Por Caio Pacca Ferraz de Camargo e Taysa Pacca Ferraz de Camargo
Embora hoje saibamos que identificação e identidade são conceitos distintos, por muito tempo foram tidos como sinônimos. Houve época, aliás, em que a identidade cedeu à identificação. Isso, todavia, foi se alterando, principalmente em relação ao nome civil, signo de primeira importância tanto à identidade quanto à identificação da pessoa, que evoluiu no sentido de se compreender o nome como direito da personalidade, o que entre nós atualmente está expressamente catalogado como tal no artigo 16, do Código Civil de 2002.
Sobre a diferença entre a individualização (identidade) e identificação, Leonardo Brandelli recorda que:
A identificação difere da individualização. Esta pressupõe uma conotação estática de distinção dos seres humanos, ao passo que aquela contempla o aspecto dinâmico da individualização, uma vez que pressupõe um processo investigatório para reconhecer-se se determinada pessoa é a que se busca. A individualização serve para distinguir; a identificação, para comprovar. (BRANDELLI, 2012, p. 78)
Outros autores lembram ainda que a identificação tem a ver com uma perspectiva cultural e narrativa, que nos é imposta num contexto relacional dialógico (MENEZES, 2014), ao passo que a identidade é a forma como nos vemos no mundo e como ele, em troca, nos vê: “[…] a identidade vai além da mera nomeação, encontrando eco nas experiências sociais, culturais, políticas e ideológicas das quais a pessoa toma parte. Identidade, portanto, parte do pressuposto de como o indivíduo se reconhece e como é reconhecido pela sociedade” (FACHIN, 2014, p. 37).
Em suma, por identificação tem-se um processo de investigação social para indicação de quem é quem sob uma ótica social externa, ao passo que a identidade é conformada, na lição de Jacques Lacan, por laços identitários que pressupõem o afeto na definição de significados (STARNINO, 2016).
Destarte, tanto a identificação quanto a identidade se valem, dentre outros, de aspectos externos de cada indivíduo, dentre eles, claro, os biológicos. Todavia, o imperativo da valorização da dignidade humana impôs uma inadiável reflexão entre a preponderância da identidade sobre a identificação, e mais, até que ponto é legítimo restringir a identificação do ser humano única e exclusivamente a partir do recurso aos sinais biológicos externos.
Historicamente a determinação de uma identidade sexual (e o vocábulo “determinação” denota o viés identificatório sobre o identitário) esteve ligada à perspectiva biológica, ou seja, distribuída de acordo com as distinções corporais entre homens e mulheres, mormente àquelas associadas às diferentes capacidades reprodutivas (PISCITELLI, 2009, p. 119). Qualquer desobediência a esse padrão binário era visto como uma transgressão à própria natureza (ARAÚJO; CAMPOS, 2019, p. 104), tanto que os nascidos com desenvolvimento parcial das genitálias, a não estremar binariamente o sexo entre masculino e feminino, eram submetidos a intervenções cirúrgicas, ou até mutilações, para, superada a situação de indefinição dos órgãos íntimos, aí sim se chegar à inequívoca designação do sexo, complementada por trabalhos terapêuticos de harmonização da identidade do gênero às genitais (PISCITELLI, 2009, p. 126).
Esse pressuposto binário e heteronormativo que colocava o sexo biológico como uma verdade imutável e conformadora de um modo de ser e agir, e que exigia linearidade sem desvios entre sexo genital, gênero, desejo e práticas sexuais (BUTLER, 2003, p. 189), era tão evidente que a identidade de gênero, quando diversa da biológica, chegou a ser patologizada e considerada como transtorno mental pela Organização Mundial de Saúde (OMS), na 10ª Classificação Internacional de Doenças (CID).
A consequência mais penosa dessa abordagem foi justamente permitir que durante muito tempo se buscasse um “tratamento” e “cura” a essa “patologia”. A distopia, porém, estava no pressuposto, no diagnóstico. O avanço da psicanálise, da sociologia e da medicina, evidenciou que os conceitos de sexo e gênero não eram imbricados de modo incontornável nem automaticamente autoimplicantes, mas que podiam existir autonomamente.
O equívoco inicial ficou patente quando, na CID-11, retiraram-se os transtornos de identidade de gênero do capítulo de doenças mentais (MEINDRAD; DUARTE, 2018, p. 6), legitimando a identidade de gênero como fruto da autodeterminação humana, no exercício de sua dignidade e, por isso, merecedora de proteção jurídica como modo de concreção da cidadania. Nesse contexto, totalmente descabida a exigência de qualquer cirurgia de transgenitalização ou submissão a tratamentos hormonais ao reconhecimento do gênero declarado pela pessoa trans, o que representaria, para além de uma afronta a sua integridade física e violação de sua dignidade, uma reinstauração do perverso binarismo sob infundada justificativa de “sanar” a inadequação entre sexo e gênero (CARRARA, 2010, p. 138).
O direito à autoafirmação do gênero deve se imbricar com tantos outros direitos já longamente considerados fundamentais, dentre eles o direito ao próprio corpo (SCHREIBER, 2013, p. 32) e ao nome, como pilares fundantes tanto de uma identificação como de uma identidade.
Daí ser assaz violenta a negação ou turbação do exercício do direito de autoafirmação do gênero, independentemente de qualquer outra circunstância, pois impede o pleno desenvolvimento da personalidade da pessoa, por lhe negar seu direito de ser o que é e de se construir em suas experiências sociais, culturais, políticas e ideológicas, diminuindo-lhe as potencialidades. Negar a possibilidade da afirmação do gênero emancipado do sexo biológico compromete o ideal de cidadania em todas as suas dimensões, civil, política e social (WALBY, 2004, p. 170), pois gera tratamento não paritário por um critério não eticamente sustentável. Tanto assim que, em 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF), chamado a decidir a ADPF 132/RJ e a ADIN 4.277, arvorou, em histórica decisão que reconheceu a validade jurídica da união estável homoafetiva como entidade familiar, que nem o sexo nem a orientação sexual das pessoas, salvo disposição constitucional em contrário, prestam-se como fator de desigualação jurídica.
Em que pese tal decisão lapidar a edição do Decreto Federal nº 8.727/2016, ao impor à administração pública a obrigação de tratar a pessoa trans por seu nome social, definido como aquele com o qual ela se identifica e é socialmente reconhecida (arts. 10 e 20), as pessoas transgênero (definidas no art. 1º da resolução 2.265/2019, do Conselho Federal de Medicina, como aquelas que apresentam uma não paridade entre a identidade de gênero e o sexo do nascimento, incluindo-se transexuais, travestis e outras expressões identitárias relacionadas à diversidade de gênero), continuaram a ter sua dignidade negada, no tocante ao ato jurídico fundante e inaugurador da cidadania: o registro de nascimento.
É a partir do registro de nascimento que se fixa a nacionalidade e se extraem todos os demais documentos pessoais indispensáveis à vida juridicamente digna na comunhão nacional e transnacional, haja vista a dificuldade de deslocamentos transfronteiriços sem um passaporte. Continuava o registro de nascimento, onde obrigatoriamente deve o Oficial que o lavrar fazer constar o sexo da criança registrada (art. 54, lei 6.015/1973), intangível a qualquer mudança.
Conquanto a utilização do nome social assegurasse a dignidade de tratamento das pessoas trans no relacionamento com a administração pública, não conseguia garantir a mesma eficácia em todas as outras dimensões da vida privada, na qual continuavam a se sujeitar a situações vexatórias ao terem de apresentar, no interesse e necessidade de identificação, documentos em completa dissonância com suas performances de gênero (BENTO, 2014, p. 175), ou seja, dissociadas de suas identidades.
Era uma equivocada prevalência da identificação sobre a identidade que feria a identidade e ao mesmo tempo não identificava. Como o prenome “João”, num documento de identidade, poderia identificar alguém que já se apresentava e vivia socialmente como “Maria”? Insistir nesse paradigma era querer o pior de dois mundos e de grande desserviço tanto à identidade quanto à identificação.
Assim, muitos transgêneros buscaram a via judicial para retificar seus registros civis de nascimento, a fim de adequar seu registro à sua identidade de gênero e, posteriormente, alterar seus demais documentos. Essa busca individual, contudo, era desgastante tanto pela morosidade do Judiciário quanto pela incerteza do deferimento do pedido, haja vista os inúmeros julgados que, permeados por concepções tradicionalistas, os negavam.1
Era preciso, portanto, uma tutela institucional, estrutural e definitiva à população trans, conforme, aliás, indicava o Parecer Consultivo OC-24/17, da Corte Interamericana de Direitos Humanos,2 ao afirmar que os Estados têm o dever de reconhecer e oferecer proteção legal à identidade de gênero autopercebida das pessoas, garantindo a retificação da anotação do gênero e nome dos seus registros civis (CIDH, 2017, p. 81). O progresso veio mais uma vez do STF que, em 2018, no julgamento do RE 670.422/RS, com repercussão geral, e da ADI 4.275/DF, decidiu que os transgêneros poderiam alterar seu sexo e prenome nos documentos públicos independente de realização de cirurgia de transgenitalização, além de reconhecer a possibilidade de retificação do seu registro civil diretamente no cartório, sem necessidade de ação judicial, independentemente de prova de cirurgia de redesignação sexual.
Logo após a decisão do STF, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou o Provimento CNJ nº 73/2018, que dispõe sobre a averbação3, diretamente nas serventias de Registro Civil das Pessoas Naturais, do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento da pessoa transgênero.
Essa alteração administrativa é hoje realizada com base na autonomia do requerente, maior de 18 anos que, munido de alguns documentos necessários (art. 4º, §6º, Provimento CNJ nº 73/2018), deve declarar, perante o registrador civil, sua vontade de proceder à alteração da identidade mediante averbação do prenome, do gênero ou de ambos (art. 4º, caput, Provimento CNJ nº 73/2018). Essa alteração abrange a inclusão ou exclusão de agnomes indicativos de gênero ou de descendência (art. 1º, § 1º, Provimento CNJ nº 73/2018). Todavia, não é possível a alteração de nomes de família (sobrenomes), bem como a alteração pleiteada não pode ensejar identidade de nome com outro membro da família (art. 2º, § 2º, Provimento CNJ nº 73/2018).
Ressalte-se que esse procedimento é sigiloso, de modo que não haverá na certidão nenhuma menção à alteração, cuja informação constará apenas do livro preservado no cartório. Após a averbação, o oficial deverá comunicar a alteração a todos os órgãos expedidores de documentos e ao foro em que estiver tramitando alguma ação do requerente, o que, todavia, não retira o dever do requerente em alterar todos os seus documentos pessoais (art. 8º, caput e §1º, Provimento CNJ nº 73/2018), obrigatoriedade que embora pareça óbvia revela a lógica que há até bem pouco se resistiu: a de haver uma necessária relação de anterioridade entre identidade e identificação. Identifica-se, ou seja, comprova-se aquilo que já é, não o contrário. Primeiro deve haver uma identidade para depois identificá-la.
Se o requerente for casado, a alteração do prenome e gênero no registro de casamento dependerá da anuência do cônjuge, e, se o requerente tiver filhos, a alteração no registro de nascimento destes dependerá da anuência deles quando maiores de 16 anos, e da anuência de todos seus genitores. Havendo qualquer discordância de uma das partes, o consentimento deverá ser suprido judicialmente (art. 8º, §§2º, 3º e 4º, Provimento CNJ nº 73/2018). Vale ainda lembrar que esse procedimento de alteração pode ser realizado em qualquer cartório de registro civil do país, e não apenas no cartório onde consta o registro de nascimento do requerente.
O relatório Cartório em Números revela que desde 2018 já foram realizadas administrativamente nos cartórios de Registro Civil, 3.921 mudanças de nome e gênero (ANOREG, 2020, p. 25). Esses números, que certamente hoje (julho de 2021) já são maiores, provam o acerto do Estado brasileiro no reconhecimento da autonomia do gênero em relação ao sexo biológico, que permite não só a livre construção identitária da pessoa, como uma identificação que, para além de mais humanizada, pois concebida da pessoa para a sociedade, e não desta para aquela, ainda é mais certeira porque identifica aquilo que realmente é, reconhecendo a necessária relação de anterioridade entre a identidade e a identificação, reforçando assim simultaneamente a segurança jurídica, ao contrário de infirmá-la, e um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, o da dignidade da pessoa humana (inciso III, do art. 1º, da Constituição Federal de 1988).
Fonte: Migalhas