Artigo – A confirmação do testamento particular durante a crise da Covid-19 – Por Edgard Audomar Marx Neto e Laura Souza Lima e Brito

As mudanças na vida da população em decorrência das restrições impostas pelas medidas de enfrentamento da pandemia viral que assola o globo têm despertado inúmeras reflexões sobre a aplicação dos institutos jurídicos, abruptamente submetidos a um novo pano de fundo. Isto não quer dizer que da nova realidade deva nascer um direito absolutamente novo, mas que se deve pensar na adequação das antigas soluções aos novos problemas, na eventual necessidade de soluções ainda não pensadas ou, talvez, reconhecer que algumas relações apresentam maior imunidade à realidade transitória imposta pelo vírus.

Para além das questões contratuais, o funcionamento de todo o sistema de direito privado desafia reflexões. Os prazos continuam a correr enquanto não aprovado o Projeto de Lei que determina a suspensão de sua contagem (PLS 1.179/20), os débitos são devidos, alimentos devem ser pagos, a assistência material e imaterial deve ser prestada. Neste panorama, o presente ensaio se volta a uma questão que poderia parecer secundária: temendo uma fatalidade, seja na iminência mais ou menos real da finitude, como a pessoa poderia realizar um testamento válido em tempos de isolamento social?

A elaboração do testamento no Direito brasileiro exige, em regra, a presença de testemunhas da manifestação de última vontade. São duas testemunhas na presença do tabelião, no caso do testamento público (art. 1.864, II, CC); duas testemunhas do auto de aprovação no caso do testamento cerrado (art. 1.868, III, CC); e três testemunhas no caso do testamento particular (art. 1.876, §1º, CC).

Além disso, o nosso Código Civil admite um caso especial de testamento particular. O artigo 1.879 prescreve que, “em circunstâncias excepcionais declaradas na cédula, o testamento particular de próprio punho e assinado pelo testador, sem testemunhas, poderá ser confirmado, a critério do juiz”.

Não há dúvidas de que a declaração de pandemia por Covid-19 pela Organização Mundial da Saúde com a recomendação de isolamento social1 é uma situação sem precedentes que configura circunstância especial que justifica a iniciativa de elaborar um testamento sem a possibilidade das suas formalidades de praxe. Uma pessoa que sente necessidade de deixar registradas suas disposições de última vontade e está em situação de isolamento social pode fazê-lo sem a necessidade de testemunhas.

A grande questão é que esta espécie de testamento poderá ser confirmada a critério do juiz, o que passa a impressão de eventualidade. Entende-se, entretanto, que este é um poder-dever do magistrado. Confirmados os requisitos mínimos e evidenciado por outros elementos que se trata realmente da vontade do testador, o exercício da autonomia da vontade deve ser prestigiado.

Ascensão ensina que “para respeitar a vontade do autor da sucessão, há que fazer o quanto possível o aproveitamento do negócio, mesmo que haja defeitos que o inquinem”2. Sobre a questão, recentemente o Superior Tribunal de Justiça julgou que “em se tratando de sucessão testamentária, o objetivo a ser alcançado é a preservação da manifestação de última vontade do falecido, devendo as formalidades previstas em lei serem examinadas à luz dessa diretriz máxima, sopesando-se, sempre casuisticamente, se a ausência de uma delas é suficiente para comprometer a validade do testamento em confronto com os demais elementos de prova produzidos, sob pena de ser frustrado o real desejo do testador”3.

Na hipótese do art. 1.879, todavia, nem se trata de defeito do negócio, mas de abrandamento dos requisitos para a validade do testamento em decorrência de circunstâncias extraordinárias.

Caso se decida pela elaboração do testamento na modalidade do art. 1.879, é necessário que o declarante tenha o cuidado de fazer constar que o testamento foi elaborado no contexto da pandemia, anotando, se possível as razões preponderantes de seu isolamento. Esta cautela é ainda mais relevante quando não há risco de morte iminente, mas tão somente uma preocupação com doença que avança.

Quanto à forma do testamento, a lei determina que seja feito de próprio punho e assinado pelo testador. Este requisito do artigo 1.879 se opõe à flexibilidade do artigo 1.876 que, tratando dos testamentos particulares em geral, já admite que seja escrito de próprio punho ou mediante processo mecânico. Ensina Zeno Veloso que “as circunstâncias excepcionais, que dão ideia de urgência, imprevisibilidade, de fatos graves, podem ser as mais diversas: o testador está no meio de uma enchente, de um incêndio, num lugar isolado, sem comunicação, perdido; está no hospital, numa CTI, e sente a proximidade da morte”4. Neste sentido, ele defende a impossibilidade de meios mecânicos. Porém, em casa, com acesso ao computador e à impressora, isolado pelo coronavírus, por que o uso destas ferramentas, acompanhado da assinatura, obstaria a confirmação do testamento? Nestes tempos de uso massivo do computador, embora a exigência estrita da escrita à mão não seja coerente com a ampliação das possibilidades de manifestação de última vontade, a exigência de forma deve ser compreendida como garantia da efetividade dos direitos e manifestação da segurança jurídica. A exigência de formas, em geral, não constitui restrição a direitos, mas se vincula ao exercício regular dos direitos, não devendo ser afastada por simples razão de comodidade.

A ausência de testemunhas não se justifica somente se o declarante estiver completamente isolado e sem contato algum com outras pessoas. Isto porque, mesmo que o testador esteja no convívio de sua família nuclear durante a pandemia, há grandes chances de suas companhias sejam também seus herdeiros e legatários, o que os impede de testemunhar5. Caso não sejam nomeados, a condição de testemunha pode causar um conflito no seio familiar em plena pandemia, além do desconforto geral que a própria pretensão de testar pode causar em um momento de tensão como este.

Importante ainda chamar a atenção para o cuidado com os elementos externos à declaração de última vontade. O testamento é ato formal e solene e somente a vontade ali declarada pode ser confirmada e interpretada pelo juiz. Contudo, atos que corroboram que o testamento foi elaborado e assinado pelo declarante devem ser registrados e devem ser usados para auxiliar na confirmação. A troca de e-mails e mensagens eletrônicas com amigos ou advogado de confiança sobre o conteúdo do testamento, fotos da assinatura e do local em que foi guardado o instrumento, além de vídeos complementares, podem reforçar a legalidade e a legitimidade desta espécie de testamento.

Passada a pandemia e a recomendação de isolamento social, a declaração excepcional, feita sem as formalidades legais dos testamentos ordinários, perde a sua eficácia e, caso a vontade ali manifestada seja definitiva, deve ser novamente expressada em uma das modalidades tradicionais de testamento. Neste ponto, lembra-se das lições de Zeno Veloso, que defende que o testamento em circunstâncias excepcionais se aproxima mais das formas especiais que das ordinárias de testamento. Por isso, em analogia, devem ser aplicados os artigos 1.891 e 1.895 do Código Civil, com o entendimento de que caducará o testamento se o testador não morrer e nem declarar sua vontade na forma ordinária nos 90 dias subsequentes do fim da situação atípica6. Nesse sentido, ademais, é a previsão do Enunciado n. 611 da VII Jornada de Direito Civil: “O testamento hológrafo simplificado, previsto no art. 1.879 do Código Civil, perderá sua eficácia se, nos 90 dias subsequentes ao fim das circunstâncias excepcionais que autorizaram a sua confecção, o disponente, podendo fazê-lo, não testar por uma das formas testamentárias ordinárias”.

Entende-se que o art. 1.879 traz pronta uma solução jurídica muito interessante para os que pretendem manifestar seus desejos em situação de pandemia e isolamento social.

Registra-se que o PL 1.627/2020, de autoria da Senadora Soraya Thronicke, que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito de Família e das Sucessões no período da pandemia causada pelo coronavírus SARS-CoV2 (Covid-19), foi retirado de tramitação, em caráter definitivo, a pedido da autora7. Havia, nessa proposição, a sugestão de que os testamentos particulares poderiam ser escritos ou gravados, desde que gravadas imagens e voz do testador e das testemunhas, quando exigidas, por sistema digital de som e imagem. Ainda, anota que, sob pena de caducar, o testamento deveria ser confirmado pelo testador na presença de três testemunhas em até 90 dias contados da data em que cessarem as determinações emanadas das autoridades públicas impositivas de isolamento social ou quarentena. Por fim, o projeto de lei considerava o prazo de 90 dias do fim da pandemia para a confirmação das declarações feitas em isolamento.

Em resumo, o instrumento posto em lei, embora possa ser aprimorado pelo legislador, já é capaz de resolver a questão inicial e propiciar às pessoas a realização de testamento válido, com flexibilização formal extraordinária.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

1 “A Organização Mundial da Saúde declarou que a rápida expansão do novo coronavírus pelo mundo já se configura como uma pandemia. O anúncio foi feito nesta quarta-feira, 11, pelo diretor-geral da entidade, Tedros Adhanom Ghebreyesus, durante coletiva de imprensa.” Disponível em <https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,oms-declara-pandemia-de-novo-coronavirus-mais-de-118-mil-casos-foram-registrados,70003228725>, acessado em 02.04.2020. No Brasil, em 07.02.2020 já havia sido publicada a Lei nº 13.979, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, tratando da medida de isolamento. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L13979.htm>, acessado em 02.04.2020.

2 Ascensão, J. Oliveira. A teoria geral do negócio jurídico e o negócio testamentário. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XLIV, nº 1 e 2, 2003, p. 37.

3 Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.633.254/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, Segunda Seção, julgado em 11/03/2020, DJe 18/03/2020.

4 Veloso, Zeno. Testamento: noções gerais; formas ordinárias. In: Revista do Advogado, nº 112, ano XXXI, junho de 2011, p. 195.

5 “Além das pessoas indicadas no dispositivo genérico (CC, art. 228), é preciso endossar a tese doutrinária de que o beneficiário direto ou indireto das disposições testamentárias também está impedido de atuar como testemunha. Com isso, o familiar (cônjuge, companheiro ou parente), o amigo íntimo ou o inimigo capital do beneficiário do testamento, herdeiro ou legatário, não pode funcionar como testemunha, por contado comprometimento de sua imparcialidade.” Farias, Cristiano de; Rosenvald, Nelson. Curso de Direito Civil: Sucessões, vol. 7. São Paulo: Atlas, 2015, p. 344.

6 Veloso, Zeno. Testamento: noções gerais; formas ordinárias. In: Revista do Advogado, nº 112, ano XXXI, junho de 2011.

7 https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141455.

 

Edgard Audomar Marx Neto é doutor em Direito e professor na Faculdade de Direito da UFMG.

Laura Souza Lima e Brito é doutora e mestre pela Faculdade de Direito da USP, graduada em Direito pela UFMG, professora na Faculdade de Direito do Uni-BH e advogada especializada em Direito de Família e das Sucessões.

 

Fonte: Conjur

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