Artigo – O que mudou com a Lei 14.382/2022 no que se refere à Usucapião Extrajudicial: a impugnação injustificada

* Ana Clara Amaral Arantes Boczar

** Carlos Rogério de Oliveira Londe

*** Daniela Bolivar Moreira Chagas

**** Letícia Franco Maculan Assumpção

A Lei de Registros Públicos – LRP, ao tratar da usucapião extrajudicial, disciplina o procedimento quando há impugnação ao pedido. A redação original, dada pela Lei 13.105/2015, determinava que, havendo impugnação, o Registrador de Imóveis deveria remeter os autos ao juízo competente, pois a partir de então o procedimento deveria ser obrigatoriamente judicial, cabendo ao requerente emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum.

O legislador, no entanto, entendeu que somente a impugnação “justificada” poderia afastar a via extrajudicial. De fato, a nova redação decorrente da Lei 14.382/2022 estabelece que o Oficial de Registro de Imóveis deve inadmitir a impugnação injustificada, cabendo ao interessado suscitar dúvida em face da decisão do Registrador, nos termos do art. 198 da Lei de Registros Públicos.

Para facilitar a análise, abaixo se reproduz o § 10 do art. 216-A da LRP na redação original e na redação atual:

Redação original dada pela Lei 13.105/2015  Redação dada pela Lei 14.382/2022  
§ 10. Em caso de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, apresentada por qualquer um dos titulares de direito reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, por algum dos entes públicos ou por algum terceiro interessado, o oficial de registro de imóveis remeterá os autos ao juízo competente da comarca da situação do imóvel, cabendo ao requerente emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum.    § 10. Em caso de impugnação justificada do pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, o oficial de registro de imóveis remeterá os autos ao juízo competente da comarca da situação do imóvel, cabendo ao requerente emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum, porém, em caso de impugnação injustificada, esta não será admitida pelo registrador, cabendo ao interessado o manejo da suscitação de dúvida nos moldes do art. 198 desta Lei.    

A pergunta que se faz é: o que seria impugnação injustificada? A resposta não consta da Lei de Registros Públicos nem do Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça – Foro Extrajudicial (CNN/ CN/CNJ-Extra)[1]. Aliás, o CNN está desatualizado em relação à nova redação da LRP, pois ainda estabelece o seguinte:

Art. 411. A existência de ônus real ou de gravame na matrícula do imóvel usucapiendo não impedirá o reconhecimento extrajudicial da usucapião.

Parágrafo único. A impugnação do titular do direito previsto no caput poderá ser objeto de conciliação ou mediação pelo registrador. Não sendo frutífera, a impugnação impedirá o reconhecimento da usucapião pela via extrajudicial.

Art. 412. Estando o requerimento regularmente instruído com todos os documentos exigidos, o oficial de registro de imóveis dará ciência à União, ao Estado, ao Distrito Federal ou ao Município pessoalmente, por intermédio do oficial de registro de títulos e documentos ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestação sobre o pedido no prazo de 15 dias.

§ 1.º A inércia dos órgãos públicos diante da notificação de que trata este artigo não impedirá o regular andamento do procedimento nem o eventual reconhecimento extrajudicial da usucapião.

§ 2.º Será admitida a manifestação do Poder Público em qualquer fase do procedimento.

§ 3.º Apresentada qualquer ressalva, óbice ou oposição dos entes públicos mencionados, o procedimento extrajudicial deverá ser encerrado e enviado ao juízo competente para o rito judicial da usucapião.

[…]

Art. 415. Em caso de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial da usucapião apresentada por qualquer dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes, por ente público ou por terceiro interessado, o oficial de registro de imóveis tentará promover a conciliação ou a mediação entre as partes interessadas.

§ 1.º Sendo infrutífera a conciliação ou a mediação mencionada no caput deste artigo, persistindo a impugnação, o oficial de registro de imóveis lavrará relatório circunstanciado de todo o processamento da usucapião.

§ 2.º O oficial de registro de imóveis entregará os autos do pedido da usucapião ao requerente, acompanhados do relatório circunstanciado, mediante recibo.

§ 3.º A parte requerente poderá emendar a petição inicial, adequando-a ao procedimento judicial e apresentá-la ao juízo competente da comarca de localização do imóvel usucapiendo. (sem grifos no original)

Apesar de o Código de Normas Nacional estar desatualizado, não há dúvida de que a norma constante do § 10 do art. 216-A da LRP entrou em vigor em 28/06/2022, data da publicação da Lei 14.382, conforme art. 21 da referida lei, razão pela qual é preciso definir o que é impugnação injustificada ao pedido de usucapião extrajudicial.

Em Minas Gerais o Código de Normas estadual[2]  ainda não foi alterado para contemplar essa questão, mas, na parte referente à retificação de área, foi feita análise do que é uma impugnação sem fundamento, o que pode ser aplicado, por analogia, à usucapião:

Art. 916. Considera-se infundada a impugnação:

I – já examinada e refutada em casos iguais ou semelhantes pelo juiz de direito com jurisdição em Registros Públicos ou, onde não houver vara especializada, pelo juízo cível ou pela Corregedoria-Geral de Justiça;

II – em que o interessado se limite a dizer que a retificação causará avanço em sua propriedade sem indicar, de forma plausível, onde e de que forma isso ocorrerá;

III – que não contenha exposição, ainda que sumária, dos motivos da discordância manifestada;

IV – que ventile matéria absolutamente estranha à retificação;

V – que o oficial de registro, pautado pelos critérios da prudência e da razoabilidade, assim reputar.

Em São Paulo as Normas Extrajudiciais de Serviço da Corregedoria do Tribunal de Justiça[3] já contemplavam, anteriormente à alteração na redação do § 10 do art. 216-A da LRP, a hipótese de impugnação injustificada na usucapião. Prestigiando a qualificação do Registrador de Imóveis e a importância do procedimento extrajudicial, as referidas normas determinam que seja julgada pelo Registrador a fundamentação da impugnação, com afastamento daquela claramente impertinente ou protelatória, caso em que prosseguirá no procedimento extrajudicial caso o impugnante não recorra no prazo de 10 (dez) dias.

Ainda conforme as normas de São Paulo, tendo o Registrador entendido que a impugnação é injustificada, somente em caso de recurso do impugnante serão os autos remetidos ao juiz competente para julgamento de plano ou após instrução sumária, cabendo ao juiz examinar apenas a pertinência da impugnação. Cabe ao juiz decidir se o caráter da impugnação é meramente protelatório ou completamente infundado. Havendo qualquer indício de veracidade que justifique a existência de conflito de interesses, a via extrajudicial se torna prejudicada, devendo o interessado se valer da via contenciosa, sem prejuízo de utilizar-se dos elementos constantes do procedimento extrajudicial para instruir seu pedido, emendando a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum. Abaixo são reproduzidas as normas de São Paulo:

420.2. Consideram-se infundadas a impugnação já examinada e refutada em casos iguais pelo juízo competente; a que o interessado se limita a dizer que a usucapião causará avanço na sua propriedade sem indicar, de forma plausível, onde e de que forma isso ocorrerá; a que não contém exposição, ainda que sumária, dos motivos da discordância manifestada; a que ventila matéria absolutamente estranha à usucapião.

420.3. Se a impugnação for infundada, o Oficial de Registro de Imóveis rejeitá-la-á de plano por meio de ato motivado, do qual constem expressamente as razões pelas quais assim a considerou, e prosseguirá no procedimento extrajudicial caso o impugnante não recorra no prazo de 10 (dez) dias. Em caso de recurso, o impugnante apresentará suas razões ao Oficial de Registro de Imóveis, que intimará o requerente para, querendo, apresentar contrarrazões no prazo de 10 (dez) dias e, em seguida, encaminhará os autos ao juízo competente.

420.4. Se a impugnação for fundamentada, depois de ouvir o requerente o Oficial de Registro de Imóveis encaminhará os autos ao juízo competente.

420.5. Em qualquer das hipóteses acima previstas, os autos da usucapião serão encaminhados ao juízo competente que, de plano ou após instrução sumária, examinará apenas a pertinência da impugnação e, em seguida, determinará o retorno dos autos ao Oficial de Registro de Imóveis, que prosseguirá no procedimento extrajudicial se a impugnação for rejeitada, ou o extinguirá em cumprimento da decisão do juízo que acolheu a impugnação e remeteu os interessados às vias ordinárias, cancelando-se a prenotação.

A 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, em maio de 2023, em dúvida suscitada pelo Oficial do 11º Registro de Imóveis da Capital, ratificou a decisão do Oficial, rejeitandoas impugnações e o recurso apresentados, autorizando que o procedimento extrajudicial pudesse ter regular prosseguimento[4]. Abaixo se reproduz, em parte, a referida decisão:

No caso em tela, ambas as impugnações são no sentido de que S. M. é a proprietária, a qual exerce posse mansa e pacífica sobre o bem desde que o recebeu por sucessão.

Entretanto, não vieram acompanhadas de qualquer evidência neste sentido.

Note-se que não se comprovou nem ao menos a alegação de que o imóvel está alugado, o que seria bastante simples mediante apresentação de contrato e recibos de aluguel, ou de que são os proprietários os responsáveis pelo pagamento dos tributos incidentes sobre ele, o que poderia se dar pela apresentação dos comprovantes de quitação.

Já a parte suscitada demonstrou, por meio de ata notarial, ter assumido a posse do terreno após a aquisição de imóveis vizinhos no ano de 2008 (fls. 73/84).

Na ata em questão, há referência sobre apresentação de contas de água, luz e telefone em nome da parte interessada no período de setembro de 2008 a agosto de 2021, além do lançamento de IPTU para o ano de 2022, e sobre a constatação pelo Tabelião de uso do terreno pela empresa requerente para a prática de suas atividades, inclusive com fotos.

Há que se confirmar, portanto, como infundadas as impugnações na medida em que genéricas e desprovidas de qualquer suporte probatório.

Note-se, ainda, que a parte recorrente ventila matéria estranha à usucapião, sustentando irregularidade no procedimento extrajudicial e necessidade de perícia.

De fato, o imóvel está bem identificado, não havendo qualquer dúvida quanto à sua delimitação (fls. 73/84 e 85/88). A contratação noticiada pela parte suscitada, outrossim, não se deu com os proprietários: o requerimento é claro no sentido de que, após a aquisição de imóveis vizinhos, a empresa requerente assumiu a posse da área em questão e passou a utilizá-la com animus domini (fls. 59/72), o que se confirma pelas fotos citadas (fls. 79/84).

Não bastasse isso, constata-se que não há qualquer irregularidade ou invalidade a ser reconhecida no procedimento extrajudicial, que ainda não se encerrou: alguns dos proprietários puderam ser notificados, mas outros ainda não (fls. 02/03 e 103/126); a tentativa de conciliação foi corretamente realizada entre a coproprietária que impugnou tempestivamente o pedido e a parte suscitada, sem qualquer prejuízo para qualquer dos interessados.

Diante do exposto, RATIFICO a decisão do Oficial, REJEITANDO as impugnações e o recurso apresentados, de modo que o procedimento extrajudicial possa ter regular prosseguimento.

A diferença entre as normas de São Paulo e o que veio estabelecer a nova redação do art. 216-A da LRP é que, conforme a lei, no caso de o Registrador decidir que a impugnação é infundada, o interessado deverá suscitar dúvida, ou seja, o caminho conforme a lei não é mais a apresentação de recurso. O restante da norma de São Paulo é aplicável à nova realidade, de modo que, no julgamento da dúvida, cabe ao juiz decidir apenas se o caráter da impugnação é meramente protelatório ou completamente infundado. Se o juiz entender que a impugnação é justificada, a via extrajudicial não mais será viável, devendo o interessado se valer da via contenciosa.

Em conclusão, mais uma vez foi determinada a desjudicialização, sendo atribuído ao Registrador de Imóveis que decida sobre a impugnação, desconsiderando aquela que reputar injustificada. É o que estabelece a nova redação dada pela Lei 14.382/2022 ao § 10 do art. 216-A da Lei de Registros Públicos. O interessado que não se conformar deverá suscitar dúvida em face da decisão do Registrador, nos termos do art. 198 da Lei de Registros Públicos. O Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça – Foro Extrajudicial (CNN/ CN/CNJ-Extra) e os Códigos de Normas dos Estados deverão ser atualizados para contemplar essa inovação, que prestigia a qualificação do Registrador de Imóveis e a importância do procedimento extrajudicial.

* Ana Clara Amaral Arantes Boczar, graduada em Direito na Faculdade Milton Campos, pós-graduada em Direito Privado pela Universidade Cândido Mendes, pós-graduada em Direito Notarial e Registral pela parceria do INDIC – Instituto Nacional de Direito e Cultura com o CEDIN – Centro de Direito e Negócios, mestre em Direito Privado pela Universidade FUMEC. Coordenadora e professora de pós graduação em direito notarial e registral e do Curso DO ZERO À REGULIZAÇÃO DE IMÓVEIS – DZRI. Coautora do livro “Usucapião Extrajudicial, questões notariais e tributárias”. Possui diversos artigos publicados sobre a área notarial e registral. Oficial titular do Cartório de Registro Civil com atribuição notarial de Doutor Lund, comarca de Pedro Leopoldo/MG.

** Carlos Rogério de Oliveira Londe, Mestre em Direito. Oficial do Registro de Imóveis, Registro de Títulos e Documentos e Civil das Pessoas Jurídicas e Registro Civil das Pessoas Naturais, Interdições e Tutelas de Paraúna-GO. Ex-Registrador de Imóveis da Comarca de Senador Firmino (MG), ex-Tabelião interino do Registro de Títulos e Documentos e Civil das Pessoas Jurídicas da Comarca de Senador Firmino (MG). Ex-tabelião de Protesto de Títulos e outros Documentos de Dívida nas Comarcas de Itamarandiba (MG) e Bueno Brandão (MG). Professor em pós graduações e cursos preparatórios para concursos de cartório. Coordenador e professor de pós graduação em direito notarial e registral e do Curso DO ZERO À REGULIZAÇÃO DE IMÓVEIS – DZRI.

*** Daniela Bolivar Moreira Chagas, assessora na Vara de Registros Públicos em Belo Horizonte-MG, Mestranda em Direito Privado pela Universidade FUMEC, Especialista em Direito Registral e Notarial pela Faculdade de Direito Milton Campos e em Direito Público pelo Centro Universitário Newton Paiva.  Bacharel em Direito. Professora e Palestrante em Direito Imobiliário, Registral e Notarial. Coautora de Livros e Artigos de Direito Notarial e Registral. Foi Vice-Presidente da Comissão de Direito Notarial e Registral e Membro da Comissão de Direito Imobiliário ambas da OAB/MG. Presidente Nacional e Estadual (Minas Gerais) da Comissão de Direito Notarial e Registral da Associação Brasileira das Mulheres de Carreira Jurídica -ABMCJ.

**** Letícia Franco Maculan Assumpção é Graduada em Direito pela UFMG. Mestre e doutoranda em Direito. Oficial do Cartório do Registro Civil e Notas do Distrito de Barreiro, em Belo Horizonte. Diretora do Instituto Nacional de Direito e Cultura (Indic). Coordenadora e professora de pós graduação em direito notarial e registral e do Curso DO ZERO À REGULIZAÇÃO DE IMÓVEIS – DZRI. Presidente do Colégio Registral de Minas Gerais e diretora do Recivil. Autora de diversos livros e artigos na área do Direito Registral e Notarial.


[1] CORREGEDORIA Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça.
Provimento Nº 149 de 30/08/2023. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5243. Acesso em: 29 set. 2024.

[2] TRIBUNAL de Justiça de Minas Gerais e CORREGEDORIA GERAL de Justiça de Minas Gerais. Provimento Conjunto nº 93 da Corregedoria-Geral de Justiça de Minas Gerais. Disponível em: https://www8.tjmg.jus.br/institucional/at/pdf/vc00932020.pdf. Acesso em: 29 set. 2024.

[3] CORREGEDORIA GERAL da Justiça de São Paulo. PROVIMENTO Nº 58/89. Disponível em: https://api.tjsp.jus.br/Handlers/Handler/FileFetch.ashx?codigo=160510. Acesso em: 29 set. 2024.

[4] MAHUAD, Luciana Carone Nucci Eugênio. Processo nº: 1032941-74.2023.8.26.0100. Disponível em https://www.26notas.com.br/blog/?p=18011. Acesso em 29 set. 2024.