1. Qual sua expectativa acerca do novo instituto da “usucapião extrajudicial” que entrará em vigor no próximo dia 18 de março?
RD: Quero, inicialmente, deixar bem claro que encontro aspectos muito louváveis com a norma do art. 216-A da Lei de Registros Públicos, instituidora do que se vem designando por “usucapião extrajudicial”. Digo isto para não parecer que, criticando alguns de seus aspectos, esteja a desmerecê-la em seu todo ou no principal.
À partida, já os nomes “usucapião extrajudicial” ou “usucapião administrativa” são expressões figuradas. Toda usucapião é extrajudicial. O que há, isto sim, é um novo processo extrajudicial de reconhecimento da usucapião. O termo “usucapião administrativa” padece do mesmo traslado: o que há é um novo processo de “jurisdição” administrativa para reconhecer-se a usucapião.
Num plano panorâmico, o art. 216-A incluído agora na Lei de Registros Públicos instituiu uma modalidade de desjudiciarização que, por sua conclusão, merece aplauso, na medida em que relações consensuais não são próprias para a função judiciária.
Penso, todavia, que, em aspectos singulares, o dispositivo pode frustrar-se, além de incorrer, segundo me parece, em uma trasladação de funções, nisto que atribuiu ao registrador público a instrumentação do título usucapional, quando, em rigor, melhor seria que a formação documentária dirigida à matrícula se assinasse ao notário.
A frustração da norma, assim me aparenta, advirá em particular da falta de previsão legislativa de uma base econômico-financeira –que deveria provir do erário, a quem se impõe o custeio do benefício de gratuidade da justiça− para atrair ao campo extrajudicial um volume considerável de pleitos de usucapião.
2. Parece-lhe, pois, que se poderia ter proposto mais atuação notarial quanto a esta usucapião?
RD: As justificações, classicamente, ou são judiciais ou são notariais. Desjudiciarizou-se, embora de modo facultativo, com este novo art. 216-A da Lei de Registros Públicos, o reconhecimento da usucapião. Instituiu-se um processo registrário, com uma documentação antecedente de origem notarial, cifrada, no texto legislativo, a uma, aliás controversa, “atestação” do tempo de posse.
Essa “atestação” só seria possível, a meu ver e ainda assim destituída da eficácia de fé pública, se nós tivéssemos adotado o modelo ortodoxo da justificação notarial.
Em vez disto, instituímos o paradoxo de um processo de morfologia pré-registrária que tem curso no próprio registro… ou seja, uma espécie de autogestação do registro.
Mas, veja-se este ponto, os documentos que se registram no ofício predial devem ser formados, em rigor, fora dele. Ao registro não compete formar os títulos que deve ele próprio registrar. A documentação registral propriamente dita é só a de seus livros, não a que lhes é externa, embora sejam registrárias, por força de lei, certificações de títulos arquivados. A documentação externa ao registro deve produzir-se por fontes diversas do registro destinatário, entre elas a notarial.
Vale dizer que ao notário se deveria ter assinado a tarefa de justificação do processo aquisitivo imobiliário, com audiência do legitimado tabular e dos confrontantes do prédio prescribendo, audição de testemunhas, vista de documentos etc. E ao registrador competiria, no fim e ao cabo, a tarefa de receber o título para praticar o ato que lhe cabe ordinariamente: qualificá-lo e inscrevê-lo com caráter de formal eficácia erga omnes.
Fez-se de modo diverso com o art. 216-A, trasladando-se para o registro uma tarefa morfológica pré-registral.
3. Como o Sr. vê o tema da “atestação do tempo de posse” pelo notário?
RD: Ainda que se dê ao termo “atestação” um sentido menos próprio, alargado, o que se exige para bem entender os contornos desta “atestação do tempo de posse” é distinguir, de um lado, a fé pública notarial, e, de outro, a atividade do notário enquanto jurista privado.
A fé pública notarial é tributária exclusivamente do quanto captado pelos órgãos dos sentidos externos, mais exatamente pela vista e a audição, e percepcionado pelos órgãos dos sentidos internos, especialmente a memória e o senso comum. Ou seja, a fé pública do notário é uma potestas que opera no âmbito do conhecimento sensível. Nec plus ultra.
O que refoge deste domínio não recebe o selo da fé pública, por mais possa produzir, na esfera probatória, uma eficácia indiciária.
O tempo é um acidente que não pode mais do que ser captado sensivelmente em sua presencialidade. O passado já não há, o futuro ainda não há. Aquele, o passado, pode ser apreendido intelectualmente, e o futuro pode ser conjecturado pelo entendimento e adivinhado até pela imaginação, mas um e outro, futuro e passado, não podem ser captados pelos órgãos dos sentidos externos. Por isso, não são suscetíveis de atrair a fé pública.
4. Significa que não tem valor probatório essa atestação notarial do tempo de posse?
RD: Não é bem isto. Ela tem valor indiciário, como é próprio de todas as provas que se produzem, tal o caso, fora de um processo e à margem do contraditório. Tem valor privado, particular, mas não de documento público.
Quer dizer, essa “atestação”, seja pela audiência de testemunhas, seja pela vista de documentos (de posse-encargo, p.ex.), valerá como um indício a considerar para a confirmação processual posterior. É só no processo e depois de instaurada a via defensiva e contraditória que poderá pôr-se “a prova à prova”. É com a potencialidade de reproduzir essa prova da “atestação” que ela adquire sua valia, de modo que não pode ser uma potencialidade frustrânea.
5. De maneira que o Sr. distingue entre efeitos de fé pública e de indícios na ata notarial para a usucapião?
RD: Exatamente isto.
Veja este exemplo que me parece esclarecedor: o notário exercita com atração de fé pública a afirmação da identidade das testemunhas ouvidas acerca da posse do prescribente. Se o notário diz que identificou ser “Tício di Peruggia” uma dada testemunha por ele ouvida em audiência e narra o que dele diz ter ouvido, isso não pode ser impugnado fora da via jurisdicional; ou seja, é matéria que escapa da qualificação do registrador.
Mas a veracidade do conteúdo da declaração não se acoberta com a fé pública do notário. Fica a salvo para impugnações extrajudiciais, do registrador inclusive. Porque a afirmação dessa veracidade é mero juízo interpretativo do notário, juízo relevante e que possui caráter indiciário; todavia, proposição intelectual, não atrativa da fé pública. É um juízo que poderá selar-se da autoridade do notário, em sua condição de jurista privado, mas não da potestas pública da fé notarial.
6. O Sr. falou da falta de uma previsão de custeio para o reconhecimento da usucapião extrajudicial…
RD: O problema da gratuidade nas notas e nos registros públicos, a esta altura, pode dizer-se que é sistêmico. Nasceu, há alguns anos, com a gratuidade de alguns atos no registro civil e isto se avolumou, estendendo-se pelas notas e os registros públicos, algo assim como se fosse de supor que as atividades notariais e registrárias não têm custo… ou que seu custeio emerge ex nihilo, por geração espontânea.
Claro é que se o Estado, sendo, como é, uma parte da sociedade política, queira ele próprio arcar com os custos de uma dada prestação de serviço público, destinando-lhe receita de tributos, isto pode acaso entender-se. Mas que transfira esses custos a um gestor privado, isto é coisa muito diversa e que importa em sacrifício anômalo de um particular em favor do todo.
Veja-se que a vigente Constituição federal prevê, no inciso LXXIV de seu art. 5º, que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.
Esta norma consagra com amplitude a noção de “gratuidade da justiça”; a assistência correspondente é integral: “gratuidade da justiça” não é o mesmo que “gratuidade da jurisdição” ou “gratuidade do processo jurisdicional”. Aquela, a “gratuidade da justiça”, é um gênero que compreende todo o objeto da justiça. E esse objeto todo é o direito, não só o que demande prestação judicial. Foi ao Estado –e não aos particulares (é dizer, aos notários e registradores)− que a Constituição atribuiu o dever de prestação da assistência jurídica integral e gratuita, prestação que há de ser eficaz, voltada a obter os resultados jurídicos tanto os emanados do Judiciário, quanto os advindos das atividades extrajudiciais.
O erro histórico, nesta matéria, foi o de as notas e os registros públicos terem assumido o encargo econômico transferido que, à luz da amplitude compreensiva da norma do inciso LXXIV do art. 5º do Código da República, era e é responsabilidade do Estado e não dos delegatários das funções notarial e de registros.
7. E essa falta de previsão persiste no art. 216-A da Lei de Registros Públicos?
RD: De fato, a nova normativa, a do art. 216-A da Lei n. 6.015, é omissa quanto ao custeio da nela referida ata notarial e do processo registrário sucessivo.
Supondo-se que se venha a adotar o critério de literalidade estrita na compreensão desse dispositivo legal, isto redundará na frustração do reconhecimento extrajudicial da usucapião.
É que o tema da compreensão do significado normativo, neste ponto da gratuidade, tem um complicador: as custas são tributo, e não parece que se possa compreender extra litteram uma normativa lacunosa na outorga de isenção dessas custas. Basta ver o que diz o inciso II do art. 111 do Código Tributário Nacional.
Assim, o problema está posto: quem arcará com o custeio da ata notarial prevista no caput do art. 216-A da Lei de Registros Públicos? Quem despenderá o necessário para a cientificação do legitimado tabular e dos titulares de direitos inscritos referentes ao imóvel usucapiendo e a prédios confinantes? Quem pagará os editais e eventual perícia no processo extrajudicial da usucapião?
8. E o Sr. não acha que, nestes casos de gratuidade, a usucapião deve processar-se pela via judicial?
RD: Seria, ao que parece, a resposta mais a calhar, não é? Todavia, isto é exatamente a frustração da norma desse art. 216-A. Porque esse dispositivo emergiu para retirar do Judiciário as usucapiões suscetíveis de consenso, todas elas, incluídas as dos necessitados de patrocínio jurídico estatal.
Ora bem, considere-se este dado: noticia-se que mais de 90% dos processos judiciais de usucapião em curso pelas Varas de Registros Públicos da Capital de São Paulo são feitos que transitam com o benefício da gratuidade. Não posso dizer, é certo, se essa quantidade é ou não similar à de outras Comarcas do Brasil, mas apostaria que, no geral, não será demasiada a diferença.
Então, eis o ponto: a adotar-se a solução que parece mais cômoda, mantendo os casos de gratuidade no âmbito exclusivo do Judiciário, a nova norma estaria frustrada à partida.
9. Haveria alternativa?
RD: Vejamos. Nós devemos considerar a possibilidade de uma síntese superior destes pontos críticos. É muito provável que a orientação pretoriana, trate de evitar a frustração do art. 216-A da Lei de Registros Públicos, quer dizer, trate de superar o óbice da falta de norma isentiva das custas.
Mas isto não terá efetividade se, na prática, redundar num obstáculo de fato do processo extrajudicial da usucapião, por inviabilidade de muitos atos que reclamam custeio.
É evidentemente utópico imaginar que esse custeio financeiro brotará do nada. Lembra-me aqui uma passagem de uma peça de Visniec, em que a personagem, Iuri Petrovski, diz que a utopia começa na boca e acaba em lugar nenhum ou nas estrelas. No nosso caso, ela começa na boca, com um discurso repleto de idealismo utópico, mas acaba de novo de onde saiu: no Judiciário. Ou seja, nosso utopos (o lugar nenhum) será contraditoriamente um lugar: o Judiciário. Vale dizer, não conseguiremos resolver a apoplexia do Judiciário com a depauperação e a paralisia das notas e dos registros.
A alternativa que há, efetivamente, é a de o Estado assumir o dispêndio dos atos notariais e registrários em casos de assistência gratuita, até mesmo por meio de compensação com as custas que devam recolher-se.
10. O Sr. julga que esta assunção econômica estatal é provável?
RD: Ela é necessária economicamente, ela é comutativamente justa, ela é, a meu ver, um imperativo constitucional, mas, de fato, não a considero provável na hora presente: não serei eu a incorrer no idealismo utópico de que faz pouco reclamei.
Com efeito, a má compreensão do conceito de “delegação”, inscrito no caput do art. 236 da Constituição federal de 1988, tem acarretado prejuízos não negligenciáveis em diversas das equações vigentes nas atividades dos notários e registradores públicos, entre elas, talvez de modo mais eloquente, as de natureza econômica e financeira.
Não nos esqueçamos de que nossa legislação foi removendo das funções notariais a prática socialmente salutar de atos que são próprios do Notariado. Abandonamos a prudência que bem se afirmou na popular sentença “cada um no seu quadrado”… Não se chegou mesmo ao ponto de falar-se já em estabelecimento de teto atual de remuneração dos notários e registradores, como se não houvera um ajuste de delegação a respeitar?
Fonte: Colégio Notarial do Brasil