Artigo – A possibilidade de registro de dois pais na certidão de nascimento da criança

1 – INTRODUÇÃO

Mais uma vez o direito inicia uma grande discussão referente aos avanços da sociedade em que vivemos, bem como de institutos jurídicos de direito de família. Trata-se da possibilidade ou não de constar na certidão de nascimento da criança o nome de dois pais, juntamente com a mãe.

Tal discussão iniciou-se através de um capítulo de novela onde três pessoas, uma mulher e dois homens, compareceram ao cartório para realizar o registro de uma criança, requerendo que fosse feito em nome dos dois, já que não tinham eles interesse em descobrir qual seria o pai biológico daquela criança.

A partir desse momento iniciou-se a discussão nas rodas acadêmicas sobre a possibilidade de realização do ato pretendido pelos personagens, fato que levou alguns colegas a escreverem sobre o assunto, e que também nos leva a fazer uma reflexão sobre o tema, já que, ao que tudo indica, será mais um tormentoso dilema que o direito terá de dar uma solução.

Portanto, longe de se pretender resolver o problema, o que buscaremos com o presente estudo, é simplesmente expor nossa opinião sobre o matéria, considerando os fatores que a nossa ver, poderia possibilitar o referido registro, sempre é claro, tendo como premissa maior a Constituição Federal.

2 – BREVE ANTECEDENTE HISTÓRICO SOBRE A PROTEÇÃO DA CRIANÇA

Quem convive com a gama de direitos que são atribuídos as crianças e adolescentes de hoje, não pode imaginar que antes da Constituição Federal de 1988, não somente nas leis infraconstitucionais, mas também nas próprias Constituições, não havia essa proteção e relação de garantias às crianças e adolescentes que temos hoje, e que, podemos afirmar que teve como grande responsável o constituinte de 1988.

Isso porque, nas constituições anteriores, bem como nas leis infraconstitucionais da época, a criança somente poderia ser considerada sujeita de direitos, merecendo, pois, a tutela do Estado, quando estivesse inserida dentro de uma família.

Aquelas crianças que não possuíssem uma família, como aquelas que foram abandonadas pelos pais, ou em alguns casos, sequer vieram a conhecê-los, na realidade somente eram objeto de alguma atenção do Estado quando cometessem determinado ato criminoso, ocasião em que o este, sob o argumento de que aquela conduta poderia trazer grandes prejuízos à sociedade, buscava punir a criança ou adolescente.

Naquela época, o Estado ou a sociedade jamais teve a preocupação de garantir direitos básicos à criança que não estivesse dentro de uma família, todas as normas protetivas tinham por destinatárias as crianças que tinham um pai e uma mãe, e no mais das vezes, eram normas que buscavam regulamentar o poder dos pais sobre os filhos.

A Constituição Federal de 1988, pela primeira vez trouxe normas e princípios protetivos de toda e qualquer criança, esteja ela inserida dentro de uma família formalmente constituída ou não. Nesse passo, a Constituição, vislumbrando a importância de se garantir a todas as crianças direitos básicos, pois é através delas que o futuro será construído, tratou de disciplinar regras de proteção, sempre com base no princípio do melhor interesse da criança.

Destarte, podemos afirmar que a Constituição Federal de 1988 representa o maior avanço já visto referente aos direitos da criança, tutelando e garantindo essa proteção a todas as crianças, principalmente aquelas que vivem à margem de uma família.

3 – PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA

Como afirmado acima, a CF/88 realizou uma verdadeira revolução sobre os direitos da criança, buscando a todo custo garantir-lhe um futuro melhor, pois somente assim, a sociedade terá condições de prosperar.

Assim, em seu artigo 227 trouxe a materialização do princípio do melhor interesse, assegurando à criança tudo aquilo que for necessário para atender suas necessidades básicas, bem como lhe garantir que tenha uma vida digna (princípio da dignidade da pessoa humana).

Referido princípio veio a justificar a inserção de várias normas, como as existentes no estatuto da criança e do adolescente, e também no Código Civil de 2002, todas buscando sempre proteger e garantir o interesse maior, que é o da criança. A título de exemplo, basta citar o art. 1.584 do Código Civil, que determina que em caso de dissolução da sociedade conjugal sem acordo quanto à guarda dos filhos, será ela atribuída a quem revelar melhores condições.

Evidentemente que esta é a maior prova de que houve uma grande evolução de conceitos e princípios no que concerne à criança, pois, o instituto da guarda que até pouco tempo era exercido em benefício dos pais, hodiernamente é regulado com base no princípio do melhor interesse da criança, de forma que antes do interesse dos pais, deve ser considerado o do menor.

Diante disso, cremos não pairar dúvidas a respeito da mudança de foco na relação entre pais e filhos, bem como na relação do Estado para com as crianças, pois, atualmente, o interesse do Estado coincide com o da criança, pois entende-se, que protegendo a criança, o Estado está protegendo a si mesmo.

Entretanto, a indagação é esta: para que serve esse princípio do melhor interesse da criança? Não há dúvidas de que além de servir para traçar as diretrizes normativas, serve também para orientar o aplicador da lei, diante de uma situação aparentemente insolúvel, como a toda evidência parece ser essa questão do registro de dois pais na certidão de nascimento da criança.

Ora, diante de uma situação concreta em que o interesse do menor está em jogo, seja por conta da inexistência de norma ditando uma solução, seja por não representar esta o melhor interesse da criança, deve o interprete se valer da Constituição e seus princípios basilares para encontrar a melhor solução que se encaixe no caso.

Nesse contexto, cabe interpretar o disposto no art. 54, item 7, da Lei dos Registros Públicos, onde consta que:

“Art. 54. O assento do nascimento deverá conter:

7º) os nomes e prenomes, a naturalidade, a profissão dos pais, o lugar e cartório onde se casaram, a idade da genitora, do registrando em anos completos, na ocasião do parto, e o domicílio ou a residência do casal;”

Se partirmos para uma interpretação literal do texto acima, sequer poderíamos admitir como possível o registro da criança de pai e mãe não casados, posto que a norma é clara ao exigir o lugar e cartório onde se casaram. Da mesma forma que referida regra faz essa menção, que não se coaduna com os princípios constitucionais de hoje, a interpretação de que quando ela menciona o termo “pais”, estaria restringindo a um pai e uma mãe, também não pode ser aceito, por não estar em consonância com o princípio do melhor interesse da criança.

Em verdade, considerando a constitucionalização do direito privado, todas as normas existentes ou que venham a existir, devem estar ou serem interpretadas de acordo com a CF/88 que, em ultima ratio, é a sua fonte de origem.

Destarte, partindo dessa premissa, interpretação constitucional da Lei de Registros Públicos, a possibilidade de constar na certidão de nascimento da criança o nome de dois pais, não parece, a toda evidência, descabida, absurda ou mesmo ilegal, já que pode servir para concretizar os princípios da melhor proteção da criança, da dignidade da pessoa humana, solidariedade, afetividade, paternidade responsável, dentre outros.

No atual estágio das relações familiares nos parece um tanto quanto descabida impossibilitar que uma criança tenha dois pais, porque uma lei de 1.973 diz que na certidão deve constar o nome dos pais, assim entendido, o nome de um pai e de uma mãe.

Parece muito mais benéfico e em harmonia com os princípios constitucionais, possibilitar à criança, desfrutar de todos os benefícios de se ter dois pais, já que em assim sendo, a proteção será muito mais ampla, na medida em que ao invés de ter duas pessoas obrigadas e com dever de assistência, terá três, ao invés de ter duas pessoas para lhe dar carinho, amor, atenção e afeto, terá três, além de é claro ter a possibilidade de usufruir de todos os benefícios referentes à dependência e relação de parentesco entre os “três pais”, como, v.g., direitos sucessórios.

Aliás, em uma rápida leitura do disposto no art. 6º do Estatuto da Criança e do Adolescente, podemos perceber a incessante busca pelo benefício do menor, devendo, pelas características desde estatuto, ampliar seu raio de incidência e aplicar essa norma geral de interpretação a todas as normas que tratam da proteção da criança, aí incluída a Lei dos Registros Públicos, na parte referente ao registro. Para uma melhor compreensão, vejamos o teor da norma epigrafada:

“Art. 6º Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.”

O grande mestre GUSTAVO TEPEDINO[1], um dos grandes percussores da constitucionalização do direito civil, discorrendo sobre a filiação na perspectiva civil-constitucional afirma que:

“O critério hermenêutico sintetizado pela fórmula `The Best interest of the child`, colhido por nossa mais sensível jurisprudência, adquire, entre nós, conteúdo normativo específico, informado pela cláusula geral de tutela da pessoa humana introduzida pelo art. 1º, III, CF e determinado especialmente no art. 6º da Lei nº. 8.069/90 …”

Mais adiante, referindo-se especificamente ao mencionado art. 6º da Lei 8.069/90, arremata o autor:

“O preceito não é ocioso nem supérfluo, apresentando-se, ao revés, como peça chave da estrutura familiar, por cuja tutela incumbe ao interprete zelar. Indica uma inflexão relativamente à política legislativa do passado, deslocando a proteção primordial do Estado, antes dirigida à `família-instituição`, para a `família-instrumento` de proteção e desenvolvimento da personalidade de seus componentes.

Com efeito, a família, segundo o Código de 1916, era estabelecida exclusivamente pelo casamento indissolúvel, conformada ao poder marital e ao desmesurado poder paterno, voltada prioritariamente para a procriação. A entidade familiar projetada pela Constituição de 1988, ponto de referência normativo do legislador de 1990, é uma formação social não necessariamente fundada no casamento, hoje dissolúvel, permeada pela paridade dos cônjuges e pela democratização da relação pai-filho, dirigida ao desenvolvimento da personalidade de quantos a compõem/componham.

(…). A imagem da `família-instituição`, sendo delineada, dá lugar à família funcionalizada à formação e ao desenvolvimento da personalidade de seus componentes, nuclear, democrática, protegida na medida em que cumpra o seu papel educacional, e na qual o vínculo biológico e a unicidade patrimonial são aspectos secundários.”

O professor ANTÔNIO CHAVES[2], comentando o art. 6º da Lei 8.069/90, com relação ao princípio do melhor interesse da criança, aduz com precisão que:

“Não mais um `melhor interesse` subjetivamente estabelecido, o que poderia conduzir ao arbítrio, mas um superior interesse baseados em normas objetivas, finalísticas, voltadas a proteção integral.

Os fins sociais do Estatuto, consubstanciados na promoção e defesa dos direitos, constituem diretrizes para que o superior interesse, seja, mesmo, o da criança e adolescente e não mais um duvidoso e suposto melhor interesse, a critério subjetivo do interprete.”

Portanto, se não houver apego exacerbado à literalidade de normas ultrapassadas, como é a Lei de Registros Públicos, e utilizando-se o aplicador da lei dos novos princípios que orientam as relações familiares, para fins de interpretação dos dispositivos daquela norma, poderemos concluir pela possibilidade do registro, pois esta pode ser a interpretação que melhor se coaduna com a ordem Constitucional vigente.

4 – O PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE

Tendo por base ainda a Constituição, que, irrefutavelmente, valorizou a pessoa humana, colocando-a como centro da tutela jurídica, a família moderna continuou a mudar, e até certo ponto, de forma radical, uma vez que deixou de lado o aspecto patrimonial e biológico de outrora, passando a admitir que vínculos mais fortes do que o próprio sangue alcançassem uma garantia mais efetiva, como é o caso dos laços de afetividade.

Sobre o assunto, interessante ponto de vista é esboçado por PAULO LÔBO[3]:

“A excessiva preocupação com os interesses patrimoniais que marcou o direito de família tradicional não encontra eco na família atual, vincada por outros interesses de cunho pessoal ou humano, tipificados por um elemento aglutinador e nuclear distinto – a afetividade. Esse elemento nuclear define o suporte fático da família tutelada pela Constituição, conduzindo ao fenômeno que denominamos repersonalização.

(…)

O desafio que se coloca ao jurista e ao direito é a capacidade de ver a pessoa humana em toda sua dimensão ontológica e não como simples e abstrato sujeito de relação jurídica. A pessoa humana deve ser colocada como centro das destinações jurídicas, valorando-se o ser e não o ter, isto é, sendo fator de medida do patrimônio, que passa a ter função complementar.”

Nunca é demais lembrar que quando se iniciou o instituto da paternidade socioafetiva, que tem por fundamento o princípio da afetividade, houve muitas vozes no sentido de reprimir tal forma de manifestação de afeto bem como de reconhecimento de direitos, justamente com base em normas e interpretações ultrapassadas se comparadas aos princípios constitucionais de hoje.         

O que é a paternidade socioafetiva, senão uma forma de atribuir efeitos jurídicos a uma situação fática de afeto, desvinculando-se da tradicional filiação biológica que por décadas vinculou as relações de filiação.

Obviamente, o direito e as relações sociais evoluíram a tal ponto de se fixar uma nova forma de filiação, mais preocupada em concretizar o princípio do melhor interesse da criança do que se apegar com vínculos biológicos que em alguns casos, só traz malefícios para a esta.

O que ocorreu com a paternidade socioafetiva foi uma evolução de conceitos retrógados e preconceituosos, e uma adequação às regras de filiação com a Constituição Federal de 1988, de forma a garantir que o afeto fale mais alto do que vínculos de sangue.

No entanto, mais uma vez a sociedade parece ter evoluído, os conceitos elastecidos, e é chegada a hora de reformularmos, uma vez mais, o instituto da filiação.

É óbvio que ao se permitir que dois pais registrem uma criança estaremos admitindo que um deles, que não possui vínculos biológicos com esta, figure como pai, com todas as conseqüências daí advindas.

Mas o que importa isso, se hoje o que vale é o afeto? Ora, se hodiernamente já é reconhecido o vínculo socioafetivo de filiação, porque não conjugar essa paternidade socioafetiva com a biológica no interesse e proteção da criança? Nos casos da paternidade socioafetiva também existe um pai biológico, e nem por isso se nega à criança o direito ao afeto de um pai, bem como a proteção jurídica dessa relação de filiação. No caso do registro de dois pais, o que mudaria? Não continuaria a criança tendo um pai biológico e outro socioafetivo? A única diferença é que os direitos dessa criança estariam melhor protegidos, já que juridicamente ela teria dois pais, podendo usufruir da condição de filho com relação a ambos, o que não ocorre nos casos de reconhecimento de paternidade socioafetiva onde o pai biológico não reconhece o filho.

Logo, se a paternidade socioafetiva é reconhecida pelo direito, inobstante a inexistência de normas com previsão específica, porque não admitir a junção jurídica desta com a biológica, considerando o princípio maior, que é o da proteção à criança.

5 – A TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO

Em 1968, o grande mestre MIGUEL REALE realizou uma verdadeira revolução quando criou a denominada Teoria Tridimensional do Direito, segundo a qual, o direito nada mais é do que a reunião de três fatores, a saber: a) fato; b) valor; e c) norma.

Segundo REALE, o direito decorre de uma realidade fática, a qual deve ser atribuído um valor, para somente então surgir uma norma tratando abstratamente de regulamentar aquela situação fática existente.

Parece que muitos estão se esquecendo dessa consagrada teoria, e se apegando mais às normas formais pré-existentes. Dizemos isso porque não podemos nos esquecer que o direito serve para regulamentar os fatos, e não estes se amoldarem ao direito. Não podemos admitir que a sedimentação do direito obstrua a evolução da sociedade, a tal ponto de grandes e importantes avanços da sociedade sejam reprimidos por conta deste.

Ora, se as relações familiares estão a cada dia evoluindo, de forma que os velhos conceitos de família, casamento, filiação, dentre outros, já não se coadunam com a sociedade moderna, como constranger os novos perfis existentes, sob o argumento de que as normas de hoje não regulamentam essas situações.

Se hoje, o avanço das relações familiares criaram situações até pouco tempo inusitadas, não podemos reprimir essas situações fáticas com o direito, porque certamente este não conseguirá conter a realidade do dia-a-dia. Ao contrário, cabe ao direito evoluir junto com a sociedade para passar a regulamentar essas novas situações, garantindo assim, que a sociedade evolua com segurança.

Exemplo típico de que essa tentativa de reprimenda do direito com relação a situações do cotidiano não funcionam, são as relações homoafetivas, que embora ainda haja alguma resistência, vários tribunais já vêm reconhecendo sua juridicidade (com base em princípios), de forma que só resta ao direito regulamentar essas situações ao invés de reprimi-las.

Acreditamos ser esta a mesma situação do problema aqui discutido. Embora hoje se alegue não haver regulamentação nem possibilidade para que o registro de dois pais seja realizado, sendo uma realidade fática, cabe ao direito buscar uma forma de regulamentação, porque situações como estas vão existir e de nada adianta virar as costas e fingir que nada está acontecendo. Cabe aos aplicadores do direito, rememorar a grande teoria de REALE, para concluir que se há um fato (pessoas querendo realizar o registro de uma criança com dois pais), sobre esse fato deve incidir um valor (v.g., uma nova forma de constituição de filiação), surgindo daí, a norma apta a regulamentar essa situação. Com isso, estaremos pondo em prática a revolucionária Teoria Tridimensional do Direito desenvolvida pelo saudoso mestre.

O que não podemos é permitir que o direito se atrofie em normas ultrapassadas, impedindo que princípios maiores sejam desrespeitados e que a sociedade cresça e se desenvolva de acordo com as novas tendências.

6 – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ARGUMENTOS CONTRÁRIOS À POSSIBLIDADE DO REGISTRO

Necessário mencionar aqui, que embora a grande maioria dos que se insurgem contra a possibilidade do registro de dois pais na certidão de nascimento de uma criança, ao menos pelo que temos visto, se apegam ao argumento de que a lei de registros públicos veda tal possibilidade, existem outros, a nosso ver, um pouco mais avançados, que sequer mencionam essa impossibilidade legal, e buscam se ater mais ao próprio princípio do melhor interesse da criança, porém, invertendo o raciocínio, e indagando: será que ao admitir esse registro não se estaria indo contra o interesse maior da criança? Será que em casos de conflitos familiares entre esses “pais” a criança não sairia perdendo? Argumentam que se nas situações de conflito familiar “convencional” a criança já sofre grandes prejuízos, que dirá então havendo três “pais”.

Pois bem. Vamos por partes. O primeiro e mais utilizado argumento, referente à impossibilidade de realização do registro porque a lei de registros públicos veda, data máxima vênia, é o mais simplório possível. Isso porque, como admitir que uma norma de 1973, quando vigente outra ordem jurídica Constitucional, onde não se falava em princípio do melhor interesse da criança, paternidade socioafetiva e nem mesmo famílias constituídas sem a existência de casamento, venha a impor uma solução a essa situação.

Como argumentar que não seria possível o reconhecimento, na sua forma mais ampla, da paternidade socioafetiva, porque uma lei de 1973 assim não o permite? Ora, quer dizer que todos os princípios orientadores das relações familiares instituídos pela Constituição de 1988, sucumbem diante de uma lei ordinária de 1973? Evidentemente que, in casu, cabe à norma de 1973 se adequar à nova roupagem traçada pela CF/88, adequação está que indubitavelmente se dará através de uma nova interpretação sobre os velhos preceitos.

Nesse caso, o correto é procedermos a uma interpretação Constitucional desta lei, para que assim agindo, e aplicando o princípio do melhor interesse da criança, admitamos como possível a realização do ato, se este for benéfico para a criança.

De outra banda, o segundo argumento, referente à possibilidade de tal registro acarretar prejuízos à criança, obviamente é algo que merece uma maior atenção, pois, neste caso, trata-se também, da aplicação do melhor interesse da criança. O que se indaga sob esse aspecto é se o fato de três pessoas figurarem como “pais” e responsáveis por uma criança não poderia lhe trazer prejuízos, ainda mais nos casos de conflitos familiares. Como exemplo, basta imaginar como seria uma disputa judicial pela guarda de uma criança que tivesse três “pais”.

Evidentemente que tais considerações jamais podem ser desprezadas, pois, é óbvio que essa situação pode se concretizar, o que poderá trazer prejuízos ao menor, ferindo assim, o princípio do melhor interesse. Todavia, cabe ao juiz, diante do caso concreto, perquirir a estabilidade daquela relação familiar a que será inserida a criança, buscando evitar ao máximo, que eventuais conflitos futuros possam acarretar prejuízos ao menor. Deve o magistrado, fazendo-se uma analogia à adoção, verificar efetivamente qual é a relação dos pretensos pais, seu perfil, enfim, um verdadeiro estudo psicossocial dos “pais”, verificando se essa relação seria saudável para a criança, inclusive, analisando a probabilidade de eventual futuro litígio.

Diante de uma hipótese onde os três pretensos “pais” levam uma vida familiar totalmente harmoniosa, a tal ponto do registro vir a possibilitar grandes benefícios para a criança, porque recusar que isto aconteça?

Da mesma forma que as famílias “convencionais”, é óbvio que existe o risco de futuramente haver um litígio familiar, e a criança se deparar com essa situação, que pode lhe ser desfavorável, porém, não podemos inibir algo que pode ser concretamente benéfico, ao argumento da possibilidade de um litígio trazer prejuízos para a criança, até porque este é incerto e o benefício pode ser certo.

7 – CONCLUSÕES

À guisa de conclusão, podermos dizer que nos dias atuais, com a repersonalização da família, com base na constitucionalização do direito privado, pautado na dignidade da pessoa humana e solidariedade, não há mais espaços para reprimendas de ordem legal, ainda mais em se considerando que hoje, o afeto fala mais alto do que o sangue ou o patrimônio.

Ao jurista de hoje cabe, efetivamente, buscar nas leis infraconstitucionais, a interpretação que mais se amolde aos princípios e objetivos da Constituição Federal, notadamente em se tratando de velhos textos legais, inspirados em normas ultrapassadas e em dissonância da moderna tendência do direito.

É com esse pensamento que chegamos à conclusão de que é possível ser realizado o registro de dois “pais” na certidão de nascimento de uma criança, inobstante a lei nada mencionar a respeito, considerando os princípios que orientam as relações familiares entre pais e filhos, tais como dignidade da pessoa humana, solidariedade, afetividade, melhor interesse da criança, dentre outros.

Obviamente que, diante do caso concreto, cabe ao juiz analisar se esses princípios estão sendo efetivamente cumpridos com a autorização do registro, pois, se do contrário for, serão esses mesmos princípios que orientarão a decisão contrária à realização de tal ato, uma vez que, seja qual for a solução, esta deve sempre representar o melhor interesse da criança.

Ressalte-se por fim, que partimos de um estudo onde não se analisou qual tipo de relação haveria entre os três “pais” registrais, se homoafetiva, de parentesco próximo, ou outra forma, desconsiderando totalmente essa relação, pautando-se sempre naquilo que deve prevalecer que é o interesse da criança.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

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TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

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[1] A Disciplina Jurídica da Filiação na Perspectiva Civil-Constitucional in Temas de Direito Civil. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. pg. 450 e 478.

[2] Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente.  2ª Edição. São Paulo: LTr, 1997. pg. 64.

[3] Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008. Pg. 12.

 

Autor: Roberto Ribeiro Soares de Carvalho é sócio do IBDFAM, advogado em Campo Grande(MS) e professor de direito civil da UFMS.

 

Fonte: IBDFAM