O Direito de Família, após os movimentos de contracultura dos anos 1960, iniciou um lento processo de derruição de seus fundamentos clássicos, que colocavam na centralidade de suas categorias a noção de legitimidade. Essa palavra, que não é unívoca, deve ser entendida em seu significado romanístico: aquilo que é conforme a lei (legitimus). No Direito Romano, no ius commune e na Era das Codificações, compreensiva do final do século XVIII até o início do século XX, a legitimidade demarcou espaços nas relações familiares, como critério distintivo do que era reconhecido e do que não era reconhecido pelo Direito como apto a gerar um status (de casado, de filho, de viúvo) e os direitos decorrentes.
O ato de perfilhação, tal como descrito no romance Helena de Machado de Assis, representava a passagem do indivíduo do campo da ilegitimidade para o campo da legitimidade, com profundos significados patrimoniais e sociais. Transcrevendo, uma vez mais, excerto dessa obra fabulosa, após a perfilhação, Helena “era declarada herdeira da parte que lhe tocasse de seus bens, e devia ir viver com a família, a quem o conselheiro instantemente pedia que a tratasse com desvelo e carinho, como se de seu matrimônio fosse”.
As primeiras decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre as chamadas relações concubinárias representam passos decisivos à atribuição de efeitos jurídicos a certos vínculos familiares não subordináveis à estrutura binária legítimo-ilegítimo. Não é sem razão que, em 1964, o STF editou duas súmulas sobre essa matéria, tão delicada para a sociedade brasileira naquele período. Os sinais da contracultura surgiam também no pensamento jurídico daquela década. Nos termos da Súmula STF 380, de 3.4.1964: “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum.” E a Súmula STF 382, também de 3.4.1964, contém o seguinte enunciado: “A vida em comum sob o mesmo teto, ‘more uxorio’, não é indispensável à caracterização do concubinato.”
Aos 13 de dezembro de 1963, o Pretório Excelso também sumulava algo perturbador à estabilidade da família tradicional: “É imprescritível a ação de investigação de paternidade, mas não o é a de petição de herança” (Súmula STF 149). Se, a qualquer momento, era possível rever os vínculos de filiação, ainda que passadas algumas décadas, a aparente segurança da família legítima poderia ser desfeita com o surgimento de um descendente que pretendesse ver reconhecido seus direitos.
A Constituição de 1988 culminou com esse processo de superação do paradigma da legitimidade como categoria central do Direito de Família, ao tempo em que igualou os filhos, eliminando quaisquer diferenças de tratamento jurídico, especialmente no campo sucessório, e constitucionalizou a união estável, permitindo sua conversão em casamento. A partir daí, o Direito de Família parece ter assumido um novo paradigma que é a chamada afetividade. Essa escolha, que não é legislativa e sim de parte da doutrina, é tema para uma coluna exclusiva. Há muitas críticas sobre se escolher a afetividade como nota distintiva das relações jurídico-familiares, seja por sua plurivocidade, seja por haver tantas e tão distintas compreensões desse conceito. Essa apreciação não conformista sobre a afetividade não pode ser confundida com um desejo de retorno à categoria da legitimidade, que está superada historicamente.[1]
Importa, contudo, que a afetividade assumiu um espaço importante na discussão das questões de família. Dito de outro modo, o Poder Judiciário admitiu a formação de vínculos de parentalidade não fundados em laços biológicos e sim no afeto. Não é objetivo desta coluna apreciar as vantagens dessa opção. Interessa aqui proceder a um exame descritivo de como essa nova visão tem influído nos julgamentos do Superior Tribunal de Justiça (STJ) nas ações relativas ao reconhecimento e à negatória de paternidade. Com isso, retoma-se a discussão das duas últimas colunas sobre a visão de tribunais europeus e da Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) sobre esse importante problema do Direito Civil contemporâneo.
A visão do STJ
Para ordenar o exame dos principais casos, eles foram organizados a partir de eixos temáticos:
a) Desnecessidade de observância de prazo para ajuizar a ação negatória de paternidade. Na vigência do Código Civil de 1916, o artigo 178, parágrafo 3o fixava em dois meses o prazo para o marido, se presente, contestar a legitimidade do filho de sua mulher. Na jurisprudência do STJ, desde o início da primeira década do século XX, considerou-se que “[o] tempo não determina a extinção do direito de o marido propor a ação negatória da paternidade”[2] Antes disso, porém, prevalecia a tese de que “[a] ação negatória não se transforma, quando contestada, em investigatória, de modo a se tornar imprescritível”.[3]
A mudança no entendimento do STJ vai ocorrer de modo muito semelhante ao que se dá nas discussões europeias: a adoção de um critério casuístico, baseado na ideia de que “o prazo de decadência haverá de ter, como termo inicial, a data em que disponha ele [o marido] de elementos seguros para supor não ser o pai de filho de sua esposa”, mesmo que o marido coabitasse com a mulher (segundo a fórmula do Código Civil, “se presente”).[4] A virada jurisprudencial ocorrerá definitivamente em um julgamento da 4ª Turma do STJ, ocorrido em 29 de agosto de 2000, no qual o relator ministro Barros Monteiro foi vencido e predominou a tese da não observância dos prazos do Código Civil de 1916.[5]
Como resultado dessa evolução da matéria nos tribunais, o Código Civil de 2002, em seu artigo 1.601, prescreve que: “Cabe ao marido o direito de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, sendo tal ação imprescritível.”
b) Situação jurídica da criança após a procedência da negatória de paternidade. O STJ examinou um interessante caso no qual se discutia a prevalência do chamado princípio do melhor interesse da criança sobre o direito de um pai de negar a paternidade civil, gerada a partir de sua indução a erro, quando registrou o menor como se filho seu fosse. O julgamento baseou-se na regra do artigo 1.601 do Código Civil, que não impõe prazos ao ajuizamento da ação negatória, e ao direito do pai de ter reconhecida a “verdade biológica” sobre a situação jurídica indevidamente constituída.[6]
c) Vínculos parentais socioafetivos e a adoção “à brasileira”. Uma mulher manteve relações sexuais com um homem, de família tradicional, e dele engravidou. Nascida a criança, ela foi entregue a um casal, que a registrou como se filha fosse. É o típico caso de “adoção à brasileira”, muito comum no país, especialmente quando os interessados não desejam se submeter à burocracia do processo de adoção.
Décadas depois, decidiu a “adotada à brasileira” investigar suas origens e descobriu as reais circunstâncias de seu nascimento. Propôs uma ação de investigação de paternidade e de maternidade, que resultou em exame de DNA com alta probabilidade de ser o investigado seu pai biológico. O Tribunal Estadual reformou a sentença que julgara procedentes os pedidos da investigação, por considerar que “a verdade socioafetiva se sobrepõe à verdade genética”.
O STJ considerou que o direito fundamental à informação genética deveria prevalecer sobre a paternidade socioafetiva, mas por uma particularidade do caso: o vínculo socioafetivo não se deu por vontade dos pais que realizaram o registro, mas para atender às necessidades de encobrir uma filiação ilegítima. A relatora ministra Nancy Andrighi, contudo, não estabeleceu uma orientação geral: as circunstâncias de cada processo admitiriam outro posicionamento.[7]
Em outro julgado, o registro foi mantido, a despeito da comprovada ausência de vínculo biológico. Um homem registrou como seu um filho de uma mulher com quem teve uma única relação sexual. Muito tempo depois, mesmo com a existência de laços socioafetivos, o pai tentou anular o registro e desconstituir a paternidade. O STJ considerou que não seria possível esse ato, dada a comprovada afetividade entre o pai e o suposto filho. Além disso, considerou-se o registro como uma espécie de reconhecimento de paternidade, que, nos termos do artigo 1.610, CCB/2002, “não pode ser revogado, nem mesmo quando feito em testamento”.[8]
Posteriormente, o STJ alargou esse entendimento para abranger hipóteses nas quais houve o reconhecimento do filho por escritura pública e, posteriormente, o exame de DNA comprovou que não existiam vínculos biológicos com o pai civil.[9]
d) Adoção e vínculos de paternidade biológica. O STJ definiu que a adoção extingue todos os vínculos jurídicos do adotado com seus pais biológicos, exceto os ligados aos impedimentos matrimoniais. No entanto, é possível que o adotado investigue a paternidade biológica, quando, em seu registro de nascimento não figurava o nome de seu pai. Nesse caso, não se pode falar em ruptura de vínculos parentais anteriores. A pretensão do adotado em conhecer seu pai natural não pode ser obstada, em face dessa particularidade, pela legislação civil.[10]
e) Novo ajuizamento de ação de investigação de paternidade. O STJ tem hoje um “grupo de casos” sobre a possibilidade de nova propositura de ação de investigação de paternidade, quando a primeira teve seus pedidos julgados improcedentes e formou-se a coisa julgada. É uma situação que guarda profundas conexões com a decisão do STF no RE 363.889, de relatoria do ministro Dias Toffoli, que reconheceu a viabilidade de se relativizar a coisa julgada, quando, na primeira ação, o exame de DNA não se realizou por ausência de meios pela parte e por omissão do Estado em supri-los adequadamente.
Em alguns acórdãos, o STJ “assentou a impossibilidade de se renovar a investigação de paternidade em virtude do advento do exame de DNA, afastando a coisa julgada formada em processo anterior, no qual não houve o reconhecimento da alegada paternidade”.[11] Em outros arestos, manteve-se a paternidade reconhecida apenas com prova testemunhal e se impediu a rediscussão da matéria, para se desconstituir os vínculos parentais, em nome da segurança jurídica.[12]
Os efeitos da decisão do STF no RE 363.889, todavia, já se fizeram sentir no STJ em outros julgados, que admitiram o ajuizamento de nova ação de investigação de paternidade, relativizando-se a res iudicata.[13]
f) Direito personalíssimo do neto de obter declaração de existência de vínculos genéticos com seu suposto avô (investigação de vínculo genético per saltum). Por sua complexidade e seu ineditismo, este talvez seja um dos casos mais interessantes julgados pelo STJ sobre a matéria. A situação fática é a seguinte: um homem propôs ação de investigação de paternidade contra seu suposto pai. Na instrução, realizou-se prova pericial (exame hematológico de HLA), cujo resultado foi negativo ao interesse do autor. Com o trânsito em julgado, o investigante promoveu ação rescisória, alegando o surgimento de um novo método de aferição genética, o exame de DNA. A rescisória teve seus pedidos julgados improcedentes. Foi proposta ação cautelar de antecipação de prova, igualmente sem sucesso. O investigante, então, promoveu nova ação de paternidade, a qual não teve sequência porque acolhida a preliminar de coisa julgada.
A filha do investigante ingressou com ação cautelar de produção antecipada de prova em face seu suposto avô, com o objetivo de ajuizar futura ação de declaração de relação avoenga.
Em síntese, o objetivo da requerente da cautelar é realizar uma “investigação de vínculo genético per saltum”, para se inovar na nomenclatura dessas ações.
O relator ministro Raul Araújo, em seu voto, afirmou que não haveria óbice à legitimidade do neto em peticionar o reconhecimento de relação avoenga, o que se ajustaria ao artigo 1.606 do Código Civil.[14] Em relação à coisa julgada, o relator considerou que ela não atingiu o direito da autora e não poderia se contaminada pelo resultado das ações de seu pai. Em conclusão, “(…) o pedido deve ser considerado juridicamente possível e a parte deve ser tida como legítima para o ajuizamento da ação cautelar de antecipação de prova, bem como deve ser afastado o óbice da coisa julgada, viabilizando-se o curso da ação consubstanciada na realização de exame de DNA, para instrução de ação declaratória de relação avoenga”.
Em um extenso voto, o ministro Marco Aurélio Buzzi divergiu do relator, por entender que o direito fundamental à informação genética não exclui de maneira absoluta o direito à intimidade e à privacidade nas relações de parentesco, que se conecta com o princípio da segurança jurídica e da estabilidade das relações de família. O voto também assevera que a autora não busca “um puro direito de identidade genética, mas também o de parentalidade”, com todos os efeitos jurídicos (e patrimoniais) daí advindos. A legitimidade seria apenas sucessiva “para gerações de grau de proximidade diferentes postularem o reconhecimento de parentesco, vez que os mais próximos afastam os mais remotos, enquanto vivos”. Pensar o contrário seria o mesmo que admitir uma vinculação parental de um neto com um avô, mas cujo pai não integraria essa cadeia.
O ministro Marco Aurélio Buzzi também anota que não se pode falar na “necessidade de protagonismo judicial, pois o legislador, legitimado para tanto pelo eleitor, na recém reforma do Código Civil, não pretendeu modificar essa escala sucessiva de legitimação para o exercício do direito ora em foco”.
Em conclusão, o voto do ministro Marco Aurélio Buzzi, que prevaleceu nesse julgamento, conserva ao pai o direito de buscar a relativização da coisa julgada em sua ação de investigação de paternidade, respeitando-se o precedente do STF, no RE 363.889. Mas, desrespeitar a legitimação do artigo 1.606, CCB/2002, não seria possível.[15]
Conclusões
Com esta coluna, encerra-se uma análise sobre os diferentes enfoques em torno de problemas como a paternidade, a identidade genética e a adequação das legislações aos avanços na Bioética.
O Brasil ainda se depara com problemas específicos, ligados à pretensão de reconhecimento de paternidade ou de sua rejeição, quase sempre por questões de fundo patrimonial ou sucessória. A tendência, porém, é que surjam novos desdobramentos em torno da tensão entre os vínculos biológicos e os civis sob outros prismas, especialmente pelo caráter cada vez mais complexo das relações familiares.
Fica um convite ao legislador, que detém o eminente e conspícuo mandato popular, para que enfrente esses problemas e deixe ao Poder Judiciário uma margem de apreciação menor. Nada como boas soluções legislativas para casos tão próximos da realidade social. Os debates parlamentares têm seus custos argumentativos e políticos. E é nessa ágora que se devem primordialmente resolver esses problemas da condição humana.
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[1] Confira-se a interessante crítica de: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 3.ª ed., rev., ampl. e com posfácio. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 480.
[2] STJ. REsp 278.845/MG, Rel. Ministro Ruy Rosado De Aguiar, Quarta Turma, julgado em 20/02/2001, DJ 28/05/2001, p. 202.
[3] STJ.REsp 37.588/SP, Rel. Ministro Nilson Naves, Terceira Turma, julgado em 07/03/1995, DJ 13/11/1995, p. 38672.
[4] STJ. REsp 194.866/RS, Rel. Ministro Eduardo Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 20/04/1999, DJ 14/06/1999, p. 188.
[5] STJ. REsp 146.548/GO, Rel. Ministro Barros Monteiro, Rel. p/ Acórdão Ministro Cesar Asfor Rocha, Quarta Turma, julgado em 29/08/2000, DJ 05/03/2001, p. 167.
[6] “E mesmo considerando a prevalência dos interesses da criança que deve nortear a condução do processo em que se discute de um lado o direito do pai de negar a paternidade em razão do estabelecimento da verdade biológica e, de outro, o direito da criança de ter preservado seu estado de filiação, verifica-se que não há prejuízo para esta, porquanto à menor socorre o direito de perseguir a verdade real em ação investigatória de paternidade, para valer-se, aí sim, do direito indisponível de reconhecimento do estado de filiação e das conseqüências, inclusive materiais, daí advindas” (STJ. REsp 878.954/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 07/05/2007, DJ 28/05/2007, p. 339).
[7] STJ. REsp 833.712/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 17/05/2007, DJ 04/06/2007, p. 347.
[8] STJ. REsp 1078285/MS, Rel. Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em 13/10/2009, DJe 18/08/2010.
[9] STJ. REsp 1098036/GO, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 23/08/2011, DJe 01/03/2012.
[10] STJ. REsp 813.604/SC, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 16/08/2007, DJ 17/09/2007, p. 258.
[11] STJ. AgRg no REsp 1236166/RS, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 02/08/2012, DJe 09/08/2012.
[12] STJ. AgRg no Ag 1425847/SC, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 19/06/2012, DJe 25/06/2012.
[13] AgRg no REsp 1257855/RS, Rel. Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em 16/08/2012, DJe 24/08/2012; EDcl na MC 18.265/SP, Rel. Ministro Paulo De Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 12/06/2012, DJe 19/06/2012.
[14] “Art. 1.606. A ação de prova de filiação compete ao filho, enquanto viver, passando aos herdeiros, se ele morrer menor ou incapaz. Parágrafo único. Se iniciada a ação pelo filho, os herdeiros poderão continuá-la, salvo se julgado extinto o processo”.
[15] STJ. REsp 876.434/RS, Rel. Ministro Raul Araújo, Rel. p/ Acórdão Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, Julgado em 01/12/2011, DJe 01/02/2012.
Otavio Luiz Rodrigues Junior é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).
Fonte: Conjur