*Letícia Franco Maculan Assumpção
**Wellington de Lima Mota
A redação do Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA foi alterada pela Lei nº 13.257, de 2016, na parte correspondente às Medidas de Proteção. Nos termos da referida Lei, art. 33, o art. 102 do ECA passou a vigorar acrescido dos parágrafos 5º e 6º, que tratam de registros, averbações e certidões.
Uma leitura mais apressada poderia levar à conclusão de que quaisquer registros e certidões, bem como averbações de reconhecimento de paternidade de crianças e adolescentes teriam passado a ser gratuitas. Mas não é isso o que determina a lei, mesmo após a nova redação.
De fato, para uma completa compreensão, há que se ler todo o Título II, do ECA, que trata das Medidas de Proteção, abaixo reproduzido com grifos e apenas no que é mais relevante:
Título II
Das Medidas de Proteção
Capítulo I
Disposições Gerais
Art. 98. As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados:
I – por ação ou omissão da sociedade ou do Estado;
II – por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável;
III – em razão de sua conduta.
Capítulo II
Das Medidas Específicas de Proteção
Art. 99. As medidas previstas neste Capítulo poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente, bem como substituídas a qualquer tempo.[…]
Art. 101. Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas:
I – encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade;
II – orientação, apoio e acompanhamento temporários;
III – matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental;
IV – inclusão em serviços e programas oficiais ou comunitários de proteção, apoio e promoção da família, da criança e do adolescente; (Redação dada pela Lei nº 13.257, de 2016)
V – requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial;
VI – inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos;
VII – acolhimento institucional; (Redação dada pela Lei nº 12.010, de 2009)
VIII – inclusão em programa de acolhimento familiar; (Redação dada pela Lei nº 12.010, de 2009)
IX – colocação em família substituta. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência
§ 1o O acolhimento institucional e o acolhimento familiar são medidas provisórias e excepcionais, utilizáveis como forma de transição para reintegração familiar ou, não sendo esta possível, para colocação em família substituta, não implicando privação de liberdade. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)
§ 2o Sem prejuízo da tomada de medidas emergenciais para proteção de vítimas de violência ou abuso sexual e das providências a que alude o art. 130 desta Lei, o afastamento da criança ou adolescente do convívio familiar é de competência exclusiva da autoridade judiciária e importará na deflagração, a pedido do Ministério Público ou de quem tenha legítimo interesse, de procedimento judicial contencioso, no qual se garanta aos pais ou ao responsável legal o exercício do contraditório e da ampla defesa. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)
§ 3o Crianças e adolescentes somente poderão ser encaminhados às instituições que executam programas de acolhimento institucional, governamentais ou não, por meio de uma Guia de Acolhimento, expedida pela autoridade judiciária, na qual obrigatoriamente constará, dentre outros: (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)
I – sua identificação e a qualificação completa de seus pais ou de seu responsável, se conhecidos; (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)
II – o endereço de residência dos pais ou do responsável, com pontos de referência; (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência
III – os nomes de parentes ou de terceiros interessados em tê-los sob sua guarda; (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)
IV – os motivos da retirada ou da não reintegração ao convívio familiar. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)
[…]
Art. 102. As medidas de proteção de que trata este Capítulo serão acompanhadas da regularização do registro civil. (Vide Lei nº 12.010, de 2009)
§ 1º Verificada a inexistência de registro anterior, o assento de nascimento da criança ou adolescente será feito à vista dos elementos disponíveis, mediante requisição da autoridade judiciária.
§ 2º Os registros e certidões necessários à regularização de que trata este artigo são isentos de multas, custas e emolumentos, gozando de absoluta prioridade.
§ 3o Caso ainda não definida a paternidade, será deflagrado procedimento específico destinado à sua averiguação, conforme previsto pela Lei no 8.560, de 29 de dezembro de 1992. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)
§ 4o Nas hipóteses previstas no § 3o deste artigo, é dispensável o ajuizamento de ação de investigação de paternidade pelo Ministério Público se, após o não comparecimento ou a recusa do suposto pai em assumir a paternidade a ele atribuída, a criança for encaminhada para adoção. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)
§ 5o Os registros e certidões necessários à inclusão, a qualquer tempo, do nome do pai no assento de nascimento são isentos de multas, custas e emolumentos, gozando de absoluta prioridade. (Incluído dada pela Lei nº 13.257, de 2016)
§ 6o São gratuitas, a qualquer tempo, a averbação requerida do reconhecimento de paternidade no assento de nascimento e a certidão correspondente. (Incluído dada pela Lei nº 13.257, de 2016)
Da leitura das normas acima reproduzidas, é possível concluir que, no que tem mais relevância para o Registrador Civil das Pessoas Naturais:
a) a redação do Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA, foi alterada pela Lei nº 13.257, de 2016, na parte correspondente às Medidas de Proteção;
b) sendo assim, há indicação da lei federal de que, a partir da sua entrada em vigor, que ocorreu na data de sua publicação, ou seja, a partir de 9 de março de 2016, NO QUE SE REFERE ÀS CRIANÇAS E ADOLESCENTES SOB MEDIDAS DE PROTEÇÃO, tanto o registro, quanto as certidões necessárias ao reconhecimento de paternidade quanto a averbação do reconhecimento de paternidade deverão ser gratuitas, o que deverá vir constando no mandado judicial específico.
Essa interpretação está de acordo com as regras de hermenêutica. Dentre elas são sempre lembradas as normas que constavam da Consolidação das Leis Civis, de 18901 e prevalecem, como regras científicas, pois consubstanciam a consolidação da tradição hermenêutica que vinha do império, do Direito português e da tradição do Direito medieval e romano. LIMONGI FRANÇA encontrou, no Corpus Juris Civilis, várias regras relativas à interpretação do Direito. A aplicável aqui é a seguinte, mencionada por Alberto Marques dos Santos2 :
A posição do dispositivo no texto esclarece seu alcance.
43. — A regra conclama à interpretação sistemática, que, em certa medida, inclui uma interpretação “topológica”. O lugar em que determinada disposição é inserida, dentro do texto legal, pode indicar algo a respeito da sua abrangência e alcance. O texto legal é organizado em partículas principais, os artigos, que podem ser subdivididos em sub-partes, fragmentos subordinados, que são os parágrafos, os incisos, as alíneas. É intuitiva a noção de que as disposições de um inciso têm abrangência limitada às hipóteses ou à situação contemplada no artigo a que o inciso está subordinado. Um artigo e seu parágrafo subordinado guardam, geralmente: a) uma relação de regra geral/exceção, onde o parágrafo institui regras que contrariam a norma geral do seu caput, excepcionando-a; ou b) uma relação de genérico/específico, onde o caput estabelece os contornos gerais de um mandamento, e os parágrafos explicitam aspectos ou desdobramentos da hipótese A posição de um comando legal permite compreender a abrangência que o legislador quis lhe dar. O texto legal é articulado e sub-articulado, i.e., dividido em fragmentos de mensagem, cada qual devendo tratar de uma idéia específica. Esses fragmentos não são todos da mesma hierarquia e abrangência. Compreende-se intuitivamente que o parágrafo, como fragmento subordinado ao caput de um artigo, tem seu âmbito de aplicabilidade restrito – em princípio – ao âmbito de aplicabilidade do seu caput subordinante.(sem grifos no original)
1 FRANÇA, R. LIMONGI. Hermenêutica Jurídica, São Paulo: Ed. Saraiva; RIBAS, JOAQUIM. Direito civil brasileiro. Edição histórica fac-similar, Rio de Janeiro : Editora Rio, 1977, p.188/189; SERPA LOPES, Curso de direito civil, Rio : Freitas Bastos, 1998, v.I, p.134 e s..
2 DOS SANTOS, Alberto Marques. REGRAS CIENTÍFICAS DA HERMENÊUTICA. Disponível em: . Acesso em: 31 mar. 2016.
Importante ainda ressaltar que a lei federal somente indica isenções de emolumentos que devem ser acolhidas pela Lei Estadual. Para efetiva implementação da gratuidade, deve ser alterada a Lei Estadual de Emolumentos. Isso porque os emolumentos, segundo jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal, são TAXAS ESTADUAIS. Assim, somente o Estado da Federação respectivo pode conceder a isenção, por lei estadual. A isenção heterônoma é figura vedada pelo art. 151, III, da Constituição da República de 19883 .
Assim, o reconhecimento de paternidade em Minas Gerais continua regido pelos arts. 20 e 21 da Lei Mineira 15.424/2004, que determinam:
Art. 20. Fica isenta de emolumentos e da Taxa de Fiscalização Judiciária a prática de atos notariais e de registro:
I – para cumprimento de mandado e alvará judicial expedido em favor de beneficiário da justiça gratuita, amparado pela Lei Federal n° 1.060, de 5 de fevereiro de 1950, nos seguintes casos:
a) nos processos relativos a ações de investigação de paternidade e de pensão alimentícia;
b) nos termos do art. 6° da Lei Federal n° 6.969, de 10 de dezembro de 1981;
c) nos termos do § 2° do art. 12 da Lei Federal n° 10.257, de 10 de julho de 2001;
d) quando a parte for representada por Defensor Público Estadual ou advogado dativo designado nos termos da Lei n° 13.166, de 20 de janeiro de 1999;
e) quando a parte não estiver assistida por advogado, nos processos de competência dos juizados especiais de que tratam as Leis Federais nos 9.099, de 26 de setembro de 1995, e 10.259, de 12 de julho de 2001;
[…]
IX – de certidões expedidas pelo Registro Civil das Pessoas Naturais solicitadas por órgãos públicos federais ou municipais, bem como por órgãos de outros Estados.
§ 1° A concessão da isenção de que trata o inciso I do caput deste artigo fica condicionada a pedido formulado pela parte perante o oficial, no qual conste a sua expressa declaração de que é pobre no sentido legal e de que não pagou honorários advocatícios, para fins de comprovação junto ao Fisco Estadual, e, na hipótese de constatação da improcedência da situação de pobreza, poderá o notário ou registrador exigir da parte o pagamento dos emolumentos e da Taxa de Fiscalização Judiciária correspondentes.
[…]
Art. 21. Os declaradamente pobres estão isentos do pagamento de emolumentos e da Taxa de Fiscalização Judiciária:
[…]
III – pela averbação do reconhecimento voluntário de paternidade.
3 Art. 151. É vedado à União: […] III – instituir isenções de tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios.
Aliás, o Provimento nº 19/CNJ continua em vigor e determina o mesmo que está previsto na lei mineira: para os comprovadamente pobres existe gratuidade da averbação do reconhecimento de paternidade e da respectiva certidão.
Conclui-se, pois, que não há que se afirmar que todas as averbações de reconhecimento de paternidade são isentas de emolumentos, primeiro porque a lei federal somente alterou a parte referente às medidas e proteção, e segundo porque LEI FEDERAL NÃO PODE isentar emolumentos, que são taxas estaduais. Caso o Juiz de Direito entenda por bem deferir gratuidade para a averbação e para a certidão, deve fazê-lo de forma expressa e, em Minas Gerais, ainda assim continua sendo obrigatória a apresentação pelo requerente de declaração de pobreza e de que não pagou honorários advocatícios perante o Oficial do Registro Civil, conforme determinação da Lei Mineira de Emolumentos.
*Letícia Franco Maculan Assumpção é graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1991), pós-graduada e mestre em Direito Público. Foi Procuradora do Município de Belo Horizonte e Procuradora da Fazenda Nacional. Aprovada em concurso, desde 1º de agosto de 2007 é Oficial do Cartório do Registro Civil e Notas do Distrito de Barreiro, em Belo Horizonte, MG. É autora de diversos artigos na área de Direito Tributário, Direito Administrativo, Direito Civil, bem como Direito Registral e Notarial, publicados em revistas jurídicas, e do livro Função Notarial e de Registro. É Diretora do CNB/MG, Presidente do Colégio Registral de Minas Gerais, Coordenadora da Pós-Graduação em Direito Notarial e Registral no CEDIN e representante do Brasil na União Internacional do Notariado Latino.
**Wellington de Lima Mota é Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais da Sede de Caeté/MG – Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Rio Preto (2006), pós graduado em Direito Público (2008).