Artigo – A união homoafetiva na jurisprudência – Por Gerivaldo Alves Neiva

A união homoafetiva na jurisprudência

Por Gerivaldo Alves Neiva: Juiz de Direito em Conceição do Coité (BA)

O Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, no julgamento do REsp 820.475, entendeu que “os dispositivos legais limitam-se a estabelecer a possibilidade de união estável entre homem e mulher, dês que preencham as condições impostas pela lei, quais sejam, convivência pública, duradoura e contínua, sem, contudo, proibir a união entre dois homens ou duas mulheres. Poderia o legislador, caso desejasse, utilizar expressão restritiva, de modo a impedir que a união entre pessoas de idêntico sexo ficasse definitivamente excluída da abrangência legal. Contudo, assim não procedeu.”

De forma expressa, portanto, entendeu o ministro que não existe proibição legal para o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo.

No caso concreto, A. C. S. e Outro propuseram perante a 4ª Vara de Família de São Gonçalo – RJ, ação declaratória de união estável sob a alegação de que iniciaram relacionamento homoafetivo no ano de 1988 de forma duradoura, contínua e pública, pautada pela consideração e respeito mútuo, pela assistência moral e material recíproca.

Em sua peça inicial, narraram que se conheceram no Brasil, em Copacabana, no Rio de Janeiro, quando o segundo recorrente, que é canadense, veio a serviço de seu país ao Brasil, decidindo, após, iniciarem relacionamento afetivo, morar sob o mesmo teto, no Canadá, sendo que adquiriram patrimônio naquele país e com o apoio moral dos amigos e familiares, casaram-se, segundo permite a lei canadense, passando a ter uma união estável pautada pela consideração e respeito mútuos.

Porém, em virtude de laços mais íntimos com o Brasil, e no intuito de ver reconhecida a sua união estável, ante a necessidade de o companheiro canadense obter visto permanente neste país, ajuizaram a presente ação declaratória de união estável.

A sentença extinguiu o feito sem resolução de mérito com fundamento no art. 267, VI, do Código de Processo Civil, ao argumento de que “… o pedido autoral é impossível de ser juridicamente atendido, posto lhe faltar previsão legal”.

Em seu voto, o Ministro Antônio de Pádua Ribeiro determinou que o Juiz de primeira instância julgasse o mérito do pedido: “da análise dos dispositivos transcritos não vislumbro em nenhum momento vedação ao reconhecimento de união estável de pessoas do mesmo sexo, mas, tão-somente, o fato de que os dispositivos citados são aplicáveis a casais do sexo oposto, ou seja, não há norma específica no ordenamento jurídico regulando a relação afetiva entre casais do mesmo sexo. Todavia, nem por isso o caso pode ficar sem solução jurídica, sendo aplicável à espécie o disposto nos arts. 4º da LICC e 126 do CPC. Cabe ao juiz examinar o pedido e, se acolhê-lo, fixar os limites do seu deferimento.”

E disse mais o Ministro: “duas pessoas com relacionamento estável, duradouro e afetivo, sendo homem e mulher formam união estável reconhecida pelo Direito. Entre pessoas do mesmo sexo, a relação homoafetiva é extremamente semelhante à união estável”.

Ao final, observou o Ministro que “a lacuna da lei não pode jamais ser usada como escusa para que o juiz deixe de decidir, cabendo-lhe supri-la através dos meios de integração da lei.”

No STF, o Ministro Celso de Mello, relator da ADI-MC 3300-DF, cujo objeto era o artigo 235, do Dec. Lei nº 1.001/69, (Praticar, ou permitir o militar que com êle se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar: Pena – detenção, de seis meses a um ano.) ao declarar extinto o processo por perda de objeto, destacou a importância da discussão sobre o reconhecimento das uniões estáveis homoafetivas como entidade familiar, na forma definida pelo artigo 1.723 do Código Civil:

“(…) concluo a minha decisão. e, ao fazê-lo, não posso deixar de considerar que a ocorrência de insuperável razão de ordem formal (esta adin impugna norma legal já revogada) torna inviável a presente ação direta, o que me leva a declarar extinto este processo (rtj 139/53 – rtj 168/174-175), ainda que se trate, como na espécie, de processo de fiscalização normativa abstrata (rtj 139/67), sem prejuízo, no entanto, da utilização de meio processual adequado à discussão, “in abstrato” – considerado o que dispõe o art. 1723 do código civil – , da relevantíssima tese pertinente ao reconhecimento, como entidade familiar, das uniões estáveis homoafetivas. Arquivem-se os presentes autos. Publique-se”.

No mesmo sentido, recentemente, decidiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO. UNIÃO HOMOAFETIVA. RESSARCIMENTO. NECESSIDADE DE PROVA INEQUÍVOCA DE APORTES FINANCEIROS DIRETOS. PEDIDO ALTERADO. UNIÃO ESTÁVEL. DESCABIMENTO. 1. O direito brasileiro não veda a sociedade de fato entre pessoas do mesmo sexo, sendo necessário, entretanto, que aquele que busca o ressarcimento sobre possível participação na aquisição do patrimônio amealhado na constância da sociedade fática, demonstre, através de prova inequívoca, sua participação efetiva na construção do patrimônio através de aportes financeiros diretos. 2. Como a autora comprova pagamentos feitos relativamente à aquisição do imóvel, exibindo recibos, é cabível a partilha dos valores pagos. Recurso provido, em parte, por maioria, vencido o Relator. (Apelação Cível Nº 70024543951, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 05/11/2008)

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, de sua vez, também tem admitido a hipótese da pensão por morte devida a companheiros de mesmo sexo na constância união hooafetiva:

PREVIDÊNCIA SOCIAL – Pensão. – A pensão por morte é devida a companheiros de mesmo sexo na constância da união homoafetiva em face do princípio constitucional da igualdade (art. 5º, caput, I, CF). – O benefício da pensão por morte deve corresponder à totalidade dos vencimentos ou proventos do servidor falecido. – Inteligência do art. 40, § 5º, CF. 2. Os juros de mora incidem a partir da citação (art. 405 CC e art. 219 CPC) à razão de 6º ao ano, pois se trata de verba de caráter remuneratório (art. 1º-F da Lei nº 9.494/97. – Precedentes do STF. – Sentença reformada. – Recurso provido.

Ap. Cível. 726.939.5/7-00. Apelante: Antônio de Pádua Carneiro. Apelado: IPESP. Rel. Rebouças de Carvalho. Julgamento: 17.12.2008.

O Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, de modo divergente, tem entendido pela impossibilidade jurídica do pedido, tese já afastada pelo STJ:

AÇÃO DECLARATÓRIA DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO HOMOAFETIVA. INDEFERIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL POR IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. LEGISLAÇÃO EM VIGOR QUE NÃO AMPARA TAL PRETENSÃO. ART. 226, § 3º, CF, LEI 9.278/96 E ART. 1.723 DO CC. NORMAS QUE EXPRESSAMENTE ESTABELECEM COMO UM DOS REQUISITOS AO RECONHECIMENTO DA UNIÃO ESTÁVEL A DIVERSIDADE DE SEXOS. SENTENÇA CONFIRMADA. RECURSO DESPROVIDO.

“O relacionamento homoafetiva entre pessoas do mesmo sexo não pode ser reconhecido como união estável, a ponto de merecer a proteção do Estado, porquanto o § 3º do art. 226 da Carta Magna e o art. 1.723 do Código Civil somente reconhece como entidade familiar aquela constituída entre homem e mulher.” (Ap. Cív. n. 2006.016597-1, da Capital, rel. Des. Mazoni Ferreira)

É o mesmo entendimento do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

ENTIDADE FAMILIAR. UNIÃO ESTÁVEL. PESSOAS DO MESMO SEXO. RECONHECIMENTO. VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL. DEPENDÊNCIA PREVIDENCIÁRIA. PENSÃO POR MORTE. IMPOSSIBILIDADE. – A Constituição da República não considera como entidade familiar a união entre pessoas do mesmo sexo, sendo casuísticas as respectivas definições do art.226. – A consagração do companheirismo como forma de dependência previdenciária atende os princípios da entidade familiar, revelada por união estável, não se admitindo pensão para pessoa do mesmo sexo, em consideração de união homossexual.

Ap. Cível. 1.0702.04.182123-3/001. Rel. Ernane Fidélis. Julgamento 29/05/2008

O Estado do Rio de Janeiro, através da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, em que sustenta como preceitos fundamentais violados o direito à iguadade, à liberdade, o princípio da dignidade dapessoa humana e da segurança jurídica, e como dispositivos causadosres da lesão o artigo 19, IIe V e o art. 33, I a X, e parágrafo único, todos do Dec. Lei 220, de 18.07.1975 (Estatuto dos Servidores Civis do Estado do Rio de Janeiro), bem como decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janriro às uniões homoafetivas o mesmo regime jurídico das uniões estáveis, provocou o STF para se manifestar, na forma de controle de constitucionalidade através da Ação de Descumprimento Fundamental, sobre a união estável homoafetiva.

Na verdade, os Tribunais e a doutrina estão apenas antecipando o que se discute no âmbito do Projeto de Lei nº 2285/07, o Estatuto das Famílias, que dispõe:

Art. 68. É reconhecida como entidade familiar a união entre duas pessoas de mesmo sexo, que mantenham convivência pública, contínua, duradoura, com objetivo de constituição de família, aplicando-se, no que couber, as regras concernentes à união estável.

Parágrafo único. Dentre os direitos assegurados, incluem-se:

I – guarda e convivência com os filhos;

II – a adoção de filhos;

III – direito previdenciário;

IV – direito à herança.

Concluindo, o papel da jurisprudência é exatamente este: antecipar um entendimento a ser transformado em Lei pelo Congresso Nacional. Assim, estendendo o conceito de união estável às uniões homoafetivas, os Tribunais intrpretam de forma coerente a Constituição Federal, visando a efetividade dos princípios da igualdade e dignidade da pessoa humana.

Negar a existência das uniões honoafetivas é negar os fatos e ao Direito não é dado o direito de negar os fatos socias, sob pena de se afastar cada vez mais da sociedade. Ora, se as uniões honoafetivas existem, cabe ao Direito encontrar os caminhos, dentro do ordenamento jurídico, para a solução dos conflitos advindos desse relacionamento. Muito cômodo, é verdade, simplesmente alegar que aquele fato não é previsto em lei. Ora, se ainda não é cabe ao Juiz utilizar dos princípios do Direito, enquanto ciência jurídica, e resolver a demanda que lhe é proposta.

Por fim, até que se aprove o Estatuto das Famílias, cabe aos juízes e Tribunais, quebrando as amarras do preconceito e discriminação, entender que duas pessoas do mesmo sexo podem conviver em união estável sob a proteção do Estado Democrático de Direito.

 

Fonte: Jus Navigandi