A Justiça de São Paulo condenou um pai a pagar R$ 100 mil de indenização para o filho que não teve afeto. No caso, o pai sempre se negou a assumir a paternidade do filho, concebido fora do casamento, fugindo das obrigações de pai, bem como sempre se furtou em fornecer qualquer tipo de ajuda a ele. Durante toda sua infância e juventude, agiu sempre com frieza, ao contrário do que dispensava aos seus demais filhos, que sempre tiveram apoio moral, afetivo e financeiro.
O filho moveu uma ação contra o pai, visando o reconhecimento da paternidade, a qual tramitou por dezessete anos, culminando na confirmação da filiação. Segundo o filho, tais fatos lhe causaram danos de ordem moral, decorrente do sofrimento, da ausência e rejeição da figura paterna.
O juiz Francisco Câmara Marques Pereira, da 1ª Vara Cível de Ribeirão Preto, do Tribunal de Justiça de São Paulo, entendeu que o filho foi vítima de abandono afetivo, isto porque o pai resistiu de todas as formas possíveis em reconhecer o filho, se furtando a prestar alimentos, colaborar com a criação, educação e todas as demais obrigações que decorrem da paternidade. “Segundo fatos incontroversos, o autor não gozou dos benefícios e do afeto dispensados aos demais filhos do réu, restando evidentes a segregação e a rejeição contra ele manifestadas de forma exclusiva, o que caracteriza ofensa à sua personalidade, honra e dignidade. Bem por isso entendo que se encontram caracterizados os requisitos necessários à obrigação de indenizar”.
Para o advogado Ricardo Calderón, professor de Direito Civil e membro do IBDFAM, a decisão confere reparação por abandono afetivo em uma situação de injustificável desamparo paterno. “Atualmente, os pais não podem se furtar a fazer frente à sua responsabilidade parental perante a sua prole; a ausência do exercício desse dever de cuidado gera o dever de reparar o dano (quando existente). O princípio da afetividade vem reverberando em diversos aspectos do Direito de Família brasileiro, e um deles é justamente a temática do abandono afetivo”, diz.
Segundo ele, a decisão reflete de forma correta o sentido de afetividade jurídica, pois a aplica de forma objetiva, com a compreensão da sua dupla dimensão. “A dimensão objetiva, aquela verificada com base em fatos concretos, e a subjetiva, ou seja, o afeto anímico, que será sempre presumido. Com isso, o julgado buscou averiguar o abandono afetivo em fatos concretos da referida relação, quando constatou que houve efetiva ausência de amparo afetivo, moral e financeiro pelo pai durante toda a infância e adolescência do autor. A comprovação desta situação fática de abandono foi a principal ensejadora da condenação. Como bem afirma a fundamentação da decisão, não se trata de condenar por ‘não amar’, ou algo do gênero. Esta percepção é a aplicação escorreita da afetividade jurídica”, diz.
Além disso, esclarece o advogado, a decisão considera reprovável a postura paterna “procrastinatória” de retardar o reconhecimento da paternidade. “Como o pai postergou por 17 anos o reconhecimento judicial da paternidade (tendo inclusive se negado a fazer o exame em DNA, o que gerou a aplicação da presunção da súmula 301 do STJ), a filiação foi declarada apenas quando o filho já estava com 40 anos de idade, o que também foi motivador da decisão de condenação por abandono afetivo. Parte considerável da fundamentação foi lastreada nesta reprovável postura omissa e resistente do pai em retardar o próprio reconhecimento da paternidade. Esse aspecto da decisão pode ser considerado inovador no Direito brasileiro, embora já apareça há algum tempo em alguns outros países (como a Argentina)”, diz.
Calderón afirma que a reparação monetária por abandono afetivo ainda é objeto de debate entre os juristas, mas vem despontando de forma crescente. “Atualmente, tanto o Direito de Família como a responsabilidade civil estão sendo revistos no cenário brasileiro, de modo que é na confluência entre esses dois ramos do Direito Civil que emergem os casos de abandono afetivo. O imbróglio é inegavelmente complexo e pode exigir a análise de diversas variáveis, o que é desafiador. Este é, certamente, um dos novos temas nos quais têm se debruçado os juristas brasileiros. Embora ainda não exista consenso (o que é muito difícil em se falando de Direito), há uma tendência no sentido de avançar no tratamento jurídico dos casos de abandono afetivo”, diz.
Ele explica, ainda, que a jurisprudência vem, paulatinamente, concedendo reparação nos casos de abandono afetivo. “Uma decisão representativa foi o julgado do Superior Tribunal de Justiça no REsp nº 1.159.242, de Relatoria da Min. Nancy Andrigui, proferido em 2012, que condenou um pai ao pagamento de quantia reparatória pelo abandono afetivo de sua filha”, diz.
A partir de então, conforme o advogado, diversas outras decisões estaduais foram proferidas no mesmo sentido. “Uma das principais consequências desse movimento é justamente chamar a atenção para esses lamentáveis casos de abandono afetivo, que até pouco tempo restavam à sombra do Direito”, diz.
Para Calderón, é importante destacar que a resposta financeira não deve ser a única alternativa. A meta, segundo ele, deve ser evitar que ocorra o abandono afetivo. Para isso, o advogado sugere campanhas que alertem a população sobre a importância da convivência paterno e materno filial, mas reitera que “quando presente o dano, este deverá efetivamente ser reparado”. Cabe recurso.
Fonte: IBDFAM