O artigo 1.071 do novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015), que entrará em vigor a partir de 18 de março de 2015, acrescentou o artigo 216-A à Lei 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), instituindo o procedimento do pedido de reconhecimento extrajudicial da usucapião[1].
O procedimento do pedido de reconhecimento extrajudicial da usucapião sem dúvida é a grande novidade do estatuto processual nessa temática e tem por objetivo desjudicializar e facilitar a declaração de aquisição da propriedade pela usucapião em qualquer das modalidades previstas na legislação civil, incluindo as leis especiais, independentemente da intervenção do Poder Judiciário.
Em nosso sentir, a desjudicialização almejada pelo legislador merece elogios, principalmente no tocante às posses com ânimo de proprietário inequivocamente consolidadas e aos possuidores detentores de justo título que por alguma razão estão impedidos de levá-lo a registro, seja por algum vício formal no título, pela falta de registro dos negócios jurídicos anteriores feitos por compromisso particular ou pela ausência/recusa do proprietário ou titular de outro direito real sobre o imóvel em outorgar a escritura pública definitiva para transcrição no competente registro de imóveis. O novo procedimento poderia evitar a multiplicação de ações de usucapião de posses consolidadas, de adjudicação compulsória e até mesmo dos pedidos de alvará para transferência de imóvel em razão da morte do compromissário vendedor.
Todavia, as alterações feitas pelo Senado quando da revisão do texto substitutivo aprovado na Câmara dos Deputados esvaziaram por completo a eficácia do instituto, que nascerá morto e sem utilidade prática se mantida a interpretação conferida pelo Senado.
Em síntese, a atual redação do artigo 1.071 do novo CPC (artigo 213-A, LRP) transforma a usucapião extrajudicial em um “procedimento consensual para declaração da aquisição da propriedade”, anunciando, desde já, a falência do instituto na imensa maioria dos casos, que naturalmente envolvem algum conflito de interesses entre as partes ou confinantes, ainda que tal conflito se restrinja à indiferença dos proprietários ou titulares no registro e também dos confinantes em apresentar expressa concordância ao pedido extrajudicial de usucapião.
Conforme o artigo 1.071 do novo CPC (artigo 213-A, LRP), o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, deve ser instruído, dentre outros documentos, com a “planta e memorial descritivo assinado por profissional legalmente habilitado, com prova de anotação de responsabilidade técnica no respectivo conselho de fiscalização profissional, e pelos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes” (inciso II).
Como se vê, ao exigir a assinatura da planta e do memorial descritivo pelos titulares de direitos reais na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, impõe-se, obviamente, a necessidade de concordância de todos os envolvidos para a tramitação do pedido extrajudicial.
A par do cuidado em tal exigência para se evitar que o direito fundamental à propriedade (de acesso à propriedade versus perda da propriedade) reste submetido apenas ao crivo do oficial de registro de imóveis, parece nítido àqueles com alguma experiência prática na área que mesmo nos casos que envolvem apenas a regularização documental para a aquisição da propriedade, já mencionados acima, titulares de direitos reais ou confinantes tendem a se omitir na resolução extrajudicial do conflito ou às vezes até a embaraça-la (exigindo valores do possuidor para conceder sua anuência, por exemplo), o que pode acarretar na inaplicabilidade do novel instituto.
Mas essa exigência do inciso II não seria empecilho para o reconhecimento da usucapião extrajudicial se os parágrafos 2º e 6º, do mesmo dispositivo legal, não tivessem sido alvo de alteração de redação no Senado que acarretou o esvaziamento completo do procedimento extrajudicial de usucapião. Isto porque o parágrafo 2º do artigo 1.071 (artigo 213-A, LRP) dispõe que, “se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, esse será notificado pelo registrador competente, pessoalmente ou pelos Correios com aviso de recebimento, para manifestar seu consentimento expresso em 15 (quinze) dias, interpretado o seu silêncio como discordância”. (grifo nosso).
Da mesma forma, o parágrafo 6º autoriza o registro da usucapião pelo oficial apenas na hipótese de “inclusão da concordância expressa dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes”.
Portanto, não estando a planta assinada pelos titulares de direito real registrados ou averbados na matrícula e na matrícula dos imóveis confinantes, esses serão notificados para oferecer concordância, interpretando o silêncio como discordância[2], o que acarretará na rejeição do pedido extrajudicial por inadequação da documentação (parágrafo 8º) e a obrigatoriedade de propositura de ação judicial para declaração da usucapião (parágrafo 9º), sepultando de alguma eficácia e utilidade o procedimento de usucapião extrajudicial.
Parece-nos, assim, que da forma como aprovado, dificilmente o procedimento extrajudicial de usucapião atingirá o seu objetivo de desjudicialização desse tipo de demanda, mesmo nas hipóteses em que não haja efetivo conflito de interesses entre as partes. Resta investigarmos, portanto, qual a razão para instituição de um procedimento extrajuidicial que se distancia de sua inspiração legislativa contida no artigo 213 da Lei 6.015/1973 (com redação dada pela Lei 10.931/2004) e torna praticamente inatingível a obtenção do direito material que ensejou a sua criação.
Para tanto, é imprescindível voltamos os olhos ao processo legislativo de elaboração do novo CPC.
O projeto do novo CPC foi iniciado no Senado (PLS 166/2010), cuja redação, votada e aprovada em 15 de dezembro de 2010, não contemplava o procedimento para reconhecimento da usucapião extrajudicial[3]. O projeto seguiu à Câmara dos Deputados para tramitação e votação do substitutivo da Câmara dos Deputados (SCD 8.046-A/2010), que, dentre outras alterações, incluiu o procedimento para reconhecimento da usucapião extrajudicial no artigo 1.085 do projeto de novo CPC[4].
O texto aprovado na Câmara dos Deputados não previa a interpretação do silêncio como discordância (parágrafo 2º), ao contrário, deixava suficientemente claro que decorrido o prazo após a notificação sem impugnação dos titulares de direito real ou confinantes e estando em ordem os demais documentos, o oficial procederia ao registro da aquisição do imóvel em nome do requerente (parágrafo 6º), conforme original destacado abaixo:
Parágrafo 2º. Se a planta não contiver a assinatura de algum confinante, titular de domínio ou de direito real, este será notificado pelo oficial de registro de imóveis competente, para manifestar-se em quinze dias; a notificação pode ser feita pessoalmente, pelo próprio oficial registrador, ou pelo correio, com aviso de recebimento.
Parágrafo 6º. Transcorrido o prazo da última diligência notificatória sem qualquer impugnação e achando-se em ordem a documentação, o oficial de registro de imóveis registrará a aquisição do imóvel com as descrições apresentadas, sendo permitida a abertura de matrícula, se for o caso.
Após aprovação, o projeto substitutivo da Câmara retornou ao Senado para apreciação das emendas inseridas pelos deputados, observando o disposto no artigo 65, parágrafo único, da Constituição Federal.
Conforme consta do Parecer 954/2014, da Comissão Temporária do Código de Processo Civil do Senado sobre o substitutivo da Câmara dos Deputados, nesse momento legislativo deve-se observar o disposto no artigo 137 do Regimento Comum “ao votar as emendas oferecidas pela Câmara revisora, só é lícito à Câmara iniciadora cindi-las quando se tratar de artigos, parágrafos e alíneas, desde que não modifique ou prejudique o sentido da emenda”, devendo igualmente ser observado o disposto no artigo 285 do RISF, no sentido de que “a emenda da Câmara a projeto do Senado não é suscetível de modificação por meio de subemenda”, de maneira que o Senado só pode: (a) rejeitar o texto do SCD, restabelecendo texto correlato do PLS; (b) suprimir texto do SCD sem texto correlato do PLS; (c) restabelecer texto do PLS que não tenha texto correlato no SCD; ou (d) promover modificações meramente redacionais[5].
Entretanto, o próprio Parecer 954/2014, da Comissão Temporária do Código de Processo Civil[6], entendendo que o silêncio dos titulares de direito real sobre o imóvel importa em discordância, inseriu as seguintes emendas ao substitutivo aprovado pela Câmara dos Deputados, dentre outras, denominando-as de emendas de redação para afastar dúvidas decorrentes da redação do dispositivo:
Em suma, são necessários os seguintes ajustes de redação para afastar dúvidas decorrentes da redação dos preceitos disciplinadores do procedimento do usucapião extrajudicial:
e) no parágrafo 2º do artigo 216-A da LRP, explicitar, como esclarecimento da disciplina da matéria do usucapião extrajudicial (emenda de mera redação), que o silêncio do titular de direito real sobre o imóvel usucapiendo ou sobre os imóveis confinantes presume discordância, a fim de afastar possível tese de “revelia administrativa”.
i) no parágrafo 6º do artigo 216-A da LRP, realçar a necessidade de haver o consentimento expresso dos titulares de direitos tabulares sobre os imóveis usucapiendo e confinantes, a fim de afugentar distorcida interpretação a favor da admissibilidade da “revelia administrativa”;
Tal redação final foi votada e aprovada no Plenário pelo Senado em 17 de dezembro de 2014, consolidando o texto do novo CPC, sancionado em março de 2015 sem vetos no tocante ao artigo 1.071 (artigo 213-A, LRP), mantendo a emenda do Senado ao substitutivo da Câmara dos Deputados nos parágrafos 2º e 6º, que determinam que o silêncio deve ser interpretado como discordância ao pedido.
Em que pese a sempre relevante opinião de professores como Cássio Sarpinella Bueno, que sustenta não ter havido modificação de sentido na versão final votada no Senado em relação ao substitutivo da Câmara dos Deputados[7], temos que as alterações do Senado na redação dos parágrafos 2º e 6º do artigo 1.071 do novo CPC (artigo 213-A, LRP) não podem ser compreendidas apenas como emendas de redação ou de esclarecimentos, razão apela qual são formalmente inconstitucionais por ofensa ao disposto no artigo 65, parágrafo único, da Constituição Federal.
Além disso, as alterações desvirtuaram o sentido da norma e a intenção da Câmara dos Deputados ao incluir a interpretação do silêncio como discordância dos titulares, sepultando qualquer eficácia e utilidade do procedimento de usucapião extrajudicial do novo CPC.
A necessidade de concordância dos titulares de direito real sobre o imóvel atenta contra o próprio instituto da usucapião. Tanto no aspecto subjetivo que fundamenta a usucapião, em que a inércia omissão do titular acarreta a aquisição da propriedade pelo possuidor, quanto no objetivo, em que “a ação do tempo sana os vícios e defeitos dos modos de aquisição da propriedade porque a ordem jurídica tende a dar segurança aos direitos que confere, evitando conflitos, divergências ou mesmo dúvidas”, sendo certo que “acabar com as incertezas é a razão final da usucapião”[8], é incompreensível a exigência de concordância expressa do titular que, mesmo notificado, não apresenta impugnação, interpretando-se seu silêncio como discordância.
Em outras palavras, tal interpretação equivale dizer ao jurisdicionado que ele adquiriu a propriedade de determinado imóvel pela inércia do titular por certo período de tempo e que o sistema jurídico deseja que a usucapião seja declarada em seu favor, mas que não poderá fazê-lo extrajudicialmente (de forma célere, eficaz e assegurado o contraditório e a ampla defesa na seara administrativa) porque o titular permaneceu inerte e não respondeu à notificação enviada pelo oficial de registro de imóveis. Em síntese: a propriedade foi adquirida em razão da inércia do titular, mas a aquisição não pode ser declarada extrajudicialmente em razão da inércia do titular.
Também por esse ponto de vista é que a interpretação do silêncio como discordância não se coaduna com o nosso sistema jurídico. O artigo 111 do Código Civil — que trata especificamente sobre negócios jurídicos, mas é aplicável como parâmetro interpretativo a todo o sistema — determina que o silêncio deva ser interpretado como concordância, desde que as circunstâncias e os usos autorizem e não seja necessária declaração expressa. Na usucapião extrajudicial, não há como interpretar o silêncio de outra forma que não seja o desdobramento da inércia que acarretou na própria aquisição da propriedade pelo possuidor, a ser declarada em regular procedimento administrativo em trâmite pelo oficial de registro do local do imóvel, sempre sob a correição de juiz investido na jurisdição estatal.
Em conclusão, sopesados esses argumentos, resta identificar as possíveis alternativas para garantir alguma eficácia e aplicabilidade prática ao instituto da usucapião extrajudicial constante no artigo 1.071 do novo CPC (artigo 213-A, LRP).
Inicialmente, há de ressaltar a possibilidade (improvável) de alteração legislativa do dispositivo para restauração da redação final do substitutivo da Câmara dos Deputados, já que a matéria não foi incluída no recente projeto de Lei 2384/2015, originado na Câmara, para alteração, em regra, do regime de admissibilidade recursal nos tribunais superiores instituído pelo novo CPC, já aprovado em revisão no Senado em 15 de dezembro de 2015 (PLS 168/2015).
No mais, considerando que as alterações do Senado na redação dos parágrafos 2º e 6º do artigo 1.071 do novo CPC (artigo 213-A, LRP) não podem ser compreendidas apenas como emendas de redação ou de esclarecimentos, conclui-se pela inconstitucionalidade formal dos referidos dispositivos por ofensa ao disposto no artigo 65, parágrafo único, da Constituição Federal, sujeitando-os à declaração de inconstitucionalidade pelo STF em controle abstrato de constitucionalidade, via de ação por um dos legitimados do artigo 103 da Constituição Federal.
Por fim, considerando não caber ao oficial de registro de imóveis eventual análise sobre a inconstitucionalidade formal na redação dos parágrafos 2º e 6º do artigo 1.071 do novo CPC (artigo 213-A, LRP), tampouco a interpretaçãocontra legem do silêncio do titular como aquiescência ao registro da usucapião, poderá o juiz corregedor da respetiva serventia apreciar a inconstitucionalidade formal dos referidos dispositivos em controle difuso de constitucionalidade, de forma incidental em procedimento de dúvida a ser suscitado pelo requerente, conforme parágrafo 7º do mesmo dispositivo, e de acordo com a Lei 6.015/1973, ou mesmo o juiz natural que receber a ação de usucapião mencionada no parágrafo 9º, determinando, em ambos os casos, de acordo com a interpretação do silêncio no aso concreto[9], o registro da usucapião extrajudicial nos termos do artigo 1.071, parágrafo 6º, do novo CPC (artigo 213-A, LRP).
[1] Destaca-se, aliás, que o novo CPC não reproduziu a ação de usucapião prevista no CPC vigente (artigos 941/945) entre os procedimentos especiais regulamentados pelo novo estatuto processual civil, que trata do assunto apenas ao dispor sobre a citação dos confinantes do imóvel usucapido (artigo 246, parágrafo 3º, novo CPC) e da publicação dos editais na ação de usucapião (artigo 259, I, novo CPC). Tal supressão não significa que ação de usucapião foi extinta do sistema processual brasileiro, vez que apenas deixou de ser enquadrada como procedimento especial e tramitará, a partir da vigência do novo CPC, pelo procedimento comum instituído no artigo 318, e seguintes, do novo CPC, ressalvados os procedimentos previstos em leis especiais.
[2] Consigna-se, a propósito, que a Lei 10.931/2004, que alterou os artigos 212 e 213 da Lei 6.073/1973, instituiu, com sucesso, o procedimento para retificação extrajudicial do registro de imóveis, que serviu de inspiração ao procedimento de reconhecimento extrajudicial de usucapião instituído pelo novo CPC. Nesse procedimento, entretanto, se a planta não contiver a assinatura de algum confrontante (artigo 213, parágrafo 2º), o oficial deve efetuar a sua notificação (artigo 213, parágrafo 3º), interpretando-se o silêncio como anuência (artigo 214, parágrafo 4º) (grifo nosso).
[3] http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/97249.
[4]Clique aqui para visualizar.
[5] http://www.senado.leg.br/atividade/rotinas/materia/getPDF.asp?t=157884&tp=1
[6] http://www.senado.leg.br/atividade/rotinas/materia/getPDF.asp?t=159354&tp=1
[7] “A versão final aprovada pelo Senado Federal traz alterações que parecem ser meramente redacionais no inciso II, nos parágrafos 2º, 6º e 10 do dispositivo, e que, por isso, não atritam com o artigo 65, parágrafo único, da CF. Isto porque é possível entender que, naqueles dispositivos, foi esclarecido o que deve ser compreendido por “titular de domínio ou direito real”, que era a expressão anterior empregada pela Câmara dos Deputados, além de evidenciar o que já decorria suficientemente dos parágrafos 4º e 6º, em sua redação original, no sentido de ser de quinze dias o prazo para responder a notificação a ser feita pelo registrador (parágrafo 2º) e de se presumir o silêncio do notificando como discordância com o pedido de usucapião. (BUENO, Cássio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil Anotado. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 704).
[8] GOMES, Orlando. Direitos Reais. 20ª Ed. Atualizada por Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 181.
[9] “O silêncio é a inércia do agente que, de acordo com a análise das circunstâncias do caso, pode provocar efeitos de uma declaração volitiva. É o juiz quem deve averiguar, consideradas as circunstâncias as circunstâncias objetivas e subjetivas do caso, se o silêncio introduziu, ou não, declaração de vontade no caso concreto.” (FARIAS, Cristiano Chaves de.; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Volume 1. 11ª Edição. Editora JusPODIVM, 2013, p. 612).
Felipe Pires Pereira é defensor público no estado de São Paulo, doutorando em Direito Civil pela PUC-SP e professor de Direito Processual Civil e Prática Jurídica Civil na Universidade Católica de Santos.
Fonte: ConJur