Artigo – Aposentadoria do notário e registrador à luz da jurisprudência do STF-Por Mariângela Ariosi

Um dos assuntos que mais têm suscitado a atenção da doutrina é a aposentadoria do titular de cartório. A Lei 8935/1994, conhecida como Lei dos Notários Registradores (LNR), regulamenta o artigo 236 da CRFB, estabelecendo a disciplina jurídica dos cartórios. É na LNR que se podem encontrar positivadas as regras de provimento da carreira, os tipos de penalidades aplicadas aos titulares e as formas de perda da delegação.

Estabelece a LNR, em seu art. 39, que a vacância ocorre por invalidez, pela aposentadoria facultativa, morte, perda da delegação (art. 35) e pelo não-cumprimento da gratuidade, nos casos estabelecidos em lei. Registre-se que o rol do art 39 é meramente exemplificativo, haja vista o esquecimento do legislador de incluir, como uma das causas de vacância, a remoção.

Neste sentido, cumpre lembrar que existem duas formas de concurso: de ingresso e de remoção. O concurso de ingresso deve se realizar sempre que o cartório estiver vago, sem titular concursado, por mais de seis meses; é composto de prova escrita e de prova de títulos. Já o concurso de remoção é destinado a quem já faz parte do quadro, ou seja, já foi aprovado em concurso de ingresso e já é titular de um dos serviços extrajudiciais de seu Estado. O concurso de remoção permite, portanto, uma promoção do titular de cartório em sua carreira.

Ocorre que, se o titular de um cartório é “removido” para outro cartório, ele deixa pra trás o seu antigo, que será ocupado pelo Responsável pelo Expediente – RE -, que não é concursado. Com a remoção, a titularidade do antigo cartório fica vaga. Em suma, da mesma forma que a remoção é forma de vacância, também é de provimento.

Outrossim, o art. 39 da LNR elenca, como uma das formas de vacância, a aposentadoria facultativa. Por uma interpretação literal, entende-se que o tabelião se aposenta se ele quiser, podendo permanecer como titular do cartório até a sua morte. À luz do entendimento do art. 39, o cargo de titular de cartório é vitalício. Este dispositivo legal tem trazido grande discussão para a doutrina e para a jurisprudência, em todas as suas instâncias. O próprio STF alterou seu posicionamento recentemente sobre esta questão. Neste sentido, passa-se, a seguir, para uma descrição temporal dos posicionamentos do STF sobre a aposentadoria do tabelião.

Pode-se dizer, no que diz respeito à aposentadoria do notário e registrador, que existem duas fases: a primeira, marcada pelo entendimento de que ao tabelião era aplicável a regra da aposentadoria compulsória; e uma segunda fase, pela qual o tabelião se aposentaria facultativamente. Segue, abaixo, um breve panorama da jurisprudência do STF que delimita estas duas fases.


1. Primeira fase: aposentadoria compulsória do notário e registrador

Esta fase tem um leading case que demarcou este posicionamento, influenciando toda a jurisprudência a posteriori; trata-se do Recurso Extraordinário nº 178.236, que obteve a maioria de votos no Plenário do STF e teve como relator o Sr. Ministro Octavio Gallotti. No acórdão, decidiu-se que os titulares das serventias de notas e registros estariam sujeitos à aposentadoria compulsória, prevista no artigo 40, II, da Constituição Federal. Entendeu a maioria do Pleno do STF, em síntese, que o sentido do artigo 236 da Carta Magna foi o de tolher, sem mesmo reverter, a oficialização dos cartórios de notas e registros, em contraste com a estatização estabelecida para as serventias do foro judicial pelo art. 31 do ADCT. Ademais, acrescentou à decisão que, pelas características desses serviços (inclusive firmou entendimento que os emolumentos têm natureza de taxa) e pelas exigências feitas pelo artigo 236 da Carta Magna (tais como a exigência de concurso público de provas e títulos para provimento e o concurso de remoção), os titulares dessas serventias seriam servidores públicos em sentido amplo, aplicando-se-lhes o preceito constitucional relativo à aposentadoria compulsória, determinada pelo citado artigo 40, II, da Constituição Federal.

O Recurso Extraordinário 189.236 foi conhecido, pela letra “c” do inciso III do artigo 102 da Constituição, mas não provido; portanto, a decisão do STF manteve o acórdão recorrido em sede de RE, este também no sentido de firmar a aposentadoria compulsória para os notários e registradores.

Muitas decisões se seguiram ao RE 189.236, algumas, inclusive, mencionando o referido RE. Por exemplo, o Recurso Extraordinário 189736/SP, julgado em 1996, traz em sua ementa menção ao RE 189236:

RE 189736 / SP – SÃO PAULO

RECURSO EXTRAORDINÁRIO

Relator(a):  Min. MOREIRA ALVES

Julgamento:  26/03/1996  

Órgão Julgador:  Primeira Turma

Publicação DJ 27-09-1996 PP-36168 EMENT VOL-01843-06 PP-01141

Parte(s)

RECTE. : ANTONIO RUBIAO SILVA JUNIOR

RECDO. : ESTADO DE SÃO PAULO

Ementa

EMENTA: Aposentadoria dos titulares das serventias de notas e registros. Aplicação a eles da aposentadoria compulsória prevista no artigo 40, II, da Constituição Federal. – Há pouco, o Plenário desta Corte, por maioria de votos, ao julgar o RE 178.236, relator o Sr. Ministro Octavio Gallotti, decidiu que os titulares das serventias de notas e registros estão sujeitos à aposentadoria compulsória (…) (grifos nossos)

No RE 178236, mencionado na Ementa acima transcrita, tabeliã do 15º Ofício de Notas da comarca da capital, Rio de Janeiro, ao completar 70 anos de idade em 1989, ajuíza ação ordinária em face do Estado do Rio de Janeiro, cujo pedido era sua permanência no serviço cartorário, que fosse “o réu condenado a abster-se de aposentá-la compulsoriamente”. O pedido da tabeliã foi julgado improcedente em primeiro grau; foi interposta apelação, que também foi negado pela E. Quarta Câmara do TJ/RJ. Restou à tabeliã, como última esperança, o Recurso Extraordinário ao STF, igualmente negado.

Alegou a autora, em defesa de sua tese, que, com a privatização da atividade notarial, conferida pelo art. 236 da CRFB, embora público o serviço, o particular que o presta por delegação deixou de ser funcionário público, não devendo se submeter à aposentadoria compulsória. Menciona a recorrente sobre a diferença entre cargo e serviço público, asseverando que o tabelião não é um funcionário público, mas, sim, um delegatário de função pública, exercida pelo particular, no caso o tabelião. Este, a propósito, é o ponto de vista da doutrina majoritária. Alertou para a novidade trazida pelo texto constitucional de 1988, através da qual o Estado se encolheu e privatizou suas atividades em um modelo neoliberal de desenvolvimento. Desta forma, a atividade notarial e registral teria sido incorporada pela privatização econômica, como qualquer outra atividade produtiva.

Por fim, a autora chamou atenção para o art. 39 da LNR, que expressamente contemplou apenas a aposentadoria facultativa. Em seu Recurso Extraordinário ao STF, a autora diz que: “A mesma não é servidora pública, apenas exerce apenas atividades delegadas e tem desde a promulgação da CRFB de 1988 suas atividades tidas como de natureza privada – não podendo, desta forma, ser aposentada como se servidora pública fosse”. [01]

Em março de 1996, o Pleno do STF decidiu pela improcedência do pedido do RE 178236; votaram a favor da aposentadoria facultativa do tabelião os Ministros Francisco Rezek, Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio, vencidos em seus votos. Os fundamentos do voto proferido por Gallotti, a favor da aposentadoria compulsória dos notários e registradores, podem ser resumidos na seguinte passagem:

Público continua o serviço exercido pelos titulares de cargos criados por lei, em número certo e com designação própria, sujeitos a permanente fiscalização do Estado, diretamente remunerados à conta de receita pública (custas e emolumentos fixados em lei), e, sobretudo, investidos por classificação em concurso público. (…)

Não é de clientela, como propõe a recorrente em suas doutas razões, a relação entre o serventuário e o particular (como sucede com a profissão de advogado), mas informada pelo caráter de autoridade, revestida pelo Estado de fé pública. (…)

O símbolo da privatização que a recorrente vê consagrada na Constituição em vigor, é somente dirigido à atividade econômica, não, ainda, à prestação do serviço público. (…)

O cartório não voltou a ser propriedade ou donatária, nem possui a serventia caráter de empresa.

No voto, o Ministro Gallotti ainda lembrou que:

Aspecto particular que vem, igualmente da tradição, é organização dos serviços. Titulares de ofícios de justiça podem incumbir-se de sua instalação material. Podem alugar ou comprar os prédios que lhes servem de sede. Por outro lado, podem contratar empregados, prepostos seus. É peculiaridade destes serviços. Acentuei, por isso, de começo, que se trata de serviço público, com características especiais. A serventia não tem caráter de empresa privada. O eminente Professor José Frederico Marques, e parecer invocado na discussão, afirmou terminantemente: “embora não se possa comparar o cartório a um empresa, igualmente não se lhe pode equiparar totalmente a uma repartição pública”. A serventia não é empresa, que pelo objeto da atividade, quer pela relação jurídica existente etre o titular da serventia e o Estado. Pode ser empresa o ofício que exercita ativiade pública desse tipo? Não se cuida, ademais, de organização que fique a cargo, exclusivamente, do titular do ofício. Em qualquer caso, a organização é regulada por lei; o serviço fica sujeito ao controle e à disciplina judicial. [02]

Quanto à LNR, que expressamente traz a aposentadoria facultativa, o Ministro Gallotti diz que “Devem as leis ser entendidas de acordo com a Constituição – Todos o sabemos – e não esta última na conformidade das leis ordinárias.” [03]. No seu entender, a LNR deve ser interpretada conforme a Constituição, ou seja, de acordo com o art. 40, II, que assevera a aplicação da aposentadoria compulsória aos tabeliães. E assim foi pacificado entendimento jurisprudencial impedindo a permanência de tabelião com mais de 70 anos de idade.

Outros acórdãos se seguiram ao lendário RE 178.236, de 1996: RE 191.030, RE 191, RE 199.801, ADI 1531, todos assegurando o caráter público do notário e registrador, fato que acarretaria aplicação da aposentadoria compulsória aos 70 anos de idade.

Isto posto, a LNR já foi impugnada em algumas ações de controle de constitucionalidade. Uma das primeiras ações ajuizadas foi a ADI 1531 – MC. Nesta ADI, o Partido Progressista atacou o §2º do art. 25 da LNR, afirmando sua inconstitucionalidade, sob a alegação de contrariedade frontal ao inciso III do art 38 da CRFB. Indiretamente, a ADI 1531 esbarra na condição do delegatário e influencia as demais decisões no STF. Segue, abaixo, o dispositivo atacado:

Art. 25, da Lei 8935/94

O exercício da atividade notarial e de registro é incompatível com o exercício da advocacia, o da intermediação de seus serviços ou o de qualquer cargo, emprego ou função públicos, ainda que em comissão.

§2º – A diplomação, na hipótese de mandato eletivo, e a posse nos demais casos, implicará no afastamento da atividade.

Assim, o § 2º do art. 25 da LNR violaria o disposto no inciso III do art. 38 da CRFB, impedindo que o servidor público, investido no mandato de vereador, havendo compatibilidade de horários, pudesse permanecer em seu cargo ou função sem prejuízo da remuneração do cargo eletivo. Na decisão de mérito, o STF deu interpretação conforme à Constituição sem redução de texto ao inciso II do art. 25 da Lei 8.935/94, permitindo que o notário e registrador pudessem tomar posse como vereador, desde compatível com seu horário de trabalho no cartório.

Foi nesta discussão que o STF, através do voto do relator, sr. Ministro Sydney Sanches, afirmou que: “Assim, o notários, ou tabelião, e oficial de registro, ou registrador, são profissionais do direito dotado de fé pública, a quem é delegado o exercício a atividade notarial e de registro.” [04]. Disse ainda: “A atuação em função pública dá-se em função de delegação recebida do poder estatal, porém não perdem, aqueles agentes públicos, a característica de particulares em colaboração com a Administração Pública, não podendo ser considerados como servidores públicos.” [05]. Disse ainda em seu voto que os delegatários são “agentes especiais” “… não estando subordinados hierárquica ou administrativamente à autoridade ou órgão público”.

É ilustrativa esta passagem da decisão, abaixo transcrita, que deixa claro o posicionamento do STF quanto ao status do delegatário.

Dispondo sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, a Lei 8112, de 11.12.1990, definiu servidor como “a pessoa legalmente investida em cargo público” (art. 2º).

Não é o caso dos notários registradores, que não são investidos em cargos públicos, mas, sim, exercem atividade em caráter privado, por delegação do poder público (art. 236 da Constituição Federal).

Por isso, quando, no art. 38, a Constituição Federal tratou do “servidor público em exercício de mandato” quis se referir apenas àquele efetivamente vinculado à administração pública e a seus quadros, pago pelos cofres públicos. (…)

Em outras palavras, a norma geral do art. 38 dirigida ao “servidor público”, propriamente dito, “em exercício de mandato”, não tem aplicação ao notário e ao registrador regulados, no ponto, por norma especial, constitucionalmente autorizada. [06]

Pode-se observar que, apesar de a ADI 1531 não versar diretamente sobre a aposentadoria do tabelião, ela traz fundamentos objetivos acerca do caráter privado do exercício da atividade cartorária.


2. Segunda fase: aposentadoria facultativa do tabelião (notário / registrador)

Foi no julgamento da ADI 2602, que teve como relator o sr. Ministro Moreira Alves, que o Pleno reverteu seu posicionamento, sobremaneira em razão do advento da EC 20/1998, que teria repercutido na amplitude do alcance dos efeitos do inciso II, § 1º, art. 40, CRFB, anteriormente art. 40, II.

Na ADI 2602 se entendeu que a alteração no termo “servidor” para “servidores titulares de cargos efetivos” teria significado o afastamento dos notários da exigência da aposentadoria compulsória aos 70 anos de idade. Segue, abaixo, extrato da Ementa da ADI 2602:

O art. 40, §1º, II, CRFB, na redação que lhe foi conferida pela EC 20/98, está restrito aos cargos efetivos da União, dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas as autarquias e as fundações.

(…) Os notários e os registradores exercem atividade estatal, entretanto não são titulares de cargo público efetivo, tampouco ocupam cargo público. Ao são servidores públicos, não lhes alcançando a compulsoriedade imposta pelo mencionado art. 40, CRFB. Aposentadoria aos 70 anos de idade.

À ADI 2602, seguiram-se outras: ADI 2891/RJ, Pet. 2890/SP, Pet. 2903.

Atualmente, é o entendimento do STF que os delegatórios de cartório extrajudicial não se sujeitam à disciplina constitucional da aposentadoria compulsória aos 70 anos de idade. Os fundamentos estão na alteração do art. 40 da CRFB, conforme extrato de Ementa acima transcrito.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos Comentada. São Paulo: Saraiva, 16ª edição, 2005.

Fontes primárias de pesquisa

RE 178.236

RE 191.030

RE 191

RE 199.801

ADI 1531

ADI 2602


Notas

01 RE 178.236.

02 Citação da Representação nº 891, RTJ 68/311 no RE 178236.

03 RE 178236.

04 ADI 1531.

05 ADI 1531.

06 ADI 1531.

 

Fonte: Jus Navigandi