Artigo – A união dos iguais (comentários à união civil dos homossexuais)

Já assinalava HERMES LIMA que a família é certamente a instituição mais antiga que a propriedade e o Estado e, porque não ressaltar também a mais dinâmica.

Urge, então a institucionalização da parceria civil dos homossexuais capaz de formar entidade familiar.

O reconhecimento das relações de afeto, de solidariedade e cooperação que ocorrem entre companheiros do mesmo sexo não tarda também a aflorar no direito positivo brasileiro.

À guisa do que se sucedeu com a união estável que conheceu três distintas fases. Sendo a primeira marcada pela radical rejeição e repulsa do concubinato, e com a tendência do Código Civil em 1916 eivados de moralismo francês, em só reconhecer como família legítima, a fundada pelo
casamento.

Culminando com a assimilação jurisprudencial no âmbito do direito obrigacional que impedisse o enriquecimento sem causa de um dos concubinos em detrimento do outro, com o reconhecimento da sociedade de fato.

Já a segunda fase, concluindo a cristalização final do conceito de concubinato puro ou honesto, sendo-lhe atribuídos em íntegros efeitos jurídicos quer na esfera previdenciárias, locatícia e assistencial.

Com a terceira fase, a mais evoluída de todas ocorre à tutela constitucional das entidades familiares não fundadas no casamento, conforme prevê art. 226 §3 CF/88.

Destilações teóricas mantiveram as censuras legais ao concubinato adulterino e ao incestuoso.

Pouco a pouco, o campo obrigacional não foi suficiente para abrigar as pretensões e recompensar o esforço de uma vida em comum. Esforço este, que tanto pode ter sido direto ou indireto, caracterizando ora serviços prestados com a formação de uma sociedade de fato e, como mais tarde, uma entidade familiar.

Sublinhe-se que a legislação pioneira em reconhecer os direitos da companheira foi à legislação previdenciária ex vi a Lei 4.297/63; Lei 6.194/74 encerrando a companheira como dependente do contribuinte falecido ou acidentado.

É óbvio que tamanha evolução legislativa e jurisprudencial jamais credenciou a união estável com privilégios superiores ao casamento, como deve acontecer o reconhecimento da união civil entre os homossexuais sobre as demais uniões pré-existentes, lícitas e legítimas.

Afora isto, até mesmo o concubinato impuro e indigno recebeu incentivo legislativo para que viesse a se tornar puro (vide divórcio a vínculo), propiciando até uma facilitada conversão
em casamento.

Mesmo
a ausência de pressupostos tais como a diversidade de sexos, não obsta a partilha de bens como base no enriquecimento sem causa e, conferindo efeitos legais para formação da sociedade de fato capaz de produzir efeitos patrimoniais.

De qualquer maneira permanece a união estável, a família monoparental, a adotiva e até substitutiva, todas amparadas constitucionalmente.

E como tais modelos embora extramatrimoniais geram efetivamente relações de direito de família, bastando à prova da contribuição patrimonial ainda que indireta e ratificada plenamente pelo direito sucessório da companheira.

Gustavo Tepedino ressalta em sua obra intitulada “Temas de Direito Civil” que na jurisprudência há quem considere herdeira a companheira, aplicando-lhe a regra do art. 1.611 do Código Civil, tout court. Vale reproduzir decisão neste sentido do Tribunal de justiça de Goiás, assim ementada:

“União Estável. Companheira. Herdeira”. 1. Provada à sociedade a existência de união estável id est entidade familiar, com aparência de matrimônio, que só se dissolveu com a morte do companheiro, sem deixar descendentes ou ascendentes, a companheira tem hoje proteção constitucional, ex vi do art. 226 da lei maior, e direito a perceber a totalidade dos bens deixados pelos de cujus, porquanto ela contribuiu direta e indiretamente para a formação e manutenção do patrimônio. 2. Inventário requerido por colateral: Considera-se írrito o processo de inventário aberto do de cujus, quando, in casu, sucessora é a companheira do extinto e segundo o art. 1.611 do C.C ela é quem tem legitimidade para tal, na ausência de descendentes, ou ascendentes (Acórdão 32.341/188).

Não havendo restrições expressas para pessoas solteiras, divorciadas ou impedidas para casar como os separados para a adoção, daí a necessidade de se regulamentar também os efeitos da união civil em face da filiação.

Com a valoração progressiva da relação jurídica afetiva estabelecida pela vida em comum, pela affectio maritalis, ao revés da prevalência do ato jurídico solene (como o casamento).

A própria acepção jurídica da família foi ampliada pela CF/88 e, ipso facto também o conceito de relação jurídica de direito de família.

É óbvio que a antiga família era atrelada ao direito positivo ao contrário da união estável que é atrelada ao direito natural, pois, que formada pela sucessão deliberada e duradoura de relações naturais que instituem uma relação de fato.

Registre-se que quanto à pensão alimentícia não é efeito próprio do casamento, decorre da conversão do dever de mútua assistência, e nem toda sociedade conjugal credencia tal obrigação, pois, dependerá também da necessidade do alimentando e das possibilidades do alimentante, e poderá vir a ser suprimida pela culpa conjugal.

Já quanto à parceria civil entre pessoas do mesmo sexo, na condição sui generis de entidade familiar, a proposta de emenda à Constituição 139, 1995 da então Deputada Marta Suplicy, atual prefeita de São Paulo (PT-SP), alterando os artigos 3o e 7o do texto constitucional e nominado de união civil entre parceiros do mesmo sexo, que é o substitutivo do deputado Roberto Jéferson (PTB-RJ) projeto de lei 1.151 de 1995, aprovado por deliberação da Comissão Especial da Câmara dos Deputados. Censurável a denominação de união por remeter a uma desconcertante idéia de liame, de casamento, daí a substituição por parceria que parece ser uma nomenclatura mais recomendável.

O parecer dos juristas tentou por sob os domínios obrigacionais tal projeto de lei, ora em trâmite no Senado Federal, e tenta dissuadir a discriminação por causa da orientação sexual, reconhecendo o direito à herança, à sucessão, aos benefícios previdenciários, ao seguro-saúde,
prevendo até a declaração em conjunto para o IR, direito a nacionalidade no caso de estrangeiro e, ainda o reconhecimento da renda conjunta para a compra financiada de imóvel. E não há paridade nenhuma com o casamento como bem salienta o professor baiano Orlando Gomes, pois, “o casamento entre pessoas do mesmo sexo é inconcebível. A exigência da diversidade de sexo constitui, entretanto, uma condição secula seculorum é velado inconteste pela Santa Sé, é antes disto é uma condição natural (…)”. Endossando Caio Mário da Silva Pereira profetisa: “O ato nupcial não tem em vista a união de duas pessoas quaisquer, porém duas pessoas de sexo oposto”.

De qualquer maneira a restrição jurídica fundada na discriminação sexual é atentatória à dignidade da pessoa humana que é consagrada no art. 1o, § 3o da CF.

Tal projeto de essência polêmica enfatiza proteção das minorias e tenta um desengessamento do Direito em face de sociedade notoriamente pluralista e heterogênea.

O casamento além de ser essencial para a formação legítima da família confere aos seus partícipes o estado civil de casados, promovendo uma série de efeitos próprios deste status.

Confere o vínculo de afinidade no parentesco além da formação da sociedade conjugal, podendo o casamento ainda ser emancipador, promover a organização de nova ordem de vocação sucessória bem como a disciplina das relações patrimoniais dos cônjuges através do regime de bens; e ainda, por fim, a imposição específica aos cônjuges dos deveres matrimoniais.

É bom que se mencione que a homossexualidade é procedimento comportamental há muito conhecido e presente nas mais diferentes sociedades e culturas e, nem sempre foi estimado como uma conduta perversa, abominável ou doentia.

Tendo já sido classificado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), sob o Código Internacional de Doenças (CID) nº 9 de 1975, preconizando no capítulo das “Doenças mentais” no sub-capítulo dos “Desvios e transtornos sexuais sob o número 302.0”.

Mais tarde, classificado como um dos sintomas decorrentes de circunstâncias psicossociais, sendo considerado como desajustamento social decorrente de discriminação religiosa, moral ou sexual.

Com o avanço das pesquisas, o homossexualismo deixa de ser doença e, passa a ser modo de ser e agir. Migra, portanto do terreno patológico para o cultural e sociológico.
Os psiquiatras contemporâneos não mais encontram sintomas que justifiquem a classificação do homossexualismo como doença.

Em 10/02/1998 o STJ reconheceu o direito de partilha de um homossexual de Minas Gerais sobre um apartamento que ele provou ter adquirido com o parceiro, morto em 1989, aos 37 anos, em conseqüência da AIDS. Os dois viverem juntos por sete anos.

Esse é o primeiro caso que o STJ julga relacionado à partilha de bens no casamento informal entre homossexuais. Mesmo sem admitir a validade jurídica da união entre pessoas do mesmo sexo, o STJ decidiu que o empresário MILTON ALVES PEDROSA, de Belo Horizonte, tem direito sobre a metade de um apartamento de 140 metros quadrados, no bairro dos Funcionários em Belo Horizonte, avaliado em R$ 120 mil.

A outra metade pertencerá à família de JAIR PREARO, companheiro de PEDROSA durante cerca de sete anos.

O pai de PREARO que mora em Bariri (SP), pretendia ficar com o imóvel. No processo, consta que o apartamento foi comprado no nome de PREARO porque ele tinha facilidade para obter financiamento.

Os quatro ministros que julgaram o caso na quarta Turma do STJ foram unânimes em reconhecer o direito de PEDROSA, sem validade jurídica da união entre pessoas do mesmo sexo.

Os ministros levaram em consideração questões que extrapolam o convívio na mesma casa; neste processo, PEDROSA provou que ele e o companheiro tinham conta conjunta na Caixa Econômica Federal e eram sócios em três empresas. Pedrosa havia obtido vitória na primeira instância judicial de Minas Gerais, mas foi derrotado no Tribunal de alçada. Pela decisão disse o tribunal, o convívio sob o mesmo teto de pessoas do mesmo sexo só caracteriza amizade.

Relator no STJ do recurso do empresário mineiro contra a sentença do T.A., o Ministro RUY ROSADO baseou seu voto na Súmula relativa ao concubinato.

O STF reconheceu, em 1964, o direito de partilha sobre bens adquiridos em conjunto quando comprovada a existência da sociedade de fato.

No recurso, PEDROSA também sustentava que pagou todas as despesas de assistência médica e enterro do companheiro. Mas o STJ negou seu pedido de indenização por causa disso.

O novo fenômeno da mídia de “lesbian chic“, lançado pela revista NEW YORK, por exemplo: traz uma forte conotação social, étnica e etária. E ao invés de abrir portas às para a homossexualidade feminina, criou a idéia de que até mesmo a orientação sexual é um privilégio de poucos. Sendo chique ou brega o lesbianismo continua ;casamento” dos homossexuais, se bem que antes disto em 1994, a internacionalmente famosa TV britânica BBC anunciava que seus empregados homossexuais gozavam do direito de uma semana de férias pagas para a lua-de-mel com o seu parceiro, incluindo o direito a receber o “bônus matrimonial”.

Nos EUA há várias seitas religiosas que realizam a “benção” ou a celebração da união de homossexuais dos pentecostais, fundamentalistas, mórmons e os segmentos evangélicos mais xiitas.

No judaísmo também há facção que reúne e aceita os gays e lésbicas, são reformistas admitindo até que possam ser rabinos e se posicionando favorável às tais uniões. A sinagoga Beth Simchat Torah (desde 1973) apóia a participação de homossexuais, é sitiadas no Chelsea (verdadeiramente um reduto de NOVA YORK).

Em França, há muito se propõe à viabilidade desses projetos que doam a designação de Pacto Civil de Solidariedade.

Se não fosse por alguns que se rebelaram e se indignaram diante da discriminação, ainda hoje, teríamos a pujança inquisitorial, queimando hereges, em fogueiras públicas, perseguindo negros, índios e outras minorias étnicas que continuariam alijados de sua condição humana, de cidadão e de civilidade.

É interessante lembrar que os homossexuais possuem cidadania apesar de lhes serem negada o mais primário direito de ter o reconhecimento civil de sua relação afetiva estável.

Ultrapassada a áurea mediocritas não se há de cogitar na equiparação da parceria civil entre pessoas do mesmo sexo com a união estável ou, mesmo a família monoparental ou unilateral. E não seria demais se cogitar abrigar também a união civil como formadora de entidade familiar.

Normalmente, o Estado prestigia e tutela as entidades que entende atenderem aos fins perseguidos por ele, daí o fenômeno da institucionalização.

O projeto SUPLICY número 1.151 de 1995, da atual prefeita de São Paulo, já fora apresentado para apreciação do Congresso Nacional e visa disciplinar a união civil entre os homossexuais. Num esboço contratual de parceria assegura as duas pessoas, o reconhecimento de sua relação, visando à proteção dos direitos à propriedade, à sucessão, previdenciários e até fiscais.

Ao legitimar a nova família homóloga que passará a ter registro em livro próprio, nos Cartórios de Registro Civil de Pessoas Naturais (art.2), figurando um novo “status” denominado de “unido” tomando feição de contrato público versando sobre disposições patrimoniais, deveres, impedimentos e obrigações mútuas (art.3).

O projeto também regula a extinção da união civil que ocorrerá por morte ou decisão judicial (quer de modo consensual ou litigioso) e, neste último caso, por infração contratual (art. 5, I), prevendo até a partilha de bens comuns.

A fidelidade do par é protegida até mesmo na esfera penal, contra duplicidade de uniões ou relacionamento de caráter bígamo (art.8).

Há também a instituição de bem de família, direitos sucessórios (art. 14) e proteção do estrangeiro (art.16).

Tal projeto de emenda constitucional de número 139 de 1995 regula atualmente a união civil e, tramitou no Congresso Nacional sob o designativo de Parceria Civil Registrada entre Pessoas do mesmo sexo, que é, substitutivo proposto pelo Deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) projeto já aprovado por deliberação da Comissão Especial da Câmara dos Deputados.

É um estatuto minucioso sem ambigüidade do concubinato e no pretenso descompromisso da união livre. Prevendo os anseios das minorias desvalidas, só pecando pela omissão quanto aos direitos de filiação (sobre a prole advinda naturalmente ou por adoção).

De qualquer maneira, da união civil se exige que seja séria, constante, e baseada na afeição e, deve ter sua dignidade respeitada.
Em alguns lugares, a exemplo de Nova Iorque admite-se que os “casais” homossexuais possuam inscrição na qualidade de dependente previdenciário.

Mesmo aqui entre os trópicos, o famoso e conservador Tribunal de Justiça de São Paulo, já concedeu a adição de herança, afastando os ascendentes, ao companheiro do falecido, com quem vivia, reconhecendo a existência contundente da sociedade de fato entre os dois membros da união homossexual (Apelação 232.289) ressalta o concurso econômico de ambos, ensejando o fomento da sociedade de fato, gerando com sua extinção enseja a indispensável partilha de bens.

Aliás, nesta esfera locatícia, não só o companheiro teúdo e manteúdo goza do direito de ser o legítimo sucessor na relação locatícia (art. 11, I da Lei 8.245/91) como também as outras pessoas que viviam às expensas do de cujus, desde que, residentes no imóvel gozam de igual legitimidade.
Ainda temos que questionar o direito de família moralista e buscar um amplo acesso à legalidade da realidade social ainda que das minorias.

Se bem que tal denominação poderá até ser um tanto precipitado, posto que nenhuma estatística séria evidenciou ser tal grupo, de fato, uma minoria.

Porém independente do número de pessoas envolvidas e, acreditando que a união civil terá o reconhecimento jurídico, teoria inclusive endossada por vários doutrinadores inclusive por LUIZ EDSON FACCHIN entre outros, conforme aconteceu com a união estável, resta ao menos a esperança que haja uma disciplinação técnica, despojada de preconceitos e capaz de acolher respeitosamente a dignidade humana presente em todas relações familiares da humanidade.

Porém, infelizmente, nosso recém aprovado Projeto de Código Civil Brasileiro silenciou quanto tal questão.

 

Gisele Leite é professora Universitária. Mestre em Direito, Mestre em Filosofia. Doutora em Direito Civil. Pedagoga e advogada.

 

Fonte: IBDFAM