“Uma hora. Isto é tudo que leva para remover, após a resposta à sua denúncia, as imagens da vítima”. Estampada em letras garrafais na página principal do que se constituiu hoje, internacionalmente, como um dos maiores canais de denúncia de pornografia infantil[1] em termos de volume mundial, a Internet Watch Foundation (IWF) lançou, junto com esta campanha de denúncia baseada no impacto de uma notificação deste tipo, uma proposta que ecoou mundo afora: Os ingleses abririam, pela primeira vez, um canal exclusivo de comunicação que permitiria às vítimas de pornografia infantil enviarem diretamente seus materiais aos responsáveis por removê-los da Internet.
A proposta da IWF é a seguinte: Em observando uma tendência crescente na quantidade de materiais de pornografia infantil autoproduzidos (selfies em câmeras de celular, por exemplo) reportado aos analistas ingleses (só em 2020 foram reportados – excluídos, portanto, os materiais ainda não encontrados – cerca de 68.000[2] conteúdos de pornografia infantil nessa condição), a hotline inglesa se lançaria em tutela da vítima: Envie-me o material, a IWF o hasheará (atribuirá a este um identificador alfanumérico) e o conteúdo entrará nas listas de detecção automática de grandes plataformas como Facebook, Instagram, Google e outros.
A IWF toca aqui, com uma proposta deste tipo, um ponto nevrálgico do problema: Os materiais autoproduzidos são originários, não raro, em plataformas protegidas por criptografia de ponta a ponta (como, por exemplo, o Whatsapp). Em assim sendo, é bastante difícil – se não quase impossível no estado atual da técnica: veja a discussão entorno dos detectores da Apple – acessar, de maneira rápida, os materiais autoproduzidos: Por serem conteúdos novos (isto é, ainda não vistos pelos canais de denúncia e polícias e, portanto, sem os identificadores alfanuméricos), muitas plataformas simplesmente, ainda quando as coisas estão ainda sem qualquer proteção criptográfica, não o enxergam.
One hour – that’s all it can take to remove victims’ images after responding to your report – Internet Watch Foundation
Os ingleses captaram, de maneira extraordinariamente rápida, a questão: A fim de proteger a vítima em crimes de pornografia infantil – a qual vive em uma constante ansiedade com relação à pergunta de se as imagens estão em algum lugar ou não – é necessário hashear essas imagens o mais rápido possível. E, em assim sendo, é necessário criar um canal de comunicação direto com as vítimas. Não apague os materiais: Traga-o à IWF, que as hotlines vão hashear, antes mesmo destas imagens serem publicadas, este material. E, se em algum lugar estas fotos e vídeos foram postados, os leões digitais vão rugir alto: Dentro das corporações americanas, estes “achados” são encaminhados para posterior apreciação pelas polícias.
Qual é, então, o problema exato do Reino Unido? Que, apesar da estratégia brilhante encontrada pelos seus canais de denúncia, provar a idade da vítima é ainda um novelo que a IWF não conseguiu desenrolar.
Eis a proposta brasileira: Chamar, nesta luta contra a pornografia infantil, também os cartórios de uma maneira geral. Os cartórios de registro são, por fim, os capazes de comprovar, por certidão ou consulta digital, revestida fé pública, a idade da vítima. Na mão dos tabeliães, todavia, a ata notarial tem – se alguma vez conseguir abandonar a perspectiva exclusivamente civilista que foi erguida no entorno desta – a arquitetura ideal para resolver, à nível internacional e através de um instrumento nacional, o desespero vivido pelas vítimas brasileiras em crimes de pornografia infantil.
A ata notarial tem, é verdade, o poder de identificar, através de um valor de hash, uma imagem de pornografia infantil. E, mais ainda, em plataformas encriptadas – se as vítimas puderem, por fim, chegar até os tabeliães. Os tabeliães de notas, familiarizados como ninguém com as descrições, são capazes de descrever em um instrumento de fé pública a característica do material e atribuir a ele um valor alfanumérico – um documento que, de maneira revolucionária, pode ser simplesmente anexado à um canal de denúncia a fim de pedir: Remova-o, se por vez encontrá-lo.
Uma ata notarial em matéria de pornografia infantil (conforme se propõe) não precisa contar um arquivo de pornografia infantil: basta o hash e a descrição do arquivo. Uma ata notarial em tempos de proteção de dados e ciente da necessidade de proteger essa vítima não precisa conter o nome desta, nem sua imagem: basta que os registradores confirmem a idade da vítima por meio da consulta da CRC (Central do Registro Civil).
Por ser pública, a ata notarial feita no Brasil pode ser acessada no Reino Unido: Foi lavrada por um oficial nacional que detém fé pública. Assim, convoca-se os cartórios nesta luta contra a pornografia infantil, e do lado da vítima: Propõe-se, pela primeira vez então, alavratura de uma ata notarial em matéria de pornografia infantil.
Um oficial público, com um múnus público, exercendo um poder de justiça pública em prol das vítimas de pornografia infantil. Introduz-se assim a proposta brasileira. É por meio de uma ata notarial lavrada conforme o modelo proposto, o Brasil conseguiria – pela primeira vez- alçar uma tutela internacional das vítimas também brasileiras.
Os arquivos de pornografia infantil, vistos, descritos, com seus os valores de hash extraídos erefletidas, posteriormente, em um formato puramente textual por um tabelionato de notas brasileiro em um documento de fé pública seria, por fim, o pedido de ajuda que as vítimas brasileiras levariam, via e-mail, aos canais de denúncia internacional.
A ata notarial tem o poder de chegar, rapidamente, às bases de dados internacionais – cujos analistas ingleses, belgas, canadenses, brasileiros – qualquer nacionalidade que seja! – Terão finalmente uma base jurídica mais estável para incluir, lastreados pela fé pública do tabelião brasileiro, estehash de pornografia infantil brasileira nas bases de dados que sustentam hoje o algoritmo de remoção e detecção automática de conteúdos ilegais das grandes corporações. Uma ata notarial, que tem o poder de tutelar, finalmente, as vítimas de pornografia infantil no Brasil.
Carolina Christofoletti
Bacharela em Direito pela USP, Mestranda em Criminalidade Cibernética (Universidad de Nebrija) e Compliance Criminal (UCLM). Legal Fellow na International Justice Mission (IJM) Filipinas. Chefe da Unidade sobre Materiais de Abuso Sexual Infantil pela Anti-HumanTraffickingIntelligenceInitiative(ATII), advogada e consultora.
Thomas Nosch Gonçalves
Mestre em Direito pela USP, especialista em direito civil pela USP e em direito notarial e registral pela EPM, ex-advogado e atualmente Registrador Civil e Tabelião de Notas do Distrito de Cachoeira de Emas, Município de Pirassununga em São Paulo.
[1] Em observância a terminologia sugerida pela ECPAT, a nomenclatura correta é Materiais de Abuso Sexual Infantil. Não obstante, a fim de manter consistente a terminologia legal empregada no país, refere-se ainda à estes materiais como sendo materiais de pornografia infantil – fazendo, porém, a devida ressalva terminológica.
[2] The Annual Report 2020. Internet Watch Foundation. Self-generated Child Sexual Abuse. Acessado em: 27 de setembro de 2020. Disponível em: https://annualreport2020.iwf.org.uk/trends/international/selfgenerated
Fonte: IBDFAM