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Atualmente, importantes segmentos da comunidade jurídica nacional e local vêm dialogando acerca da ampliação das atribuições conferidas aos cartórios de notas e registros públicos, notadamente em face do advento da Lei Federal nº 11.441/2007, que alterou dispositivos do Código de Processo Civil, possibilitando a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual por via administrativa perante tabelião.
Não é novidade alguma, por outro lado, a importância da qual se reveste a atividade notarial e de registro, provida que é de prerrogativa pública singular consistente no exercício de poder certificante destinado a atestar a veracidade e legitimidade e a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia de determinados fatos e atos jurídicos.
Contudo, em que pese a dimensão e relevância dessas funções, em alguns Estado federados, a exemplo do Estado da Bahia, elas vêm sendo exercidas, a duras penas, diretamente pelo Poder Público, em caráter oficial, a despeito do que preconiza o art. 236 da Constituição Federal. Com efeito, certamente motivado pelo volume e singularidade das funções notariais e de registro, o legislador constituinte de 1988 determinou que tais funções fossem, doravante, exercidas em caráter privado, mediante delegação do Poder Público, em norma assim redigida: “Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público“.
Ocorre que, em razão do art. 32 do ADCT da Constituição Federal de 88, “O disposto no art. 236 não se aplica aos serviços notariais e de registro que já tenham sido oficializados pelo Poder Público, respeitando-se o direito de seus servidores“. É o caso, entre outros, do Estado da Bahia. De fato, por força das Leis estaduais nºs. 1.909/63 e 3.075/72, o Estado da Bahia já havia oficializado os seus serviços notariais e de registro, não se aplicando a esses serviços a determinação do art. 236. Isso porque, o art. 32 do ADCT, relativamente aos serviços notariais e de registro que já tenham sido oficializados pelo Poder Público em período anterior à Constituição de 1988, excepciona a regra do exercício, em caráter privado, desses serviços.
Percebe-se, daí, a clara preferência da Constituição para a execução, modo privato, dos serviços de notas e registro, nada obstante a ressalva do art. 32 do ADCT. Nesse diapasão, entendeu o Supremo Tribunal Federal “que o sentido do artigo 236 da Carta Magna foi o de tolher, sem mesmo reverter, a oficialização dos cartórios de notas e registros” (RE 189.736, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 27/09/96; vide, também, RE 191.030-AgR, DJ 27/03/98 e RE 191.030-AgR-ED, DJ 07/04/00). Em razão dessa circunstância, vários Estado da Federação, por leis próprias, passaram a desoficializar esses serviços, dispondo sobre a privatização de sua execução, com o explícito propósito de se subtraírem da excepcionalidade do art. 32 do ADCT (execução em caráter oficial) e se enquadrarem à regra do art. 236 (execução em caráter privado), muito mais salutar e útil para toda a sociedade, à vista da maior eficiência típica do regime privado de execução. Isso ocorreu, por exemplo, com os Estados do Rio de Janeiro, Pernambuco, Mato Grosso do Sul, entre outros.
Todavia, o Estado da Bahia ainda se mantém na contramão da direção rumo à desoficialização. É imperioso, porém, que isso se reverta. E por vários motivos. A execução, em regime privado, dos serviços de notas e registro, já se disse, é muito mais útil e benéfica para todos. Primeiro porque os titulares dos serviços terão a liberdade de contratar, com remuneração livremente ajustada e sob o regime da CLT, os seus escreventes e auxiliares, tantos quantos sejam necessários para a presteza e eficiência no desempenho de seus serviços; segundo porque os notários e oficiais de registro gozarão de independência no exercício de suas atribuições e terão direito à percepção dos emolumentos integrais pelos atos praticados na serventia; terceiro em razão de ser livre a escolha do tabelião de notas, qualquer que seja o domicílio das partes ou o lugar de situação dos bens objeto do ato ou negócio, circunstância que, decerto, proporcionará uma saudável concorrência e, em conseqüência, uma maior dedicação entre os cartórios de notas.
Mas cumpre esclarecer que, nada obstante a privatização da sua execução, os serviços de notas e registro são autênticos serviços públicos, que não perdem a condição de função revestida de estatalidade, sujeitando-se, por isso mesmo, a um regime estrito de direito público, a justificar o controle pelo Poder Judiciário (CF/88, art. 236, § 1º). Ademais, a delegação dos serviços notariais e de registro depende de prévio concurso público de provas e títulos (CF/88, art. 236, § 3º).
Por todos esses motivos justifica-se a imediata privatização do exercício dos serviços públicos de notas e registro, que dependerá, a meu juízo, de lei cuja iniciativa pode ser do Tribunal de Justiça do Estado respectivo. Ora, se em consonância com o art. 96, inciso I, alínea b, da Constituição Federal, compete aos Tribunais organizar suas secretarias e serviços auxiliares e os dos juízos que lhes forem vinculados, velando pelo exercício da atividade correicional respectiva, cumpre-lhes, sem dúvida, como poder implícito, a iniciativa para deflagrar o processo legislativo destinado à desoficialização dos cartórios de notas e registro, como, aliás, já decidiu, em situação análoga, o STF (ADI 3.151, Rel. Min. Carlos Britto, julgamento em 8-6-05, DJ de 28-4-06).
Mas a privatização do exercício dos serviços notariais e de registro, além de depender de lei, está condicionada a assegurar o direito dos titulares, escreventes e auxiliares das serventias, como impõe a parte final do art. 32 do ADCT. Assim, afigura-se-nos necessário que a lei, ao desoficializar a execução dos serviços, deve garantir aos servidores dos cartórios o direito de optarem por permanecer submetidos ao regime ao qual estavam vinculados ou ao regime da Lei Federal nº. 8.935/94, que regulamenta o art. 236 da Constituição.
Cumpre desvelar, entretanto, a situação jurídica dos titulares de cartórios oficiais de notas e registro ante a sua desestatização, que optarem pelo regime da Lei nº 8.935/94, em especial diante da exigência de prévio concurso público de provas e títulos para o ingresso na atividade notarial e de registro. É certo, e disso não se ignora, que o STF vem sistematicamente declarando a inconstitucionalidade de normas estaduais que asseguram o direito do substituto de, na vacância da serventia, ascender à titularidade dos serviços (Conf. ADI nº 126-RO, Min. Octávio Gallotti, DJ de 05.06.92; ADI nº 690-GO, Min. Sydney Sanches, DJ de 25.08.95; ADI n. 552-RJ, Min. Sydney Sanches, DJ de 25.08.95; ADI nº 112-BA, Min. Néri da Silveira, DJ de 09.02.96; ADI nº 417-ES, Min. Maurício Corrêa, DJ de 08.05.98 e ADI nº 3.519/MC-RN, Min. Joaquim Barbosa, DJ de 30.09.05). Ocorre que, se na ocasião da desoficialização dos cartórios, existirem titulares nas serventias oficializadas, a estes deve ser assegurada a delegação constitucional para o exercício, doravante em caráter privado, dos serviços notariais e de registro, prevista no art. 236 da Carta Magna, não se lhes aplicando aquela jurisprudência da Corte. Nem se argumente que existe aí uma violação ou burla à determinação do concurso público, pois aqueles servidores já haviam cumprido, ainda quando os cartórios se encontravam sob o regime oficial, a exigência constitucional do concurso quando ingressaram na atividade notarial e de registro. Essa é uma interpretação que se impõe, à vista do escorreito exame e confronto sistemático do § 3º do art. 236 (que impõe o concurso público para o ingresso na atividade notarial e de registro), do inciso II do art. 37 (que exige o concurso público para o acesso a qualquer cargo ou emprego público, ressalvados os cargos em comissão) e o art. 32 do ADCT (que assegura o direito dos servidores das serventias oficializadas, exatamente quando passarem para o regime privado do art. 236), todos da Constituição Federal.
Em caso de privatização da execução dos serviços, não obsta o direito à delegação constitucional do art. 236, todavia, a circunstância de os titulares das serventias oficializadas, a despeito de concursados, terem assumido a titularidade por promoção ao cargo. Isso porque, quando os cartórios extrajudiciais se encontram sob o regime oficial, eles ostentam a natureza de verdadeiros órgãos públicos integrantes da Administração Pública Direta do Poder Judiciário Estadual. Como órgãos públicos, compõem-se de cargos públicos, organizados em carreira, que compreendem, basicamente, os cargos de subtabelião ou suboficial (substituto) e tabelião ou oficial (titular), de modo que a passagem de um cargo para outro se dá, à evidência, por provimento derivado vertical denominado, no Direito Administrativo, de promoção, alternadamente, por antiguidade ou merecimento. Não se pode, por conseguinte, confundir os cartórios sob o regime oficial (órgãos púbicos integrantes da estrutura da Administração Púbica Direta de um dos Poderes do Estado) com os cartórios sob o regime privado (estranhos à estrutura do Estado). Nesses últimos não há cargos públicos. Existem tão-somente atividades, que são exercidas em caráter privado, por delegação estatal. Assim, se é legítima, no âmbito dos cartórios oficializados, a promoção para o cargo público de tabelião ou oficial, como não assegurar aos titulares ascendidos regularmente aos seus cargos o direito à delegação constitucional do art. 236 da Constituição, na hipótese de privatização do exercício dos serviços notariais e de registro? É nesse sentido que se deve interpretar a última parte do art. 32 do ADCT.
Ademais, ainda que se ventile a irregularidade do provimento, por promoção, e não por novo concurso público, do cargo de titular do cartório oficializado, é preciso fazer uma explicação, se a tanto se chegar, em situação que aqui se discute apenas por admiração à dialética. Como se sabe, a Administração Pública, no exercício de sua prerrogativa de auto-tutela, pode extinguir os seus próprios atos, revogando os que se mostram inconvenientes e inoportunos e invalidando os que padeçam de vícios de ilegalidade. Contudo, o direito de a Administração rever os seus próprios atos não é perpétuo. Decai em 05 (cinco) anos, conforme alerta a esmagadora maioria doutrinária (conf., por todos, o nosso Curso de Direito Administrativo, ed. Juspodivm, e Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, ed. Malheiros). Ressalte-se que é tão pacífica essa posição, que a Lei Federal n. 9.784/99 (Lei do Processo Administrativo Federal), prevê, em seu art. 54, que “O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé”. Isto é, por mais que se faça um esforço na tentativa de atribuir às promoções para o cargo de titular a pecha de irregularidade, esses atos administrativos de provimento derivado estariam imunes ao poder revisório e corretivo do Estado quando publicados há mais de cinco anos.
Em suma, temos para nós que a privatização do exercício dos serviços notariais e de registro é providência que se impõe diante da necessidade de conferir uma maior eficiência e qualidade a esses importantes serviços públicos e que o direito dos atuais titulares de cartórios oficializados seja devidamente assegurado com a opção da delegação prevista no art. 236 do Estatuto Supremo.
Estas são as nossas singelas contribuições para o debate do tema.
[1] Juiz Federal na Seção Judiciária da Bahia; Doutor