Introdução
A igualdade, em seu viés material, é valor fundante da democracia, na medida em que sua efetiva concretização é condição necessária para a realização dos demais valores e princípios assegurados pela Constituição de 19881.
A mudança de modelo jurídico do Estado Liberal para o Estado Providência ou Social, no contexto de surgimento dos direitos de segunda geração, foi motivada pelo reclamo social pela mitigação das desigualdades materiais entre diferentes classes e grupos de indivíduos2. Enquanto no Estado Liberal imperava o discurso desregulamentador3, com foco na preservação da individualidade em face do Estado, isto é, na redução da influência estatal na vida particular, o advento do Estado de Providência atendeu justamente ao reclamo social por uma postura mais ativa do Estado na sociedade e na economia.
Sucede que, se por um lado o modelo de Estado liberal serviu à afirmação dos direitos individuais em contraposição ao Estado absoluto, fixando espaços de não interferência estatal (como a propriedade e o contrato), por outro mostrou-se insuficiente para enfrentar os desafios revelados no seio da sociedade urbano-industrial do século XX. A postura absentista do Estado, ao longo da crise da industrialização e recrudescimento do capitalismo, propiciou um crescente descompasso entre a situação material dos diversos grupos sociais, marcada pela crescente desigualdade socioeconômica, e o postulado abstrato de igualdade jurídica.
Nesse cenário, intensificavam-se os reclamos populares por modificações na (falta de) atuação do Estado, em prol da consecução de uma igualdade material em detrimento da isonomia meramente formal. Tal movimento culminou na gênese do Estado Providência, marcado por um influxo protetivo também nas relações privadas, tendo em vista garantir a realização de valores de cunho social. O grande objetivo do Estado Providência, nesse sentido, foi compatibilizar as promessas da modernidade (igualdade, justiça social, e garantia dos direitos fundamentais) com o desenvolvimento capitalista4.
A ideia de igualdade substantiva pode ser traduzida, grosso modo, na máxima – frequentemente suscitada – de que a lei deve tratar cada um na medida de sua desigualdade. A "medida da desigualdade", evidentemente, deve ter respaldo constitucional, já que apenas podem ser consideradas legítimas as diferenciações motivadas por valores constitucionalmente consagrados. Em outras palavras, a Constituição de 1988 não repudiou o "tratamento diferenciado" – muito pelo contrário: o institucionaliza em diversas passagens – justamente porque direcionado a uma igualdade substantiva, cuja efetivação depende do reconhecimento de naturais diferenças entre as pessoas, e do esforço para a redução da desigualdade material ocasionada por essas diferenças.
Isso implica que nem todo tratamento desigual pela lei é sinal de inconstitucionalidade: o tratamento diferenciado a pessoas diferentes, em determinados casos, pode ser perfeitamente adequado à Constituição, mostrando-se como uma verdadeira condição de realização de seus valores fundamentais.
Tomando por base tais premissas, e adentrando o tema do registro civil de nascimento, entra em relevo a questão do papel da mãe e do pai no procedimento registral previsto pela lei 6.015 de 1973 (Lei dos Registros Públicos – LRP). O tema tangencia a questão da isonomia – notadamente da igualdade entre os sexos – haja vista que a LRP, em mais de uma passagem, faz menção à mãe ou ao pai de modo discriminado, trazendo regras que denotam um tratamento desigual entre ambos.
A dificuldade teórica reside no fato de que, dentre essas desigualdades, algumas são meramente aparentes, ou seja, relacionam-se não diretamente ao sexo do genitor, mas a fatores de ordem prática. Ou seja, não é o simples fato de distinguir o pai da mãe que torna a regra uma "questão de gênero". E mais: mesmo entre aquelas distinções realmente fundadas na diferença entre os gêneros, não há uma necessária inconstitucionalidade, já que, como dito acima, a igualdade consagrada na Constituição de 1988 é substantiva, o que abre espaço para perquirir se há – ou não – um critério válido de discrímen subjacente à regra, capaz de torna-la legítima a despeito (ou justamente em consequência) da distinção legal.
Esse raciocínio ganha ainda maior pertinência ao se considerar que a lei registral foi editada ainda sob a égide da ordem constitucional anterior, e por isso nem todos os seus dispositivos foram plenamente recepcionados pelo novo ordenamento. Naturalmente, a ruptura institucional representada pela constituinte de 1988 trouxe a necessidade de um filtro crítico sobre a legislação pretérita, tomando-se por paradigma a nova Constituição, de modo a determinar o que foi e o que não foi recepcionado pelo Direito então inaugurado. Conforme se verá nos tópicos próprios, a constatação de incompatibilidades e anacronismos no texto da lei registral ensejou, inclusive, modificações pontuais em determinados dispositivos.
Há cinco tópicos, no âmbito do registro civil de nascimento, em que o gênero dos genitores é relevante para determinar o procedimento a ser adotado, e que serão tratadas nos itens a seguir. São eles: obrigação de declarar o nascimento; a competência territorial do registrador civil; o prazo para registro; o estabelecimento da paternidade/maternidade; e a recém-inaugurada "opção de naturalidade".
Obrigação de declarar o nascimento
A Lei dos Registros Públicos impõe a ambos os genitores a obrigação prioritária de declarar, conjunta ou isoladamente, o nascimento dos filhos. Tal obrigação decorre do dever de criar a assistir os filhos menores5, de representa-los judicial ou extrajudicialmente6, além do princípio da paternidade responsável7, que deve orientar o planejamento familiar8. Num viés pragmático, pode-se também argumentar que, sendo os genitores as pessoas mais próximas do neonato, ninguém mais qualificado, em tese, para declarar com exatidão as circunstâncias do fato nascimento e definir os elementos de individualização da criança, como o nome e o parentesco.
A atual redação do art. 52, porém, é recente, sendo fruto da modificação implementada pela lei 13.112 de 30 de março de 2015. Até então, a obrigação de declarar o nascimento, mesmo entre os genitores, era sucessiva, sendo que recaía primariamente sobre o pai, e apenas subsidiariamente sobre a mãe, isto é, na falta ou impedimento do pai.
A doutrina em geral interpretava a prioridade paterna com base em dois principais argumentos: i) a necessidade de resguardo da mãe durante o período do puerpério, que a obstaria de comparecer pessoalmente no registro civil no prazo ordinário de 15 dias após o parto, tornando necessário um prazo adicional posterior; ii) o incentivo ao reconhecimento de paternidade, já que o comparecimento do pai no cartório para declarar o nascimento do filho implica o reconhecimento espontâneo da filiação (em hipótese em que não há casamento ou união estável formalmente estabelecida).
Quanto ao primeiro argumento, porém, não se pode desconsiderar que, sendo uma extensão do poder-familiar, declarar o nascimento dos filhos é não apenas um dever mas também um poder dos pais, que neste momento realizam também o ato de escolha do prenome do mesmo, bem como, podem praticar a recentíssima "opção de naturalidade", determinando, assim, elementos importantíssimos de individualização e identificação da criança. Aliás, se o intuito da regra fosse tão somente proteger a mãe, nada impediria que lhe fosse concedido um prazo adicional sem, contudo, restringir sua legitimidade para proceder à declaração nos primeiros dias do nascimento.
No que tange ao segundo argumento, considerando que inexiste atualmente sanção ao descumprimento do dever de declarar o nascimento do neonato, não parece que a prioridade do pai para o exercício deste múnus represente um efetivo incentivo. Aliás, sequer é razoável supor que impedir a declaração da mãe nos primeiros 15 dias serviria de incentivo ao pai a reconhecer o filho que não pretendesse reconhecer. Aliás, mesmo quando existia sanção direta ao atraso na declaração, a multa recaía sobre quem efetivamente comparecesse em cartório para declarar o nascimento, e não sobre o principal obrigado a tal (o pai).
Ambos os argumentos, no final, parecem sugerir que o espírito da regra era tão somente proteger a mãe e o filho, desonerando a primeira e garantindo a paternidade do segundo. Mas tais conclusões falhavam pois, numa tentativa de justificar a legitimidade da regra mesmo após o advento da atual Constituição Federal, desconsideravam sua lógica subjacente, justamente porque tal lógica perdeu força em face da Carta de 1988.
A explicação para a formulação original da regra é muito mais evidente e simples do que se busca sustentar, e pode ser inferida por uma interpretação sistemática: a Lei dos Registros Públicos nada mais fazia do que refletir o paradigma de estrutura familiar então vigente9. Sucede que o modelo de família sedimentado no Código Civil de 1916 baseava-se em papéis de gênero muito delimitados e desiguais: enquanto o marido ocupava a posição de chefe da sociedade conjugal10 e, portanto, tomava posição à frente da família, à mulher casada, por muito tempo considerada relativamente incapaz, cabia apenas colaborar e apoiar a atuação do marido11.
Ora, se o poder familiar se concentrava na figura paterna, não é de se surpreender que a obrigação de declarar o nascimento dos filhos recaísse, em princípio, sobre o pai, e somente em sua falta ou impedimento absoluto seria transferida à mãe12. Com a mudança paradigmática ocasionada pela nova ordem constitucional, porém, a prioridade paterna perdeu seu principal fundamento de legitimidade, sua principal razão de ser, numa perspectiva teleológica. Afinal, como dito acima, o valor fundante da Constituição Federal de 1988 é a isonomia, que se manifesta inclusive na igualdade entre os sexos, daí a plena paridade entre homem e mulher na condução do núcleo familiar (art. 5º, caput e inciso I, e art. 226, §5º).
É claro que isso não significa, como acima se buscou esclarecer, que qualquer distinção legal entre homens e mulheres seja inconstitucional, já que a igualdade visada pelo Estado Democrático de Direito é substantiva, e não meramente formal. O que tornava a regra inadequada à Constituição era o fato de, nesse caso, o principal critério para legitimar a distinção não ter sido recepcionado pela nova ordem constitucional, qual seja, a prevalência masculina na família e na sociedade em geral.
Muito embora houvesse argumentos de outras ordens para justificar a regra, como os anteriormente mencionados, tais argumentos não eram suficientes para explicar a prioridade paterna e a impossibilidade legal de declaração pela mãe nos primeiros dias do nascimento, e por isso também não poderiam bastar como critérios válidos de discrímen, não se adequando à isonomia constitucional.
Assim, em que pese a distinção entre o papel do homem e da mulher, na declaração do nascimento, ter sido expressamente revogada apenas pela lei 13.112/2015, já havia, há muito, perdido sua efetividade. As próprias normas de serviço das Corregedorias estaduais vinham gradativamente afastando a prioridade paterna para a declaração de nascimento, considerando que, no prazo comum de 15 dias após o parto, qualquer dos genitores poderia proceder ao ato, dispensada qualquer prova ou justificativa relativa à falta ou impedimento do pai, se porventura a declarante fosse a própria mãe.
Competência territorial do registrador
A lei 9.053/1995, alterando a lei 6.015/1973, instituiu a regra de competência concorrente entre os registradores da circunscrição do local do parto e do local do domicílio dos genitores para a lavratura do assento de nascimento. Contemplando a hipótese de serem diversos os domicílios dos genitores, a lei também acrescentou o § 1º ao dispositivo13, determinando que, neste caso, seria observada a ordem contida nos itens 1º e 2º do art. 52, os quais determinavam, à época, a prioridade do pai sobre a mãe para a declaração do nascimento dos filhos14.
Ou seja, a partir da lei 9.053/1995, o registrador da circunscrição do domicílio do pai tinha prioridade sobre o registrador do domicílio da mãe para lavrar o assento de nascimento, o que fazia sentido considerando que a obrigação de declarar o nascimento era aprioristicamente paterna, pois associada ao exercício do "pátrio poder", conforme acima sustentado.
No entanto, assim como a prioridade do pai para a referida declaração, a preferência pelo registrador da circunscrição de seu domicílio foi considerada não recepcionada, por boa parte da doutrina, por força da Constituição de 1988, por contrariar a isonomia entre os sexos, em especial no que toca ao exercício do poder familiar.
Aliás, a regra podia ser inclusive vista como um entrave à efetivação do registro de nascimento – condição praticamente sine qua non do pleno exercício da cidadania, e de todos os direitos constitucionais dela dependentes – já que, no fundo, excluía a possibilidade de a mãe declarar o nascimento de seu filho no próprio domicílio nos 15 primeiros dias do parto.
Em todo caso, com a alteração dos itens 1º e 2º do art. 52, pela lei 13.112/2015, não há mais uma ordem propriamente dita nesses dispositivos, e por isso o § 1º do art. 50 da lei 6.015/1973, embora não tenha sido alterado, passou a reportar-se a uma ordem de prioridade inexistente, podendo ser considerado tacitamente revogado.
Na próxima coluna, prosseguir-se-á na análise das diferenças impostas pela LRP entre os genitores, notadamente na questão do prazo para registro, do estabelecimento da paternidade/maternidade e da opção de naturalidade. Acompanhem e sejam felizes!
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1 Afonso da Silva, José. Direito constitucional positivo, 25ª ed., São Paulo: Malheiros, 2005, p. 132.
2 Cf. Kümpel, Vitor Frederico; e Ferrari, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral – Registro Civil das Pessoas Naturais, vol. II. São Paulo: YK, 2017, pp. 45-54.
3 Streck, Lenio Luiz, Hermenêutica jurídica e(m) crise, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 11ª ed., 2014, p. 23.
4 Streck, Lenio Luiz, Hermenêutica jurídica e(m) crise, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 11ª ed., 2014, p. 24.
5 Art. 229 da CF/1988: "Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade".
6 Art. 1.634, inc. VII, CC/2002: "representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes consentimento;"
7 Art. 226, § 7º, da CF/1988: "Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas".
8 Pedroso, Regina. Direito Notarial e Registral Atual. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013, p. 51.
9 Cf. Kümpel, Vitor Frederico; e Ferrari, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral – Registro Civil das Pessoas Naturais, vol. II. São Paulo: YK, 2017, pp. 561-562.
10 Art. 233, caput, do CC/1916: "O marido é o chefe da sociedade conjugal. Compete-lhe: I. A representação legal da família. II. A administração dos bens comuns e dos particulares da mulher, que ao marido competir administrar em virtude do regime matrimonial adaptado, ou do pacto antenupcial (arts. 178, § 9º, nº I, c, 274, 289, nº I, e 311). III. direito de fixar e mudar o domicílio da família (arts. 46 e 233, nº IV). IV. O direito de autorizar a profissão da mulher e a sua residência fora do tecto conjugal (arts. 231, nº II, 242, nº VII, 243 a 245, nº II, e 247, nº III). V. Prover à manutenção da família, guardada a disposição do art. 277".
11 Art. 233, caput, do CC/1916 (redação dada pela lei 4.121/1962): "O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interêsse comum do casal e dos filhos (arts. 240, 247 e 251)".
12 Macedo de Campos, Antonio, Comentários à Lei de Registros Públicos, vol. I, 2ª ed., 1981, p. 157.
13 Art. 50 da lei 6.015/1973, com a redação dada pela lei 9.053/1995: "Todo nascimento que ocorrer no território nacional deverá ser dado a registro, no lugar em que tiver ocorrido o parto ou no lugar da residência dos pais, dentro do prazo de quinze dias, que será ampliado em até três meses para os lugares distantes mais de trinta quilômetros da sede do cartório. § 1º Quando for diverso o lugar da residência dos pais, observar-se-á a ordem contida nos itens 1º e 2º do art. 52".
14 Cf. Kümpel, Vitor Frederico; e Ferrari, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral – Registro Civil das Pessoas Naturais, vol. II. São Paulo: YK, 2017, pp. 531-532.
Fonte: Migalhas