Questão recorrente nos tabelionatos de notas é a possibilidade ou não de incapazes adquirirem veículos. O problema, aparentemente simples, envolve no entanto, tanto o direito civil quanto o direito tributário e merece análise mais detida.
Estabelece o Código Civil Brasileiro, art. 1.691:
Art. 1.691. Não podem os pais alienar, ou gravar de ônus real os imóveis dos filhos, nem contrair, em nome deles, obrigações que ultrapassem os limites da simples administração, salvo por necessidade ou evidente interesse da prole, mediante prévia autorização do juiz.
Logo, de acordo com o Código Civil, os pais não podem contrair em nome de seus filhos obrigações que ultrapassem os limites da simples administração, havendo necessidade de autorização judicial nos demais casos.
Nos termos do Código de Normas do Estado de Minas Gerais, Provimento nº 260/CGJ/MG, art. 276:
Art. 276. O reconhecimento de firma de autoria de menor entre 16 (dezesseis) e 18 (dezoito) anos, quando cabível, depende de assistência, no ato respectivo, de ambos os pais, ou de um deles, sendo o outro falecido ou declarado ausente, ou ainda do tutor, devendo também o cartão de autógrafos ser assinado pelos representantes legais do menor. (sem grifos no original)
O Código de Normas do Estado de Minas Gerais não está em conflito com a lei civil, expressamente constando que o reconhecimento de firma de autoria do menor, quando cabível, depende de assistência no ato respectivo, de ambos os pais. Deve, pois, ser verificado pelo tabelião se o reconhecimento de firma é cabível ou não.
A aquisição de veículo em nome do menor ou incapaz não é ato de simples administração e por vezes não tem em vista o melhor interesse do menor ou incapaz. Na praxe do Cartório do Barreiro, ao indagar o motivo para pôr o veículo em nome do menor, muitas vezes a justificativa é: para fugir das consequências das infrações de trânsito! Há, portanto, um interesse escuso por trás da prática! Nesse aspecto, é importante lembrar que, no notariado do tipo latino, incide o princípio da juridicidade, de modo que é obrigação do tabelião orientar as partes sobre a licitude dos atos, não praticando atos inexistentes ou nulos: é a polícia jurídica notarial. Deve o tabelião também zelar pela real manifestação de vontade, protegendo o hipossuficiente.
Não se pode ignorar que a aquisição de um veículo não é investimento, é custo, gera dívidas e obrigações, como pagamento do IPVA, por exemplo. Portanto, mesmo se o menor tem recursos, o genitor não pode, sem autorização judicial, utilizar esses recursos para adquirir um veículo, que desvaloriza, estando o negócio, de qualquer forma, além da "mera administração".
Sobre os atos de mera administração, o Superior Tribunal de Justiça já esclareceu o que são, limitando-os, como se pode observar das ementas abaixo reproduzidas, com grifos nossos:
Processo
AgRg no Ag 1065953 / SP – AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO
2008/0138082-5
Relator(a)
Ministro SIDNEI BENETI (1137)
Órgão Julgador
T3 – TERCEIRA TURMA
Data do Julgamento
07/10/2008
Data da Publicação/Fonte
DJe 28/10/2008
Ementa
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL – AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO – FAMÍLIA – PODER FAMILIAR – ADMINISTRAÇÃO DE BENS DE FILHO – CONTRATAÇÃO DE SERVIÇOS ADVOCATÍCIOS – HONORÁRIOS FIXADOS EM 30% DO VALOR TOTAL DA CAUSA – NECESSIDADE DE INTERVENÇÃO JUDICIAL – SERVIÇO QUE BENEFICIOU MAIS O GENITOR DO QUE A PRÓPRIA MENOR, EM NOME DE QUEM O PATROCÍNIO FOI CONTRATADO.
I – O Código Civil, apesar de outorgar aos pais amplos poderes de administração sobre os bens dos filhos, não autoriza a realização de atos que extrapolem a simples gerência e conservação do patrimônio do representado.
II – Se o representante legal assume, sem prévia autorização judicial, contrato de prestação de serviços advocatícios em nome da filha, sendo o valor fixado dos honorários desproporcional (30% do valor total da causa), com o conseqüente comprometimento do patrimônio da representada, deve avocar para si a obrigação, ainda mais se considerado que, no caso concreto, os advogados contratados prestaram mais serviços ao representante do que à representada. Agravo regimental improvido.
Processo
REsp 439545 / SP – RECURSO ESPECIAL 2002/0064686-4
Relator(a)
Ministro JORGE SCARTEZZINI (1113)
Órgão Julgador
T4 – QUARTA TURMA
Data do Julgamento
03/08/2004
Data da Publicação/Fonte
DJ 06/09/2004 p. 261
Ementa
CIVIL – RECURSO ESPECIAL – INVENTÁRIO – MENORES – DEPÓSITO JUDICIAL – PÁTRIO PODER MATERNO – LEVANTAMENTO DA TOTALIDADE DOS BENS – ADMINISTRAÇÃO DOS PAIS – LIMITAÇÃO DE GASTOS – PROTEÇÃO DOS BENS – DISSÍDIO PRETORIANO COMPROVADO, PORÉM, INEXISTENTE.
1 – Divergência jurisprudencial comprovada, nos termos do art. 255 e parágrafos do RISTJ. Prequestionamento demonstrado. Conhecimento pelas alíneas "a" e "c" do permissivo constitucional.
2 – O pátrio poder deve ser exercido no proveito, interesse e proteção dos filhos menores. Todavia, a atuação dos pais no desempenho desse munus, não é irrestrita, além de não poderem alienar bens imóveis sem autorização judicial, também dispõe o artigo não caber aos genitores contrair obrigações que acarretem diminuição do patrimônio gerido, a menos sob hipótese de extremada necessidade da prole. Inteligência dos arts. 385 e 386, ambos do CC/1916.
3 – No caso vertente, o Tribunal a quo corretamente manteve o dinheiro herdado pelos menores em conta judicial, garantindo, no entanto, o atendimento das necessidades da prole, mediante autorização para levantamento dos frutos e possibilidade de efetuar-se saque da quantia de R$3.000,00, a ser renovado periodicamente, aprovadas as contas a serem apresentadas pela genitora. Restou deferida, inclusive, a hipótese de se abaterem montantes maiores, desde que demonstrada a chance de emprego em investimentos de rentabilidade melhor.
4 – Precedente (REsp nº 292.974/SP).
5 – Recurso conhecido, por ambas as alíneas, porém desprovido.
Processo
REsp 292974 / SP RECURSO ESPECIAL 2000/0133409-3
Relator(a)
Ministra NANCY ANDRIGHI (1118)
Órgão Julgador
T3 – TERCEIRA TURMA
Data do Julgamento
29/05/2001
Data da Publicação/Fonte
DJ 25/06/2001 p. 173
JBCC vol. 192 p. 453
LEXSTJ vol. 147 p. 229
REVFOR vol. 365 p. 222
RJADCOAS vol. 24 p. 96
RSTJ vol. 146 p. 306
Ementa
Recurso Especial. Indenização por danos materiais e morais. Transação extrajudicial celebrada pelo pai, em nome dos filhos menores. Recebimento de direitos indenizatórios por atos ilícitos relativos. Quitação geral. Pátrio poder. Poderes de administração dos bens dos filhos. Ato que extrapola a simples gerência e conservação do patrimônio dos menores. Autorização judicial. Imprescindibilidade. Intervenção do Ministério Público. Obrigatoriedade. Art. 82, II, do CPC.
– O Código Civil outorga aos pais amplos poderes de administração sobre os bens dos filhos, mas estes não abrangem os atos que extrapolem a simples gerência e conservação do patrimônio do menor.Não podem, assim, praticar atos de disposição, a não ser nos casos especiais mencionados no art. 386 do CC, mediante as formalidades legais exigidas.
– A transação, por ser negócio jurídico bilateral, que implica concessões recíprocas, não constitui ato de mera administração a autorizar o pai a praticá-la em nome dos filhos menores independentemente de autorização judicial. Realizada nestes moldes não pode a transação ser considerada válida, nem eficaz a quitação geral oferecida, ainda que pelo recebimento de direitos indenizatórios oriundos de atos ilícitos.
– O Ministério Público atua para proteger interesses indisponíveis. No rol destes estão os relacionados à patria potestas. É de interesse do Estado assegurar a proteção da relação que envolve pais e filhos. Neste diapasão, quaisquer questões relativas aos direitos de ordem patrimonial dos filhos, assim como, aqueles que concernem ao usufruto e administração pelos pais sobre seus bens, transcendem a órbita do direito privado e justificam a atuação do Ministério Público na causa concernente, com arrimo art. 82, inciso II, do CPC.
– Com vistas a impedir atos fraudulentos ou o propiciar de perdas desvantajosas para o menor, competirá ao Ministério Público, nestes casos, coadjuvar seu representante na defesa dos interesses que estão afetos ao incapaz, bem como, fiscalizar os negócios por ele praticados que impliquem vedada disposição de bens. Tal participação é obrigatória, sob pena de nulidade.
– Recurso especial a que se nega provimento.
Acórdão
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, não conhecer do recurso especial. Os Srs. Ministros Antônio de Pádua Ribeiro, Ari Pargendler e Carlos Alberto Menezes Direito votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Assim, não é cabível, sem autorização judicial expressa, a aquisição de veículo por incapaz, mesmo que representado por ambos os pais.
Outro aspecto relevante da questão é o tributário. A legislação mineira relativa ao ITCD exige o pagamento do imposto no caso de doação, inclusive de bens móveis ou dos valores para sua aquisição, havendo presunção de incidência no caso de pessoa sem capacidade financeira, inclusive absoluta ou relativamente incapaz, praticar atos de aquisição:
Decreto Estadual de Minas Gerais nº 43.981/2005
Art. 2º O Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos – ITCD incide sobre a doação ou sobre a transmissão por ocorrência do óbito, de:
II – bens móveis, inclusive semoventes, direitos, títulos e créditos, e direitos a eles relativos, quando:
a) o doador tiver domicílio no Estado;
b) o doador não tiver residência ou domicílio no País e o donatário for domiciliado no Estado;
[…]
§ 2º Para os efeitos deste artigo, considera-se doação o ato ou fato em que o doador, por liberalidade, transmite bem, vantagem ou direito de seu patrimônio ao donatário, que o aceita expressa, tácita ou presumidamente, ainda que a doação seja efetuada com encargo ou ônus.
§ 3º Consideram-se também doação de bem ou direito os seguintes atos inter vivos praticados em favor de pessoa sem capacidade financeira, inclusive quando se tratar de pessoa absoluta ou relativamente incapaz para o exercício de atos da vida civil:
I – transmissão da propriedade plena ou da nua propriedade;
II – instituição onerosa de usufruto. (sem grifos ou negrito no original)
Assim, para que alguém sem capacidade financeira adquira um veículo, há que ser recolhido o ITCD previamente. O tabelião não é responsável por esse tributo, pois a transferência da propriedade de bens móveis se dá pela tradição, o reconhecimento de firma é apenas uma formalidade exigida pelo DETRAN, mas é importante orientar os interessados sobre a regularidade do pagamento do imposto, até mesmo para evitar futuras multas.
Por fim, há uma questão específica e que demanda análise em separado, que é a aquisição de veículo por pessoa com deficiência física, visual, mental severa ou profunda, ou autista, sem capacidade financeira, na hipótese em que o doador seja parente em primeiro grau em linha reta ou em segundo grau em linha colateral, cônjuge ou companheiro em união estável ou representante legal do donatário. A legislação mineira concede isenção do ITCD e também do ICMS nessa hipótese, mediante processo administrativo apresentado à Secretaria do Estado da Fazenda.
Tendo em vista o reconhecimento pelo Estado do atendimento ao melhor interesse do menor, mediante o deferimento da isenção tributária para fins de ICMS e ITCD, pode-se entender desnecessária a autorização judicial prévia para que haja a aquisição, pois flagrante o benefício do menor.
Lei Estadual de Minas Gerais nº 14.941/2003, art. 3º, II, f
Art. 3º Fica isenta do imposto:
I – a transmissão causa mortis de:
[…]
II – a transmissão por doação:
[…]
f) dos recursos necessários à aquisição de veículo por pessoa com deficiência física, visual, mental severa ou profunda, ou autista, sem capacidade financeira, ao abrigo da isenção do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS -, na hipótese em que o doador seja parente em primeiro grau em linha reta ou em segundo grau em linha colateral, cônjuge ou companheiro em união estável ou representante legal do donatário;
Decreto Estadual de Minas Gerais nº 43.981/2005, art. 4º; art. 6º, II, f, c/c art. 7º, § 1º
Art. 4º O ITCD não incide sobre a transmissão causa mortis ou por doação em que figure como sucessor, beneficiário ou donatário:
I – a União, o Estado ou o Município;
[…]
Art. 6º É isenta do ITCD:
[…]
II – a transmissão por doação:
[…]
f) dos recursos necessários à aquisição de veículo por pessoa com deficiência física, visual, mental severa ou profunda, ou autista, sem capacidade financeira, ao abrigo da isenção do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS -, na hipótese em que o doador seja parente em primeiro grau em linha reta ou em segundo grau em linha colateral, cônjuge ou companheiro em união estável ou representante legal do donatário.
[…]
Art. 7º As hipóteses de não-incidência e de isenção do ITCD previstas neste regulamento serão reconhecidas pela repartição fazendária competente nos termos do art. 16 e homologadas pela autoridade fiscal.
§1º Na hipótese em que figure como herdeira, legatária ou donatária pessoa indicada no inciso I do caput do art. 4º, a imunidade do ITCD será reconhecida pelo responsável pela lavratura do ato que formalizar a transmissão.
Em conclusão:
1- a aquisição de veículo em nome de menor ou incapaz pelos seus genitores não é ato de simples administração e deve ser analisado pelo tabelião se tem em vista o melhor interesse do incapaz;
2- em regra, aquisição ou alienação de veículo por menor ou incapaz só é cabível com autorização judicial, não sendo suficiente a representação ou assistência de ambos os pais para o ato;
3- incide ITCD sobre a doação de recursos para aquisição de veículo por pessoa sem capacidade financeira, não sendo o tabelião responsável tributário, já que o reconhecimento de firma não transfere a propriedade, o que ocorre com a tradição do bem, mas é importante que o tabelião informe a incidência do ITCD aos interessados, inclusive para que tais interessados não sejam penalizados com multas;
4- nos casos de aquisição de veículo por pessoa menor ou incapaz com deficiência física, visual, mental severa ou profunda, ou autista, sem capacidade financeira, na hipótese em que o doador seja parente em primeiro grau em linha reta ou em segundo grau em linha colateral, cônjuge ou companheiro em união estável ou representante legal do donatário, com deferimento de isenção pelo Estado do ITCD e do ICMS, é possível entender-se dispensável a autorização judicial, tendo em vista o flagrante benefício do menor ou incapaz.
* Letícia Franco Maculan Assumpção é graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1991), pós-graduada e mestre em Direito Público. Foi Procuradora do Município de Belo Horizonte e Procuradora da Fazenda Nacional. Aprovada em concurso, desde 1º de agosto de 2007 é Oficial do Cartório do Registro Civil e Notas do Distrito de Barreiro, em Belo Horizonte, MG. É professora da pós-graduação da Faculdade Milton Campos e autora de diversos artigos na área de Direito Tributário, Direito Administrativo, Direito Civil e Direito Notarial, publicados em revistas jurídicas, e do livro Função Notarial e de Registro. É Presidente do Colégio do Registro Civil de Minas Gerais e Diretora do CNB/MG.
Fonte: CNB-CF