É importante que se lance um pouco mais de luz sobre a questão do registro único – o banco de dados automatizado, com biometria, que guardará o documento único dos brasileiros, o chamado RNC (Registro Nacional Civil).
Na superfície há uma luta feroz entre o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), a Receita – que administra o CPF (Cadastro da Pessoa Física) -e órgãos estaduais – que procedem à identificação individual das pessoas, através do RG.
A lógica recomendaria a utilização do banco de dados da Receita Federal, que já opera em todo o território nacional. Há problemas no banco de dados, com 215 milhões de CPFs contra 205 milhões de brasileiros. Mas são problemas que se resolvem com muito mais facilidade do que a implantação de um projeto totalmente novo a um custoi de R$ 2 bilhões.
Nos últimos tempos, no entanto, o presidente do TSE Dias Toffoli resolveu cerrar armas em defesa do sistema do TSE.
Sua primeira investida aconteceu no dia da diplomação de Dilma Rousseff, depois da tentativa de impugnar as contas que acabou refluindo por não ter tido a adesão do MInistro Luiz Fux. Toffoli abordou Dilma sobre o tema e, dias depois, foi ao Palácio entregar a proposta inicial da RNC, conferindo ao TSE o controle.
O PL no. 1775/2015 seguiu com a assinatura da Presidência da República e do presidente do TSE, Dias Toffoli.
Sua segunda investida foi no Congresso.
Acompanhado pelo Ministro Gilmar Mendes e pelo então Ministro das Pequenas e Micro Empresas, Guilherme Afif Domingos, pediu ao presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que entregasse o PL a um relator de confiança e agilizasse a tramitação do projeto.
Dos três, apenas Afif tinha interesse de classe no projeto, como porta-voz das associações empresariais.
Foi indicada uma Comissão Especial presidida pelo deputado fluminense Júlio Lopes.
Quando o interesse de Toffoli e Gilmar foi divulgado, Gilmar apressou-se a esclarecer que “todos os estudos técnicos do TSE apontam a adocação do RNC como a solução mais segura”. Ah, bom!
Na Comissão, o projeto manteve-se nas sombras, sem repercussão maior.
À medida que Cunha foi se enfraquecendo, seus pactos foram desmoronando. Com interesses na Prefeitura do Rio, Lopes deve ter-se dado conta do risco de ajudar na aprovação do projeto. Acabou organizando uma audiência pública para a qual foram convidados Toffoli e representantes da Receita Federal.
Nela, Toffoli mostrou-se incomodado com o fato de ser confrontado com especialistas de outros órgãos, reagiu com grosseria às ponderações dos técnicos da Receita. Terminada a cessão, telefonou para o Ministro da Fazenda Joaquim Levy pedindo a cabeça do funcionário. Segundo a assessoria do TSE, não pediu a cabeça: limitou-se a se queixar de que o funcionário estava descumprindo uma decisão de governo.
Segundo a assessoria do TSE, a audiência já estava marcada há dias, portanto não significou nenhum recuo. O convite para que o subsecretário da Receita participasse não estava no programa. Tanto que mereceu críticas acerbas de Toffoli.
Na semana passada, segundo informações que correm em Brasília, teria telefonado a Eduardo Cunha pedindo que acabasse com os trabalhos da Comissão e submetesse o PL diretamente ao plenário, para acelerar o rito.
Ontem, no Canal Livre, da TV Bandeirantes, Toffoli voltou a defender o projeto. O programa foi gravado, sem direito a perguntas, por iniciativa da própria Bandeirantes.
O que está por detrás desse PL
Bancos de dados públicos são das minas de ouro das empresas que trabalham com dados cadastrais.
Desde que foi adquirida pela Experian, a Serasa transformou-se em uma organização extremamente agressiva. Uma de suas grandes tacadas foi conseguir se tornar a porta de entrada para negativação e positivação dos Cadin estaduais.
Começou por São Paulo, na gestão José Serra. No ano seguinte, coincidentemente, adquiriu de Verônica Serra um site de e-mail marketing, o Virid.
Com valor estimado em R$ 30 milhões pelo mercado, pagou R$ 104 milhões – segundo informações colhidas junto a fundos de investimento. Em Londres, manteve o valor sob sigilo.
A primeira tentativa da Serasa de avançar sobre o banco de dados do TSE foi na gestão da Ministra Carmen Lúcia. Sem consultar a presidência, o diretor-geral Anderson Vidal assinou um convênio com a Serasa pelo qual colocaria à disposição da empresa os dados de 141 milhões de eleitores em troca de mil (!) certificados digitais.
Informada pela Corregedoria Eleitoral, imediatamente Carmen Lúcia anulou o convênio.
O convênio previa que a Serasa enviasse o nome da mãe e a data de nascimento para que o TSE validasse a operação;
Carmen Lúcia proferiu uma sentença magistral:
"Assim, os vícios que maculam aquele Acordo levam-me a declarar a sua nulidade, porque eivado de antijuridicidade, que, no caso, conduz à intranquilidade dos eleitores quanto aos dados por eles entregues à guarda e utilização legal da Justiça Eleitoral, que não é senhor das informações nem de seu acesso", completou.
Além do veto, Carmen Lúcia definiu que, dali por diante, contratos só poderiam ser assinados por delegação da Presidência.
No PL de Toffoli, o artigo 😯 prevê que:
“O Tribunal Superior Eleitoral poderá firmar acordo, convênio ou outro instrumento congênere com entidades governamentais ou privadas, com vistas à consecução dos objetivos desta Lei”.
Os direitos do consumidor
Por trás dessas disputas, estão em jogo direitos básicos dos consumidores.
Na próxima semana, por exemplo, um órgão especial do Tribunal de Justiça de São Paulo vai analisar um projeto de lei do 15.659/15, deputado Rui Falcão (PT) pelo qual, antes de protestar o consumidor, a empresa é obrigada a notifica-lo e dar-lhe tempo para se defender.
Pela lei, os órgãos de proteção ao crédito têm a obrigação de comunicar previsamente os consumidores, antes da inclusão dos dados em bancos e cadastros de negativação, mediante Aviso de Recebimento.
Além disso, esses órgãos devem exigir dos credores os documentos que endossem a suposta dívida e a suposta inadimplência do consumidor.
A medida é fundamental para impedir abusos contra consumidores.
Por exemplo, neste momento editoras de revista estão enviando cobranças de assinaturas não solicitadas para milhares de ex-assinantes. Quem se recusar a pagar corre o risco de ver seu nome na lista de devedores da Serasa. Ou seja, qualquer cobrança indevida ou de má fé deixa o consumidor à mercê dos órgãos de proteção ao crédito.
O projeto de Falcão foi vetado pelo governador. O veto caiu na Assembleia Legislativa e agora será apreciado pelo Tribunal de Justiça.
Não apenas pelas questões ligadas aos direitos do consumidor não se recomendam cadastros únicos de cidadãos.
Reunir todos os dados referentes ao cidadão em um único banco de dados centralizado e administrado exclusivamente pelo Estado, é um risco ao direito à intimidade e um risco político também.
Esse foi o fator que levou Estados Unidos, Inglaterra e França a não adotarem o cadastro único. E levou o Colégio Permanente de Presidentes de Tribunais de Justiça, em seu 105o encontro no mês passado, no Rio de Janeiro, a “ratificar de maneira contundente (…) contrariamente à aprovação do PL 1775/2015 (…) que interfere na segurança jurídica do cidadão”.
Esta mesma posição foi endossada pelo Sindicato dos Delegados da Polícia Federal do Estado do Rio de Janeiro, que considerou o PL uma ameaça ao equilíbrio das instituições democráticas por permitir o controle da sociedade por um órgão central.
O artigo falhou ao não informar que o projeto recebeu o apoio da ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República) e da AJUDE (Associação dos Juízes Federais do Brasil).
A assessoria do TSE retificou alguns detalhes do post mas não esclareceu o essencial: o artigo 8o, que permite ao TSE firmar convênios com instituições particulares, ponto central das críticas efetuadas pela Ministra Carmen Lucia e pelo post.
Segundo a assessora:
Em relação ao “convênio’ mencionado em seu texto, o Art.8º diz que “O Tribunal Superior Eleitoral poderá firmar acordo, convênio ou outro instrumento congênere com entidades governamentais ou privadas, com vistas à consecução dos objetivos desta Lei, observado o disposto no art. 31 da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. E o Art1º do PL 1775/2015 deixa claro que o objetivo é identificar o brasileiro nato ou naturalizado, […] Não se fala em transferência de qualquer tipo de dados biográficos ou biométricos do cidadão.
É evidente que esse rabicho visou abrir espaço para convênios sim, como os pleiteados pela Serasa-Experian.
Se a intenção fosse impedir a transferência de "qualquer tipo de dados" o PL seria explícito na proibição. Ao não proibir, autorizou. E a assessoria poderia informar o que significa "identificar o brasileiro", a não ser trocar dados sobre a pessoa.
A assessoria do TSE corrigiu apenas os detalhes e sofismou no essencial. É curioso que, integrando um órgão do Judiciário, a assessoria seja tão inexperiente em relação ao uso de brechas legais.
Se o TSE e Toffoli quiserem dar legitimidade ao RNC, basta suprimir o artigo 8o.
Fonte: Jornal GGN