleceu até o fim do regime monárquico, mas seu poder foi sendo solapado pela ascensão dos movimentos positivistas e republicanos que culminaram com o fim do regime. Já no período final do Império (7 de março de 1888), foi editado o decreto 9.886, segundo o qual a partir de 1º de janeiro de 1889 o regulamento de 1852 passaria finalmente a vigorar, cabendo exclusivamente ao registro civil o registro de nascimentos, óbitos e casamentos.
Também cabe lembrar que, além do atendimento direto ao cidadão, os Registros Civis proporcionam a diversos órgãos públicos um sem número de informações relevantes para produção estatística, gerenciamento de dados e otimização de vários sistemas de órgãos públicos como IBGE, Seade, INSS, Justiça Eleitoral, Ministério da Justiça, Ministério da Defesa, Secretaria Estadual da Fazenda e Institutos de Identificação (ARPEN, 2020).
Os Cartórios de Registro Civil são, portanto, como um braço do Estado junto à população, muitas vezes servindo como porta de entrada para o acesso a direitos fundamentais, através da concessão de documentos que o habilitem ao exercício da cidadania (RICCI; SILVA, 2019).
Nos últimos anos, estas serventias tem buscado a integração com as inovações tecnológicas, com o objetivo de proporcionar maior agilidade e confiabilidade, como a criação Portais de Serviços Eletrônicos Compartilhados, que permitem a localização eletrônica de registros e a expedição de segundas vias de certidões digitais por cartórios, possibilitando a interligação estadual e nacional (ARPEN, 2020).
Por fim, cabe lembrar que com a promulgação da lei 13.484, de 26 de setembro de 2017, definiu-se que Registros Civis das Pessoas Naturais podem exercer a função de “Ofícios da Cidadania”.
O bem jurídico fundamental da cidadania
Na Constituição de 1988, o conceito de cidadania passa a ser reconhecido como fundamento da República, desde o seu artigo 1º. De fato, o entusiasmo gerado pela proclamação da carta, impulsionado pelo longo período de abstinência de uma plena participação política e pela percepção de que a redemocratização traria um horizonte de realizações sociais ao país levou inclusive à popularização do termo “Constituição Cidadã” conferido à norma.
Para Fagnani (2017), a partir da Constituição de 1988, de fato se iniciou um ciclo de construção de cidadania social, mediado por novas políticas de proteção social, mas na visão do autor a falta de vontade política, bem como reformas restritivas da legislação, podem ter paralisado o processo. Além disso, o cenário instalado no primeiro semestre de 2020, com a eclosão da pandemia de CoVid-19 no mundo e, de modo particularmente, no Brasil, desvelou falhas gritantes na promoção de cidadania; tais como a inequidade de acesso aos serviços de saúde e de medidas de proteção social.
Particularmente marcantes foram as dificuldades de acesso aos benefícios financeiros emergenciais por ausência de documentação ou fidedignidade de registro público (DOCA, 2020). Do mesmo modo, estrangeiros que habitam o território nacional viram-se em situação de extrema vulnerabilidade por eventuais ausências ou incorreções de CPF e de Registro Nacional de Estrangeiro.
Vive-se, portanto, um dilema: por um lado, o ordenamento jurídico pátrio legitima e impõe a constante busca da cidadania plena; por outro a realidade política e econômica extremamente convoluta das últimas décadas dificulta sobremaneira que se atinja este objetivo. Mas, como se demonstrará no tópico posterior, existem alternativas viáveis ao alcance de todos.
Demonstrada a relevância da cidadania plena para o indivíduo, enquanto destinatário da proteção a seus direitos fundamentais, cabe ressaltar que a cidadania outorgada, legitimada, controlada e conferida pelo Estado se expressa materialmente por meio de uma série de documentos, cujo registro e posse são fundamentais para o exercício deste atributo, e serão o objeto do tópico seguinte.
O registro civil como ofício da cidadania
Na sociedade contemporânea, observa-se um reconhecimento crescente do papel de serventias extrajudiciais no propósito de evitar litígios ou facilitar a sua solução, através da utilização de mecanismos privados e informais de solução de demandas (desjudicialização). Em sua teoria das ondas de acesso à justiça, os juristas Cappelletti e Garth caracterizaram o processo como “terceira onda”.
No paradigma da “terceira onda”, inserem-se com perfeição as atividades prestadas pelos Cartórios do Brasil, pelo conjunto de serviços extrajudiciais que estes são capazes de oferecer com grande eficiência e em defesa da cidadania.
Tomem-se os registros civis, por exemplo: uma pessoa sem registro de nascimento não existe para o mundo jurídico, e por consequência sofre restrição para o livre exercício de sua cidadania. Do mesmo modo, a simples ausência de um registro de casamento ou de óbito de um familiar dificulta a efetivação de direitos fundamentais constitucionalmente protegidos.
De fato, a distribuição dos registros de pessoas naturais é uma das mais capilarizadas do Brasil: a nação possui, em 2020, 5.770 municípios,1 e 13.210 cartórios2, dos quais 7.674 são serventias de Registro Civil3. Ainda que esta distribuição não seja uniforme nem tampouco equânime, é possível afirmar que, em um país de dimensões continentais como o Brasil, os serviços cartoriais são uma das instituições mais acessíveis à população.
O primeiro registro a que a pessoa natural é submetida é o registro de nascimento, que é considerado o documento básico ou matriz, do qual se originam todos os demais. Todavia, um registro civil de nascimento ou de casamento, embora indispensável para prover o mínimo de cidadania, não é o único documento necessário para o exercício pleno deste atributo.
A mera benesse das certidões de atos da vida civil não tem o condão de tornar o indivíduo um cidadão pleno. Por esta razão, em 26 de setembro de 2017, foi promulgada a lei 13.484/2017, a qual ampliou a competência e serviços que possam ser prestados pelos Cartórios de Registro Civil, alterando a lei 6.015/73.
A referida Lei tornou os serviços de Registro Civil das Pessoas Naturais, portanto, Ofícios da Cidadania. Esta nomenclatura não é demagógica, nem tampouco apenas formal. Como demonstrado no tópico anterior, a cidadania plena e universal que a Constituição de 1988 busca estender a todos os brasileiros depende da instrumentalização de institutos básicos de reconhecimento social, como os registros aludidos.
Ao tornar-se Ofício de Cidadania, o Cartório de Registro Civil passa a poder emitir documentos que antes eram feitos apenas em órgãos públicos, como Registro Geral (RG), Cadastro de Pessoa Física (CPF), Carteira Nacional de Habilitação (CNH), Carteira de Trabalho, entre outros que venham a ser conveniados (GENTIL, 2020).
A atuação do Registro Civil como Ofícios da Cidadania se faz notar inclusive na solução das demandas surgidas em função da pandemia de CoVid-19: as irregularidades no Cadastro de Pessoa Física que dificultavam o acesso aos benefícios de caráter emergencial (prejuízo ao gozo da cidadania) passaram a poder ser resolvidas diretamente nos cartórios a partir de julho de 2020, primeiramente no Estado de São Paulo e posteriormente com previsão de expansão para as demais unidades da federação (BRASIL, 2020).
A criação dos Ofícios da Cidadania transformou a percepção da população do sistema notarial e registral. O indivíduo que percebia os “cartórios” como instituições burocráticas e ultrapassadas, hoje os percebe como uma solução simples e extrajudicial para resolução de óbices que anteriormente lhes pareciam insolúveis.
Conclusão
A estrada trilhada, no viés contemporâneo de cidadania, é aquela que se dedica a olhar para os excluídos, àqueles para os quais nem sempre os preceitos constitucionais se materializam, àqueles que nem sempre logram acesso ao Judiciário para a tutela de seus direitos fundamentais.
E ao trilhá-la, não há como negar que encontra destaque a atuação dos Ofícios de Registro Civil.
De fato, os Oficiais de Registro Civil vem ocupando um relevante papel, dado que o acesso a direitos fundamentais foi negligenciado por séculos, herança do modelo colonialista sobre o qual se assentou o Império e, posteriormente, a República.
Muitos direitos assegurados, em tese, pelos princípios e valores positivados na Constituição, necessitam ser concretizados – na maior parte das vezes, através do Judiciário, mas com relevante destaque para a possibilidade oferecida pelas serventias de Registro Civil.
Referências
ARPEN BRASIL. Arpen-Brasil: 20 anos trabalhando pela dignidade do Registro Civil brasileiro. Disponível aqui, acesso em 16 de julho de 2020.
DOCA, Geralda. Receita alerta para dificuldades no acesso ao aplicativo da Caixa para requerer o auxílio emergencial. O Globo Economia (online). Disponível aqui, acesso em 08.07.2020.
FAGNANI, Eduardo. O fim do breve ciclo da cidadania social no Brasil (1988-2015). Campinas, Instituto de Economia UNICAMP, 2017. Disponível aqui, acesso em 08.07.2020.
GENTIL, Alberto. Registros Públicos. São Paulo, Editora Método, 2020.
PANCIONI, André Luiz. Gratuidade do Reistro de Nascimento aos Pobres: direito fundamental e forma de inclusão social. Dissertação de Mestrado, Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito. Bauru, 2017.
RICCI, Erwin Rodrigues; SILVA, Juvêncio Borges. Ofícios da Cidadania nos Cartórios de Registro Civil como Forma de Concreção dos Direitos Fundamentais à Cidadania e Nacionalidade. Anais do Congresso Brasileiro de Processo Coletivo e Cidadania, n. 7, Out/2019, p.136-152.
*Cassia Proença Dahlke é oficial de Registro Civil no Estado de São Paulo, mestre em Direito.
Fonte: Migalhas
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